August Derleth
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.
III
Com isto, mudou abruptamente de assunto; começou a perguntar-me coisas sobre mim e meu escritório, e quando eu levantei, pediu-me para passar a noite ali. Isto finalmente consenti, e com alguma relutância, após o que ele saiu para preparar um aposento para mim. Tomei a oportunidade que se revelou para examinar sua mesa com mais vagar, buscando o Necronomicon que havia sumido da Universidade Miskatonic. Não estava em sua mesa, mas, passando às prateleiras, encontrei-o. Havia justamente tomado do livro para examiná-lo para ter certeza de sua identidade, quando Tuttle reentrou no aposentou. Seus olhos rápidos voltaram-se para o livro em minhas mãos, e ele fez um sorriso de canto de boca.
“Gostaria que você devolvesse isso ao dr. Llanfer, quando sair amanhã de manhã, Haddon,” falou casualmente. “Agora que copiei o texto, não tenho mais uso para ele.”
“Farei com gosto,” disse, alivado que a questão havia se resolvido com tamanha facilidade.
Logo após, retirei-me para o aposento no segundo andar, que ele havia preparado para mim. Paul acompanhou-me até a porta e então fez uma pausa rápida, incerto com alguma coisa na ponta da língua, que não permitia passar pelos lábios; pois virou-se uma ou duas vezes, deu-me boa-noite antes de falar aquilo que pesava em sua mente: “Por sinal – se ouvir alguma coisa de noite, não fique alarmado, Haddon. O que quer que seja, é inofensivo – ainda.”
Não foi senão até ele ter saído e eu ter ficado sozinho em meu quarto, que o significado do que ele falou, e a forma como ele o falara, ficaram claros. Veio-me a ideia de que esta era a confirmação dos rumores terríveis que haviam enchido Arkham, e que Tuttle comentara o assunto com uma ponta de medo. Despi-me vagarosa e pensativamente, sem desviar um só instante da preocupação com a estranha mitologia dos livros antigos de Amos Tuttle, que enchiam minha cabeça. Nunca fui de fazer julgamentos precipitados e certamente não os faria naquele momento; apesar do aparente absurdo da estrutura, era ainda assim suficientemente bem formulada, de modo a merecer mais que um escrutínio casual. E ficara claro para mim que Tuttle estava mais que meio convencido de sua verdade. Isto, por si só, me fez pensar, pois Paul Tuttle havia distinguido-se inúmeras vezes pela cabalidade de suas pesquisas, e seus artigos publicados não foram desafiados nem sequer nos menores detalhes. Como resultado de pesar estes fatos, estava preparado para admitir que pelo menos haveria alguma base para a estrutura mitológica que Tuttle me delineara, mas quanto à sua verdade ou falsidade, estava claro que, naquele momento eu estava em posição de comprometer-me, mesmo que guardasse isso apenas para mim; pois uma vez que um homem aceita ou condena algo em sua mente, é duplamente, não, triplamente difícil livrar-se de sua própria conclusão, por mais infeliz que ela subsequentemente prove ser.
Pensando nisso, fui para a cama, e nela deitei esperando o sono. A noite se aprofundou e escureceu, embora eu pudesse enxergar, através da tênue cortina na janela, que as estrelas estavam visíveis, Andrômeda alta no leste, e as constelações do outono começando a tomar o céu.
Estava no limiar do sono, quando fui desperto violentamente por um som que já estava audível há algum tempo, mas que só então chegara ao ponto de assolar-me com toda sua significância: o passo levemente trêmulo de alguma criatura gigantesca, vibrando por toda a casa, embora o som não viesse de dentro da casa, mas do leste, e por um momento confuso pensei em algo levantando-se do mar, e andando pela praia, sobre a areia molhada.
Mas esta ilusão passou quando ergui-me pelos cotovelos e ouvi com mais atenção. Por um momento, não ouvi som algum; e então veio novamente, irregular, quebrado – um passo, uma pausa, dois passos em rápida sucessão, um estranho ruído de sucção. Perturbado, levantei de vez e fui à janela aberta. A noite estava quente, e o ar parado, quase opressivo; bem longe, ao nordeste, um raio cortava um arco sobre o céu, e do norte distante vinha o zumbido leve de de um avião noturno. Já passava da meia-noite; baixas no leste, brilhavam a vermelha Aldebarã e as Plêiades, mas naquele momento, ao contrário de depois, não conectei os distúrbios que ouvi com a aparição da Híades sobre o horizonte.
Enquanto isso os estranhos sons continuavam sem cessar, e ocorreu-me que, naquele momento, estavam de fato se aproximando da casa, embora com progresso lento. E vinham da direção do mar, sem dúvida, pois naquele local não haviam configurações de terra que pudessem desviar o foco direcional dos sons. Comecei a pensar novamente naqueles sons parecidos, que ouvi quando o corpo de Amos Tuttle estava na casa, embora não lembrasse então que, muito embora as Híades fossem visíveis agora no leste, naquela época pousavam no oeste. Se havia qualquer diferença na maneira de aproximação, não conseguia discernir, a não ser o fato de que os distúrbios pareciam de certa forma mais próximos, mas era menos uma proximidade física que uma proximidade psíquica. Esta convicção era tão forte, que comecei a sentir um crescente desconforto, sem dúvida misturado ao medo; comecei a experimentar uma inquietude selvagem, um desejo por companhia; e corri rapidamente para a porta de meu quarto, abri-a e passei logo para o corredor, buscando meu anfitrião.
Mas agora, uma nova descoberta se revelava. Enquanto estava no meu quarto, os sons que ouvira pareciam inquestionavelmente vir do leste, não obstante os leves e quase intangíveis tremores parecerem sacudir por toda a casa velha; mas ali, na escuridão do corredor, onde havia parado sem qualquer tipo de luz, fiquei ciente de que os sons e tremores emanavam de alguma parte abaixo – não de qualquer lugar na casa, mas abaixo dela – ascendendo como que de lugares subterrâneos. Minha tensão nervosa aumentou, e fiquei ali incerto, tentando perceber o que acontecia no escuro, quando percebi, na direção da escada, uma tênue radiância, vinda de baixo. Fui em sua direção, sem fazer ruídos, e ao olhar por sobre o corrimão, vi que a luz vinha de um lampião elétrico na mão de Paul Tuttle. Ele estava em pé, no corredor inferior, vestido de roupão, embora ficasse claro, mesmo de onde eu estava, que ele não havia removido suas roupas anteriores. A luz que caía sobre seu rosto revelava a intensidade de sua atenção; sua cabeça se voltava um pouco para o lado, em atitude de audição, e ele ficou ali imóvel, enquanto eu o observava de cima.
“Paul!” Chamei num sussurro rouco.
Ele olhou para cima e instantaneamente viu meu rosto, sem dúvida pego pela luz de seu lampião. “Consegue ouvir?” ele perguntou.
“Sim – o que, em nome de Deus, é isso?”
“Já ouvi isso antes,” respondeu. “Desça.”
Fui até o corredor inferior, onde pro um momento fiquei sob seu olhar penetrante e questionador.
“Não está com medo, Haddon?”
Balancei minha cabeça negativamente.
“Então venha comigo.”
Virou-se e foi pelo caminho que levava aos fundos da casa, onde desceu até os porões. Durante esse tempo, os sons aumentaram de volume; era como se estivessem chegando perto da casa, de fato, quase como se estivessem diretamente abaixo, e agora havia um tremor óbvio e definitivo no prédio, não apenas nas paredes e suportes, mas no tremelique e calafrio da própria terra ao redor; era como se algum distúrbio das profundezas subterrâneas houvesse escolhido aquele ponto na superfície da terra para manifestar-se. Mas Tuttle não parecia abalado com aquilo, pois sem dúvida havia passado pelo fenômeno anteriormente. Passou direto pelo primeiro e segundo porões, chegando a um terceiro, colocado um tanto abaixo dos outros, e aparentemente uma construção recente, mas como os outros dois, construído a partir de blocos de calcário em cimento.
No centro deste subporão, fez uma pausa e ficou quieto, escutando. Os sons, naquele momento, haviam chegado a uma tal intensidade que parecia que a casa fora pega num vórtice de atividade vulcânica, mas sem sofrer de fato a destruição dos suportes; pois o tremor e os movimentos, o estalido e arrastar das vigas sobre nós deu-nos evidência da tremenda pressão exercida dentro da terra abaixo de nós, e mesmo o chão de pedra do porão parecia vivo sob meus pés descalços. Mas neste momento os sons pareceram voltar a um pano de fundo, embora na verdade não tenham de fato diminuído, e apenas ilusoriamente pareceram assim devido à nossa crescente familiaridade com eles, e porque nossos ouvidos estavam prestando uma atenção a outros sons, ressoando em claves maiores, estes também ascendendo do subterrâneo, como se vindos de grande distância, mas carregando consigo um caráter infernal insidioso nas implicações que cresciam ao nosso redor.
Pois os sons de assobio que ouvíamos não eram claros o suficiente para justificar qualquer inferência de suas origens, e foi somente ao passar algum tempo escutando que ocorreu-me que os sons que passavam por um bizarro assobio ou lamúria derivavam de algo vivo, algum ser consciente, pois podiam ser compreendidos como murmúrios chocantes e grosseiros, indistintos e ininteligíveis, mesmo quando eram claramente audíveis. Nesta vez, Tuttle pôs o lampião no chão e ajoelhou-se, pondo o ouvido próximo da pedra.
Imitando seus movimentos, descobri que os sons vindos de abaixo eram reconhecíveis como sílabas, embora não menos sem sentido. Pois primeiramente não ouvi nada que não ululações incoerentes e aparentemente desconexas, então interpoladas com sons de cantoria, que seriam mais tarde identificadas por mim como o seguinte: Iä! Iä!... Shub-Niggurath... Ugh! Cthulhu fhtagn! Iä! Iä! Cthulhu!
Mas logo percebi que havia errado quanto a pelo menos um desses sons. A palavra Cthulhu era bastante audível, apesar da fúria dos sons que nos cercavam; mas a palavra que a seguia era um tanto mais longa que fhtagn; era como se uma sílaba extra fosse adicionada, e ainda assim não podia ter certeza de que não fora cantada sempre assim, pois acabou soando mais clara, e Tuttle tirou de seu bolso um caderno e um lápis e escreveu:
“Estão dizendo, Cthulhu naflfhtagn.”
A julgar pela expressão de seus olhos, levemente dilatados, isto evidentemente lhe revelava algo, mas para mim, não queria dizer nada, além de minha habilidade de reconhecer uma porção como idêntica às palavras que apareciam no abominado Texto de R'lyeh, e subsequentemente mais uma vez na história da revista, onde sua tradução parecia indicar que as palavras significavam: Cthulhu espera sonhando. Minha óbvia e vazia ignorância de seu significado aparentemente lembrou meu anfitrião de que sua erudição filológica era muito maior que a minha, pois sorriu de modo macabro e sussurrou, “Não passa de uma construção negativa.”
Mesmo neste ponto não compreendi que ele tentava explicar que as vozes subterrâneas não estavam dizendo o que eu pensava, mas isto: Cthulhu não está mais dormindo! Agora não havia mais como questionar a crença, pois as coisas que estavam ocorrendo não eram de origem humana, e não admitiam outra solução do que alguma que não fosse, mesmo que remotamente, relacionada à incrível mitologia que Tuttle havia há pouco me exposto. E agora, como se esta evidência de sentimento e audição não fosse suficiente, manifestou-se um estranho e fétido odor, misturado a um cheiro nauseabundo e forte de peixe, aparentemente escapando pela porosa pedra calcária.
Tuttle percebeu isto quase simultaneamente a mim, e fiquei alarmado ao observar em suas feições traços de apreensão que antes não havia notado. Por um momento ele ficou quieto; depois levantou-se furtivamente, tomou do lampião e saiu do porão, levando-me a segui-lo.
Só então, quando estávamos mais uma vez no andar de cima, ele aventurou-se a falar. “Estão mais próximos do que eu pensava,” disse ele, pensativo.
“Seria Hastur?” Perguntei nervosamente.
Mas ele balançou a cabeça. “Não pode ser, porque a passagem abaixo leva apenas ao mar, e sem dúvida está parcialmente alagada. Portanto pode ser apenas um dos Seres da Água – aquelees que refugiaram-se por aqui quando os torpedos destruíram o Recife do Diabo, além da temida Innsmouth – Cthulhu, ou aqueles que o servem, como os Mi-Go o servem nos espaços gélidos, e o povo Tcho-Tcho o servem nos ocultos platôs da Ásia.”
Já que era impossível dormir, sentamos por um tempo na biblioteca, enquanto Tuttle falava quase cantando sobre as estranhas coisas que havia descoberto nos velhos livros que haviam sido de seu tio: esperamos sentados pela aurora enquanto ele falava do temido Platô de Leng, do Bode Negro das Florestas e suas Mil Crias, de Azathoth e Nyarlathotep, Poderoso Mensageiro que andava pelos espaços estelares exibindo o semblante de homem; do horrível e diabólico Símbolo Amarelo, das torres fabulosas e assombradas da misteriosa Carcosa; dos terríveis Lloigor e do odiado Zhar; de Ithaqua, a Coisa da Neve, de Chaugnar Faugn e N'gha-Kthun, da desconhecida Kadath e dos Fungos de Yuggoth – de modo que ele falou por horas, enquanto os sons abaixo continuavam e eu sentado ouvia, imerso num medo beirando o terror. E mesmo assim esse medo era desnecessário, pois na aurora, as estrelas empalideceram e o tumulto abaixo morreu de súbito, afastando-se para o leste e para as profundezas do oceano, fazendo com que eu fosse para meu quarto com ansiedade, para vestir-me em preparo de minha saída.
IV
Em pouco mais de um mês, mais uma vez estava eu na propriedade Tuttle, vindo de Arkham, respondendo a um chamado urgente de Paul, em cujo cartão ele havia rabiscado, com o punho trêmulo, uma única palavra: Venha! Mesmo que não houvesse escrito isto, eu já estava considerando ser meu dever retornar à velha casa da Estrada Aylesbury, apesar de meu desagrado pela pesquisa de Tuttle, que abalava minha alma, e do meu agora ativo medo, que não podia mais evitar. Ainda assim, vinha procrastinando, desde que tomara a decisão de tentar dissuadir Tuttle a afastar-se das pesquisas, até a manhã do dia em que seu cartão chegou. Naquela manhã eu vira no jornal Transcript uma reportagem confusa de Arkham: não haveria notado nada, se não fosse pela pequena manchete, que me capturou o olhar: Ultraje no Cemitério de Arkham, e logo abaixo: Cripta dos Tuttle Violada. A reportagem era breve, e revelava muito pouco além da informação já transmitida pelas manchetes:
Descobriu-se cedo nesta manhã que vândalos invadiram e destruíram parcialmente a cripta dos Tuttle, no cemitério de Arkham. Uma das paredes foi esmagada de maneira quase irreparável, e os caixões foram perturbados. Foi reportado que o caixão do falecido Amos Tuttle está desaparecido, mas havia confirmação do fato quando da impressão deste número.
De imediato, ao ler o vago boletim, foi assaltado pela mais forte das apreensões, vinda não se sabe de que lugar; ainda assim eu sentia que o ultraje perpetrado contra a cripta não era um crime comum, e não conseguia deixar de conectá-lo, em minha cabeça, com as ocorrências na velha casa dos Tuttle. Resolvi portanto ir até Arkham e assim ver Paul Tuttle, antes da chegada de seu cartão; sua breve mensagem alarmou-me mais ainda, se é que isso é possível, e ao mesmo tempo convenceu-me do que temia – que alguma revoltante conexão existia entre o ultraje no cemitério e as coisas que andavam na terra sob a casa da Estrada Aylesbury. Mas, ao mesmo tempo, sentia uma profunda relutância em deixar Boston, obcecado por um medo intangível do perigo invisível que viria de uma fonte desconhecida. Ainda assim, o dever compelia minhas viagens, e por mais forte que fosse a sensação eu deveria pô-la de lado e ir até Arkham.
Cheguei na cidade no começo da tarde e fui logo ao cemitério, na capacidade de procurador, avaliar a extensão dos danos. Uma guarda policial fora estabelecida, mas recebi permissão de examinar o local, tão logo minha identidade fora averiguada. O registro do jornal, logo descobri, havia sido chocantemente inadequado, pois a ruína da cripta Tuttle fora virtualmente completa, seus caixões expostos ao calor do sol, alguns deles quebrados, revelando ossos há muito mortos. Embora fosse verdade que o caixão de Amos Tuttle havia desaparecido na noite, fora encontrado, ao meio-dia, num campo aberto a cerca de três quilômetros a leste de Arkham, longe demais da estrada para ter sido carregado até ali; e o mistério de estar ali tornou-se então, mais profundo do quando encontraram o caixão; pois uma investigação descobriu certos sulcos profundos na terra, postos a amplos intervalos, alguns deles de mais de um metro de diâmetro! Era como se alguma monstruosa criatura houvesse andado ali, embora eu confesse que este pensamento ocorreu apenas em minha cabeça; as impressões na terra permaneceram um mistério sobre o qual nenhuma luz foi lançada, mesmo pelas suspeitas mais imaginativa quanto à sua fonte. Isto pode ter sido em parte devido ao fato mais aterrador que ficou claro tão logo após a descoberta do caixão: o corpo de Amos Tuttle havia sumido, e uma busca nas cercanias falhou em encontrá-lo. Descobri isso tudo do custódio do cemitério, antes de pôr-me a caminho da Estrada Aylesbury, recusando-me a pensar mais sobre essas incríveis informações, até que houvesse falado com Paul Tuttle.
Desta vez, minha chamada na porta não foi atendida de imediato, e comecei a imaginar, com alguma apreensão, se algo havia acontecido com ele, quando detectei um leve som de arrastar por trás da porta, e quase que imediatamente depois ouvi a voz abafada de Tuttle.
“Quem é?”
“Haddon,” respondi, e ouvi o que parecia ser um engasgo de alívio.
A porta se abriu, e até que ela se fechasse novamente não consegui perceber a escuridão noturna do corredor, vendo depois que a janela no outro extremo estava fortemente fechada, e que nenhuma luz caía sobre o longo corredor, vinda de algum dos aposentos para os quais o corredor dava. Proibi-me de perguntar a questão que estava na ponta da língua e ao invés disso voltei-me para Tuttle. Levou algum tempo para que meus olhos dominassem a escuridão antinatural o suficiente para percebê-lo, e somente então fui abalado por uma sensação distinta de choque: pois Tuttle havia mudado de um homem alto e ereto, na flor de seus anos, para um homem curvado e pesado, de aparência descuidada e levemente repulsiva, traindo uma idade que na verdade ultrapassava a sua. E suas primeiras palavras encheram-me de um grande alarme.
“Rápido, rápido, Haddon,” disse ele. “Não há muito tempo.”
“O que foi? Alguma coisa errada, Paul?” Perguntei.
Sem responder, levou-me até a biblioteca, onde um lampião elétrico queimava tênue. “Fiz um pacote de alguns dos livros mais valiosos de meu tio – o Texto de R'lyeh, o Livro de Eibon, os Manuscritos Pnakóticos – e mais alguns outros. Estes devem ser entregues à biblioteca da Universidade Miskatonic, por suas mãos, hoje, a todo custo. Devem portanto ser considerados propriedade da biblioteca. E aqui está um envelope contendo certas instruções para você, em caso de eu não conseguir entrar em contato, seja pessoalmente ou por telefone – que já instalei aqui desde sua última visita – às dez da noite de hoje. Você vai ficar, eu presumo, na Lewiston House. Agora preste bastante atenção: se eu não ligar para você antes das dez da noite de hoje, deve seguir as instruções contidas aqui, sem hesitação. Aconselho que aja imediatamente e, caso as ache muito incomuns e isso o impeça de agir com presteza, já telefonei ao Juiz Wilton e expliquei que deixei algumas instruções estranhas, porém cruciais, com você, e que as quero cumpridas ao pé da letra.”
“O que foi que aconteceu, Paul?” Perguntei.
Por um momento parecia que ele falaria livremente, mas apenas balançou a cabeça e disse, “Por enquanto, não sei de tudo. Mas isto posso adiantar: nós dois, eu e meu tio, cometemos um terrível engano. E temo que seja tarde demais para corrigi-lo. Você soube do desaparecimento do corpo de Tio Amos?”
Assenti, confirmando.
“Pois ele já apareceu.”
Fiquei impressionado, pois acabara de vir de Arkham, e nenhuma informação do tipo me havia sido passada. “Impossível!” Exclamei. “Ainda estão procurando por ele.”
“Ah, não importa,” ele disse de maneira esquisita. “Não está por lá. Está aqui – aos pés do jardim, onde foi abandonado, uma vez que o julgaram inútil.”
Neste ponto, de súbito sacudiu a cabeça para cima, e ouvimos arrastares e roncos, vindos de alguma parte da casa. Mas rapidamente pararam, e Paul voltou-se para mim.
“O refúgio,” murmurou, dando então uma risada doentia. “O túnel foi construído pelo Tio Amos, tenho certeza. Mas não era o refúgio que Hastur desejasse – embora sirva aos lacaios de seu meio-irmão, o Grande Cthulhu.”
Era quase impossível perceber que o sol brilhava lá fora, pois a escuridão no aposento e a atmosfera de terror iminente posta sobre mim combinaram-se para dar à cena uma irrealidade bastante distante do mundo de onde eu acabara de vir, apesar do horror daquela cripta violada. Percebi também em Tuttle um ar de expectativa quase febril, unido a uma pressa nervosa; seus olhos brilhavam de maneira esquisita e pareciam mais proeminentes que antes, seus lábios pareciam ter ficado ásperos e grosseiros, e sua barba estava emaranhada a um ponto que eu não julgaria antes possível. Ele ouviu por apenas um momento antes de voltar-se novamente para mim.
“Eu preciso ficar aqui; não terminei de minar o lugar, e isto deve ser feito,” voltou a falar de modo errático, continuando antes que a pergunta que me incomodava pudesse ser pronunciada. “Descobri que a casa jaz sobre algum alicerce artificial natural, e creio que estas cavernas em parte estão inundadas – e talvez sejam habitadas,” adicionou como um posfácio sinistro. “Mas isto, claro, agora é de pouca importância. Não tenho medo imediato do que se encontra abaixo, mas daquilo que está por vir.”
Mais uma vez ele pausou para ouvir, e mais uma vez sons vagos e distantes chegaram a meus ouvidos. Ouvi com atenção, percebendo apalpadelas ominosas, como se alguma criatura estivesse testando uma porta, e tentei descobrir ou adivinhar de onde vinha o som. Pensei a princípio que o som emanava de algum lugar da casa, e quase que instintivamente me veio a ideia do sótão; pois parecia vir de cima, mas num momento fiquei certo de que o som não derivava de lugar algum dentro da casa, nem de qualquer porção da casa do lado de fora, mas crescia de um lugar além, de um ponto no espaço além das paredes da casa – um ruído de apalpadelas e puxões que não conseguia se associar, em minha consciência, a qualquer som material reconhecível, mas a uma invasão extraterrena. Observei Tuttle, e vi que sua atenção também estava voltada para o exterior, pois sua cabeça estava de certa forma levantada e seus olhos buscavam além das paredes circundantes, exibindo uma expressão curiosamente extasiada, embora não despida de medo, e não despida de um estranho ar de espera fatalista.
“É o símbolo de Hastur,” disse numa voz sussurrante. “Quando ascenderem as Híades e Aldebarã espreitar o céu noturno, Ele virá. O Outro também estará aqui, com Seu povo aquático, das raças escamosas primevas.”
E então começou subitamente a rir, sem fazer sons, apenas balançando, e num olhar arisco e meio insano, adicionou, “E Cthulhu e Hastur lutarão aqui pelo refúgio, enquanto o Grande Órion passa pelo horizonte, lá onde está Betelgeuse dos Deuses Anciões, somente eles podem impedir os planos malignos dessas crias do inferno!”
Meu espanto diante de suas palavras sem dúvida ficou patente em meu rosto, e por sua vez fê-lo compreender o tamanho da hesitação chocada e da dúvida que eu sentia, pois alterou sua expressão de maneira abrupta, suavizando os olhos, torcendo e destorcendo as mãos, e tornando a voz um tanto mais natural.
“Mas talvez isto o canse, Haddon,” disse. “Não falarei mais, pois o tempo é curto, o crepúsculo se aproxima, e pouco depois a noite. Imploro que não discuta quanto a seguir as instruções que delineei para você nesta breve nota. Minhas ordens devem ser seguidas cegamente. Se for como eu temo, pode ser que nem mesmo elas sirvam para alguma coisa; e se for o caso eu o contatarei a tempo.”
Com isto pegou o pacote de livros, colocou-o em minhas mãos, e levou-me até a porta, para onde segui sem protestos, pois estava atônito e certamente desarmado pela estranheza das ações de Paul, pela atmosfera sinistra de horror crescente que se acumulava naquela antiga e ameaçadora casa.
Na soleira da porta, fez uma breve pausa e segurou com leveza meu braço. “Adeus, Haddon,” disse com intensidade amigável.
Vi-me então na varanda, sob os raios do sol que baixava, tão luminoso que cheguei a fechar os olhos, até que pudesse mais uma vez acostumar-me ao seu brilho, enquanto o riso alegre de um pássaro azul, sozinho na cerca da estrada, soava prazerosamente em meus ouvidos, como se para me ajudar a deixar para trás aquela atmosfera de medo sombrio e horror sobrenatural.
...CONTINUA...
domingo, 24 de junho de 2012
O RETORNO DE HASTUR - Partes III e IV
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sábado, 23 de junho de 2012
O RETORNO DE HASTUR - Partes I e II
August Derleth
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.
NA VERDADE, COMEÇOU há muito tempo: há quanto tempo, não ousaria dizer, mas no que diz respeito à minha conexão com o caso que arruinou minha carreira e trouxe dúvidas aos médicos quanto à minha sanidade, começou com a morte de Amos Tuttle. Foi numa noite de fins de inverno, com o vento sul soprando a vinda da primavera. Estava eu na antiga Arkham, assombrada pelas lendas, naquele dia; ele soube da minha presença pelo dr. Ephraim Sprague, que o atendia, e fez com que o médico chamasse a Lewiston House e trouxesse-me àquela propriedade lúgubre na Estrada Aylesbury, próxima a Innsmouth Turnpike. Não seria um lugar onde eu gostaria de estar, mas o velho pagava-me o suficiente para que eu tolerasse seu jeito tristonho e sua excentricidade, e Sprague havia deixado claro que ele estava moribundo: suas horas estavam contadas.
E de fato era o caso. O velho mal teve forças para fazer com que Sprague saísse do aposento e então falar comigo, embora sua voz estivesse clara o suficiente, saindo com pouca dificuldade.
“Você conhece minha vontade testamentária,” disse ele. “Cumpra-a ao pé da letra.”
Essa havia sido uma questão polêmica entre nós, devido a seu desejo de que, antes que seu herdeiro e único sobrinho sobrevivente, Paul Tuttle, pudesse clamar a propriedade, a casa devesse ser destruída – não derrubada, mas destruída, junto com certos livros designados pelo número de prateleira, em suas instruções finais. Seu leito de morte não era lugar para debater novamente aquela ideia de destruição gratuita; assenti, e aceitei a ordem. Teria sido melhor sorte se eu tivesse obedecido sem questionar!
“Veja só,” continuou, “há um livro lá embaixo, que você deve devolver à biblioteca da Universidade Miskatonic.”
Falou-me do título. Naquele momento não significava nada para mim; mas a partir daí tornara-se para mim, mais do que eu possa descrever – símbolo de um horror ancilário, de coisas enlouquecedoras além do véu da vida cotidiana e prosaica – a tradução latina do abominável Necronomicon, de autoria do árabe louco Abdul Alhazred.
Encontrei o livro com facilidade. Pelas últimas décadas de sua vida, Amos Tuttle havia vivido em reclusão cada vez maior, entre livros coletados em toda parte do globo; textos antigos, roídos pelas traças, com títulos que apavorariam um homem menos rijo – o sinistro De Vermis Mysteriis, de Ludwig Prinn, o terrível Culte de Ghoules do Comte d'Erlette, o condenável Unaussprechlichen Kulten de von Juntz. Não sabia então o quão raros eram esses livros, nem compreendia a raridade sem preço de certas peças fragmentárias: o aterrorizante Livro de Eibon, os Manuscritos Pnakóticos, cheios de passagens horrorosas, e o temível Texto de R'lyeh; pois estes, descobrir ao examinar os balancetes, depois da morte de Amos, haviam sido comprados por somas fabulosas. Mas em parte alguma eu encontraria um número tão alto quanto aquele pago pelo Texto de R'lyeh, que havia chegado a ele de alguma parte do interior sombrio da Ásia; de acordo com os arquivos, ele havia pago não menos que cem mil dólares pelo livro; mas além disso, no registro do manuscrito amarelado, havia uma notação que me confundiu na época, mas que me dá ânsia pressagiosa em relembrar – depois da menção da soma, Amos Tuttle havia escrito, com sua caligrafia de teia de aranha: além do cumprimento da promessa.
Estes fatos não aconteceram até que Paul Tuttle tomasse posse, mas antes disso, várias ocorrências estranhas aconteceram, coisas que deveriam ter levantado minhas suspeitas quanto às lendas interioranas que falam de poderosas influências sobrenaturais ligadas à casa antiga. A primeira dessas ocorrências foi de pouca consequência, comparada às outras; aconteceu apenas que, ao devolver o Necronomicon à biblioteca da Universidade Miskatonic, em Arkham, encontrei-me levado por uma bibliotecária de lábios franzidos, direto ao escritório do diretor, Dr. Llanfer, que pediu-me diretamente para que eu explicasse a razão pela qual o livro estava em minhas mãos. Sem hesitação em responder, descobri que o raro volume jamais recebera permissão para sair da biblioteca e que, na verdade, Amos Tuttle o havia subtraído em uma de suas raras visitas, após ter falhado em persuadir o Doutor Llanfer a emprestá-lo. E Amos havia sido astuto o suficiente ao preparar de antemão uma imitação maravilhosamente razoável do livro, com a encadernação quase idêntica, e a reprodução do título e de suas páginas iniciais reproduzidas de memória; na ocasião de seu furto do livro do árabe louco, Amos havia substituído a imitação pelo original e saído com uma das duas únicas cópias disponíveis desta obra temida no continente norte-americano e uma das cinco conhecidas no mundo.
A segunda das ocorrências foi um pouco mais alarmante, embora tenha a aparência de sair das histórias mais convencionais de casas assombradas. Tanto Paul Tuttle quanto eu ouvimos na casa, em momentos estranhos da noite, particularmente enquanto o cadáver de seu tio estava ainda lá, o som de passos acolchoados, mas com algo esquisito neles: não era como se os passos fossem dentro da casa, mas passos de alguma criatura de tamanho quase além da concepção do homem, andando uma boa distância nos subterrâneos, de modo que o som na verdade vibrava na casa, a partir das profundezas da terra abaixo desta. E quando faço referência a passos, é apenas por falta de uma melhor palavra para descrever os sons, pois não eram passos limpos mas sons esponjosos, gelatinosos, chapinhantes, feitos com a força de tanto peso, que o consequente tremor de terra naquele lugar não era mais que isso. Mas agora o barulho se foi, coincidentemente logo após termos despachado o cadáver de Amos Tuttle, 48 horas antes do planejado. Os sons, classificamos como apenas os assentamentos da terra ao longo da costa distante, não só porque não demos muito importância a eles, mas devido à coisa final que aconteceu antes de Paul Tuttle tomar posse oficial da velha casa na Estrada Aylesbury.
A última coisa foi a mais chocante de todas, e dos três que a presenciaram, apenas eu permaneço vivo hoje, já que o doutor Sprague faz um mês de morto hoje, mas na época fora ele que observou e disse, “Enterre-o logo!” E assim o fizemos, pois as mudanças no corpo de Amos Tuttle eram macabras além da compreensão, especialmente horríveis no que sugeriam, e assim porque o corpo não estava caindo em decadência visível, mas mudando sutilmente para outra coisa, infundindo-se de uma iridescência esquisita, que escurecia até o ponto de parecer quase ébano, e a aparência da carne de suas mãos inchadas e de seu rosto mostrava o crescimento de pequenas escamas. Da mesma forma haviam mudanças no formato de sua cabeça; parecia alongar-se, assumir uma forma curiosa e pisciana, acompanhada de uma leve emanação de cheiro de peixe, saindo do caixão; e o fato dessas mudanças não serem mera imaginação foi chocantemente comprovado quando o corpo foi depois encontrado no lugar para onde seu maligno sucessor havia levado, e lá, finalmente apodrecendo, outros viram comigo as terríveis e sugestivas mudanças que haviam ocorrido, embora devam dar graças que não tenham conhecimento do que aconteceu antes. Mas no período em que Amos Tuttle estava na casa velha, não haviam pistas do que estava para acontecer, e fomos rápidos em fechar o caixão e mais rápidos ainda em levá-lo até o mausoléu dos Tuttle, coberto de hera, no cemitério de Arkham.
Naquela época, Paul Tuttle estava no final da casa dos quarenta anos, mas como muitos homens de sua geração, tinha o rosto e a constituição de um jovem de vinte. De fato, a única pista de sua idade estava nos leves toques de cinza no cabelo de seu bigode e têmperas. Ele era um homem alto e de cabelos escuros, um tanto acima do peso, com olhos azuis e francos, que anos de pesquisa erudita não haviam reduzido à necessidade de óculos. Ele não ignorava os termos da lei, pois rapidamente nos fez saber que se eu, como executor testamentário de seu tio, não estivesse disposto a ignorar a cláusula que ordenava a destruição da casa na Estrada Aylesbury, contestaria em juízo com base na insanidade de Amos Tuttle. Apontei a ele que ele estaria sozinho contra mim e o dr. Sprague, mas ao mesmo tempo não estava cego ao fato de que a irrazoabilidade da ordem poderia muito bem nos trazer uma derrota jurídica; e além disso, eu mesmo considerava a cláusula, nesse sentido, esquisitamente gratuita e sem sentido nesse apelo à destruição, e não estava preparado para lutar no tribunal por uma questão tão menor. Ainda assim, se tivesse previsto o que viria depois, teria atendido ao último pedido de Amos Tuttle, não importando qualquer decisão da corte. Contudo, tal capacidade de previsão não me ocorreu.
Eu e Tuttle fomos ver o juiz Wilton, e expomos o caso a ele. O juiz concordou conosco que a destruição da casa parecia desnecessária, e mais de uma vez fez sutil menção de concordar com a crença de Paul Tuttle na insanidade de seu falecido tio.
“O velho parecia alienado, sempre o conheci assim,” disse secamente. “Quanto a você, Haddon, poderia levantar-se no tribunal e jurar que ele era absolutamente são?”
Lembrando, com certo desconforto, o roubo do Necronomicon na Universidade Miskatonic, tive de confessar que não poderia fazê-lo.
De modo que Paul Tuttle tomou posse da propriedade na Estrada Aylesbury, e eu retornei a meu escritório advocatício em Boston, não exatamente descontente com a resolução das coisas, mas ainda assim sentindo um desconforto oculto, difícil de ser definido, uma sensação insidiosa de tragédia iminente, com certeza também alimentada por minha memória do que havia visto no caixão de Amos Tuttle, antes que este fosse selado e trancado no secular mausoléu do cemitério de Arkham.
II
Não muito tempo depois, mais uma vez fui ter com os telhados de duas águas e balaustradas georgianas da cidade de Arkham, amaldiçoada pelas bruxas, e estava então lá a serviço de um cliente que desejava assegurar que sua propriedade na antiga Innsmouth fosse protegida dos agentes governamentais e policiais que haviam tomado posse dessa temida e assombrada aldeia, embora não houvesse passado apenas alguns meses desde as misteriosa dinamitação dos blocos de prédios da orla, e de parte daquele terror – o Recife do Diabo, erguido no mar logo além – mistério que fora cuidadosamente guardado e oculto desde então, embora eu houvesse lido um artigo que se propunha a revelar os verdadeiros fatos do horror de Innsmouth, um manuscrito publicado privadamente, escrito por um autor de Providence. Seria impossível, naquele momento, ir até Innsmouth, porque o Serviço Secreto havia fechado todas as estradas que levavam até lá; contudo, redigi representações para as pessoas apropriadas e recebi uma confirmação de que a propriedade de meu cliente seria totalmente protegida, já que estava longe da orla; de modo que procedi a lidar com outras pequenas questões em Arkham.
Fui almoçar, naquele dia, num pequeno restaurante próximo à Universidade Miskatonic, e enquanto ali, fui abordado por uma voz familiar. Olhei e vi o dr. Llanfer, diretor da biblioteca da universidade. Ele parecia um tanto irritado, e suas feições traíam claramente seu estado. Convidei-o a partilhar de minha mesa, mas ele recusou; contudo, sentou-se, por assim dizer, na ponta da cadeira.
“Você tem visto Paul Tuttle?” perguntou abruptamente.
“Pensei em visitá-lo esta tarde,” repliquei. “Aconteceu algo errado?”
Ele ruborizou, com um ar um tanto culpado. “Não posso dizer com certeza,” respondeu firme. “Mas correm alguns rumores medonhos em Arkham. E o Necronomicon sumiu novamente.
“Bom Deus! Certamente não está acusando Paul Tuttle de tê-lo roubado?” Exclamei, numa mescla de surpresa e incômodo. “Não consigo imaginar que uso ele poderia dar a esse livro.”
“Ainda assim – está nas mãos dele,” persistiu o dr. Llanfer. “Mas não penso que ele o roubou, e gostaria que não pense que eu disse isso. É da minha opinião que um de nossos atendentes passou o livro para ele, e agora está relutante em confessar a enormidade de seu erro. Mas qualquer que seja a verdade, o livro ainda não reapareceu, e temo que teremos de ir atrás dele.”
“Eu poderia perguntar a Paul sobre o livro,” disse.
“Se fizer isso, ficarei grato,” respondeu o dr. Llanfer, com uma certa avidez. “Imagino que não ouviu nada dos rumores que andam por aqui?”
Balancei a cabeça negativamente.
“Muito provavelmente, apenas o resultado de alguma mente imaginativa,” continuou, mas seu ar sugeria que ele não estava disposto ou apto a aceitar uma explicação tão prosaica. “Parece que os passantes da Estrada Aylesbury ouvem estranhos ruídos à noite avançada, todos aparentemente emanando da casa Tuttle.”
“Que ruídos?” Perguntei, e não sem uma apreensão imediata.
“Aparentemente, ruídos de passadas; ainda assim, sei que ninguém pôde precisar a natureza desses ruídos, salvo um jovem que os caracterizou como esponjosos, e que disse que soaram como se fossem de algo grande, andando no lodo e água próximos.”
Os estranhos ruídos que Paul Tuttle e eu ouvimos na noite seguinte à morte de Amos Tuttle passaram em minha mente, mas nesta menção de passadas, feita pelo dr. Llanfer, a memória de tudo que havia ouvido voltou. Temi ter demonstrado isso de alguma forma, pois o dr. Llanfer percebeu meu súbito interesse; felizmente ele escolheu interpretá-lo como evidência de que eu havia escutado alguma coisa dos tais rumores, mesmo que eu tivesse dito o contrário. Preferi não corrigi-lo nesse sentido, e ao mesmo tempo experimentei um repentino desejo de não ouvir mais nada sobre o assunto; de modo que não pressionei-o em busca de detalhes adicionais, e quando ele levantou para retornar a seus deveres, deixou-me com a promessa de perguntar a Paul Tuttle sobre o livro perdido.
Sua história, por mais rasa que fosse, ainda assim soava uma nota de alarme dentro de mim; não consegui evitar lembrar as várias coisinhas que mantinha na memória – os passos que ouvimos, a estranha cláusula do testamento de Amos Tuttle, a horrenda metamorfose de seu cadáver. Já havia uma leve suspeita em minha mente, de que alguma sinistra cadeia de eventos estava manifestando-se ali; minha curiosidade natural atiçou-me, não sem uma certa sensação de desagrado, desejo consciente de evitar o caso, e a recorrência daquela estranha e insidiosa convicção de tragédia iminente. Mas estava determinado a ver Paul Tuttle o mais cedo possível.
Meu trabalho em Arkham consumiu toda a tarde, e somente no crepúsculo consegui estar diante da massiva porta de carvalho da velha casa Tuttle, na Estrada Aylesbury. Minha batida um tanto hesitante foi atendida pelo próprio Paul, que veio espreitar a noite crescente com sua lâmpada em mãos.
“Haddon!”, exclamou, abrindo mais a porta. “Pode entrar!”
Estava genuinamente grato em ver-me, disso não podia duvidar, pois a nota de entusiasmo em sua voz excluía quaisquer outras suposições. A afabilidade de suas boas-vindas também serviram-me para confirmar minha intenção de não falar dos rumores que ouvira, e proceder as perguntas sobre o Necronomicon no seu devido tempo. Lembrei que logo antes da morte de seu tio, Tuttle estava trabalhando num tratado filosófico ligado ao desenvolvimento do idioma indígena Sac, e passei a perguntar sobre o artigo, como se não houvesse nada mais importante.
“Já jantou, imagino,” disse Tuttle, levando-me pelo corredor para a biblioteca.
Respondi que já havia comido em Arkham.
Ele colocou a lâmpada sobre uma mesa cheia de livros, empurrando alguns papéis para o lado, ao fazê-lo. Convidando-me a sentar, ele voltou à cadeira que ele havia evidentemente deixado para atender à porta. Percebi nesse momento que ele estava um tanto desgrenhado, e que havia permitido que sua barba crescesse. Também havia engordado um pouco, sem dúvida consequência de seus estudos reforçados, que traziam confinamento à casa e falta de exercícios físicos.
“E quanto ao tratado Sac?” Perguntei.
“Coloquei-o de lado,” respondeu rápido. “Pode ser que o retome mais tarde. Mas agora, estou preso a algo bem mais importante – o quão importante, ainda não posso precisar.”
Vi então que os livros nas mesas não era os mesmos tomos eruditos que havia visto em sua mesa de Ipswich, mas com alguma apreensão, notei que eram os mesmos livros condenados pelas explícitas instruções do tio de Tuttle, e uma olhadela na direção dos espaços vazios nas prateleiras proscritas veio a confirmar o fato.
Tuttle voltou-se para mim com avidez e abaixou a voz, como se com medo de ser ouvido. “Na verdade, Haddon, é algo colossal – um gigantesco feito da imaginação, se não fosse por isso: não tenho mais certeza de que é algo imaginado, de fato, não tenho mais certeza. Fiquei imaginando qual seria a razão por trás da cláusula do testamento de meu tio; não podia compreender a razão pela qual a casa deveria ser destruída, e imaginei que a razão deveria estar nas páginas dos livros que ele tão cuidadosamente condenou. E estava certo.” Ele gesticulou em direção ao incunábulo à sua frente. “De modo que os examinei e posso dizer que descobri coisas de tal incrível estranheza, de tal horror bizarro, que às vezes hesito em aprofundar-me no mistério. Francamento, Haddon, a coisa que descobri é tão alienígena, e devo dizer que envolveu considerável pesquisa da minha parte, além de ler os livros coletados pelo Tio Amos.”
“Certo,” disse secamente. “E ouso dizer que você viajou bastante para tal?”
Abanou a cabeça negativamente. “De forma alguma, exceto uma viagem à Biblioteca da Universidade Miskatonic. O fato é que descobri poder conseguir o que queria através de carta. Lembra-se dos documentos de meu tio? Bem, descobri entre eles que Tio Amos pagou cem mil por um certo manuscrito encadernado – encadernado em pele humana, aliás – junto a uma linha enigmática: além do cumprimento da promessa. Comecei a perguntar-me que promessa Tio Amos poderia ter feito e a quem; se ao homem ou mulher que o vendera o Texto de R'lyeh, ou outra pessoa. Procedi portanto procurando o nome do homem que a ele vendera o livro, e cheguei a seu endereço: é um certo sacerdote chinês, do Tibete interior, e escrevi para ele. Sua resposta chegou há cerca de uma semana.”
Curvou-se e remexeu rapidamente nos papéis da mesa, até que encontrou o que buscava e passou-me.
“Escrevi em nome de meu tio, não confiando totalmente na transação, e mais ainda, escrevi como se tivesse esquecido ou tivesse esperança de evitar a promessa,” ele continuou. “Sua resposta é tão enigmática quanto a notação de meu tio.
De fato assim era, pois o papel amarrotado que me foi passado exibia, numa estranha caligrafia forçada, uma única linha, sem assinatura nem data: Oferecer um refúgio Àquele que Não Deve Ser Nomeado.
Ouso dizer que fitei Tuttle com uma estupefação que era espelhada claramente nos olhos dele, já que sorriu antes de responder.
“Não significa nada para você, certo? Nem significava nada para mim, quando li pela primeira vez. Mas não por muito tempo. Para compreender o que se segue, deve conhecer pelo menos um breve esboço da mitologia – se de fato trata-se de mitologia – na qual o mistério se enraíza. Meu Tio Amos aparentemente sabia dela e nela acreditava, pois as várias notas espalhadas nas margens dos livros proscritos aludem a um conhecimento muito além do meu. Aparentemente, a mitologia advém de uma fonte em comum de nossa Gênese lendária, mas com apenas umas poucas similaridades; às vezes sou tentado a dizer que esta mitologia é mais antiga que qualquer outra – certamente em suas implicações vai muito além das outras, sendo cósmica e imemorial, pois seus seres são de duas naturezas distintas: os Antigos, ou Deuses Anciões, simbolizando o bem cósmico, e aquelas entidades de mal cósmico, exibindo muitos nomes e categorizando-se em diferentes grupos, como se associados com os elementos e ao mesmo tempo transcendendo-os: pois existem os Seres da Água, ocultos nas profundezas; aqueles do Ar, que são os espreitadores primais de além do tempo; aqueles da Terra, horríveis sobreviventes animados de eras distantes. Há muito e muito tempo, os Anciões baniram dos lugares cósmicos os Malignos, aprisionando-os em muitos locais; mas com o tempo esses Malignos geraram lacaios infernais, que começaram a prepará-los para seu retorno à grandeza. Os Anciões não têm nomes, mas seu poder e vontade aparentemente sempre será maior, o suficiente para deter o poder dos outros.
“Agora, entre os Malignos aparentemente muitas vezes há conflito, bem como entre os seres inferiores. Os Seres da Água opõem-se aos do Ar; os Seres do Fogo opõem-se aos Seres da Terra, porém mesmo assim juntos odeiam e temem os Deuses Anciões e esperam sempre derrotá-los em algum tempo futuro. Entre os papéis de meu Tio Amos, aparecem muitos nomes temíveis, escritos em sua caligrafia difícil: Grande Cthulhu, Lago de Hali, Tsathoggua, Yog-Sothoth, Nyarlathotep, Azathoth, Hastur o Indizível, Yuggoth, Aldones, Thale, Aldebaran, as Híades, Carcosa, e outros nomes; e é possível dividir alguns desses nomes em classes vagamente sugestivas, a partir dessas notas que são a mim inteligíveis – embora muitas apresentem mistérios insolúveis, que não posso esperar penetrar algum dia; e muitas estão também escritas em idioma que não conheço, junto a símbolos e sinais enigmáticos e estranhamente assustadores. Mas através do que aprendi, é possível saber que o Grande Cthulhu é um dos Seres da Água, enquanto Hastur é um dos Seres que espreitam os espaços estelares; e é possível inferir, a partir dessas pistas vagas nesses livros proibidos, onde estão alguns desses seres. De modo que posso crer que, nesta mitologia, o Grande Cthulhu foi banido para um lugar sob os mares da Terra, enquanto Hastur foi lançado ao espaço exterior, aquele lugar onde as estrelas negras encontram-se, indicado como Aldebarã da Híades, que é o lugar mencionado por Chambers, que estava por sua vez repetindo a Carcosa de Bierce.
“À luz dessas coisas, da comunicação do sacerdote tibetano, posso certamente tornar claro um fato: Haddon, certamente, além de qualquer sombra de dúvida, Aquele Que Não Deve Ser Nomeado não pode ser outro senão Hastur, o Indizível!”
O súbito cessar de sua voz perturbou-me; havia algo hipnótico em seus ávidos sussurros, e algo que também me enchia de uma convicção muito além do poder das palavras de Paul Tuttle. Em algum lugar lá no fundo, nos recessos de minha mente, uma corda havia sido tangida, uma conexão mnemônica que não conseguia descartar, e que deixou-me com uma sensação de antiguidade ilimitada, uma ponte cósmica para outro lugar e outro tempo.
“Parece lógico,” Disse por fim, com cautela.
“Lógico, Haddon, é decerto lógico; deve ser lógico!” exclamou ele.
“Considerando que seja isso mesmo,” Eu disse, “Que deduz daí?”
“Veja só, considerando que seja isso mesmo,” ele prosseguiu com ânsia, “sabemos que meu Tio Amos prometeu oferecer um refúgio em preparo para o retorno de Hastur, vindo de qualquer seja a região do espaço exterior que agora o aprisiona. Onde seja isto, ou que tipo de lugar seja, até então não me preocupei em saber, embora possa talvez cogitar. Este não é tempo de cogitações, e ainda assim parece, a partir de certas outras evidências à mão, que podem haver outras deduções permissíveis a serem feitas. A primeira e mais importante delas é de natureza dupla – ergo, algo imprevisto impediu o retorno de Hastur, durante a vida de meu tio, e ainda assim, algum outro ser tornou-se manifesto.” Neste ponto ele fitou-me com franqueza incomum e não pouco nervoso. “Quanto à evidência desta manifestação, seria de bom alvitre não falar dela agora. É suficiente dizer que acredito ter tal evidência ao alcance. Retornemos então à minha premissa original.
“Entre as poucas anotações marginais feitas por meu tio, existem duas ou três especificamente notáveis no Texto de R'lyeh; de fato, à luz do que é conhecido, ou que pode justificadamente ser inferido, são notas sinistras e agourentas.”
Assim falando, abriu o antigo manuscrito e passou para um ponto bem próximo ao começo da narrativa.
“E agora preste atenção, Haddon,” disse ele, e eu levantei e curvei-me sobre ele para observar a caligrafia aracnídea e quase ilegível que eu sabia ser de Amos Tuttle. “Observe a linha de texto que está sublinhada: Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’ nagl fhtagn, e o que se segue foi escrito, sem qualquer dúvida, pela mão de meu tio: Seus lacaios preparando sua vinda, e ele não mais está sonhando? (WT: 2/28) e numa data mais recente, a julgar pela mão trêmula que aqui escreveu, uma única abreviação: Inns! Fica óbvio que isto não significa nada, sem uma tradução do texto. Sem isso, quando vi pela primeira vez a nota, voltei minha atenção à notação em parênteses, e em pouco tempo resolvi seu significado como sendo uma referência a uma revista popular, a Weird Tales, exemplar de fevereiro de 1928. Aqui a tem.”
Ele abriu a revista junto ao texto sem sentido, ocultando parcialmente as linhas que começaram a assumir uma inaudita atmosfera de idade sobrenatural perante meus olhos, e logo abaixo da mão de Paul Tuttle estava a primeira página de uma história que obviamente pertencia a essa inacreditável mitologia diante da qual eu não conseguia reprimir um começo de atordoamento. O título, apenas parcialmente coberto pela mão dele, era O Chamado de Cthulhu, de H.P. Lovecraft. Mas Tuttle não se deteve na primeira página; foi bem ao cerna da história, antes de pausar e apresentar a meus olhos a linha, idêntica e ilegível, que estava abaixo da escrita difícil de Amos Tuttle, no incrivelmente raro Texto de R'lyeh, sobre o qual repousava a revista. E ali, apenas um parágrafo abaixo, aparecia o que se passava por uma tradução de um idioma totalmente desconhecido do Texto: em sua casa de R'lyeh, o morto Cthulhu espera sonhando.
“E aqui está,” continuou Tuttle com certa satisfação, “Cthulhu também aguarda pelo tempo de seu ressurgimento – quantas eras, ninguém saberá dizer; mas meu tio questionou se Cthulhu ainda continuava sonhando, e seguindo isto, escreveu e sublinhou duas vezes uma abreviação que só pode significar Innsmouth! Isto, junto com as coisas macabras mal descritas nesta história reveladora, que passa por obra de ficção, abre uma visão de um horror jamais sonhado, um horror maléfico e ancilário.”
“Bom Deus!” Exclamei involuntariamente. “Certamente você não acha que esta fantasia ganhou vida?”
Tuttle voltou-se e me ofereceu um olhar estranhamente distante. “O que eu acho, não importa, Haddon,” replicou de maneira grave. “Mas há uma coisa que eu gostaria bastante que você soubesse – o que aconteceu em Innsmouth? O que aconteceu ali, por décadas, que fez as pessoas evitarem o lugarejo? Por qual razão este antes próspero porto caiu no esquecimento, com metade de suas casas vazias, suas propriedades praticamente sem valor? E por qual razão foi necessário que homens do governo explodissem rua após rua de armazéns e residências de sua orla? E por fim, por qual razão, diacho, enviaram um submarino para torpedear os espaços marinhos além do Recife do Diabo, ali perto de Innsmouth?"
“Não sei nada sobre isso,” repliquei. Mas ele não prestou atenção; levantou a voz um pouco, incerta e trêmula, dizendo, “Posso dizer a razão, Haddon. É como meu Tio Amos escreveu: o Grande Cthulhu despertou novamente!”
Por um momento senti um tremor; e então disse, “Mas é Hastur que ele estava esperando.”
“Precisamente,” concordou Tuttle numa voz direta e profissional. “Então gostaria de saber quem, ou o quê, caminha pela terra, nas horas sombrias em que Fomalhaut ascende e as Híades estão no leste!”
(continua...)
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.
NA VERDADE, COMEÇOU há muito tempo: há quanto tempo, não ousaria dizer, mas no que diz respeito à minha conexão com o caso que arruinou minha carreira e trouxe dúvidas aos médicos quanto à minha sanidade, começou com a morte de Amos Tuttle. Foi numa noite de fins de inverno, com o vento sul soprando a vinda da primavera. Estava eu na antiga Arkham, assombrada pelas lendas, naquele dia; ele soube da minha presença pelo dr. Ephraim Sprague, que o atendia, e fez com que o médico chamasse a Lewiston House e trouxesse-me àquela propriedade lúgubre na Estrada Aylesbury, próxima a Innsmouth Turnpike. Não seria um lugar onde eu gostaria de estar, mas o velho pagava-me o suficiente para que eu tolerasse seu jeito tristonho e sua excentricidade, e Sprague havia deixado claro que ele estava moribundo: suas horas estavam contadas.
E de fato era o caso. O velho mal teve forças para fazer com que Sprague saísse do aposento e então falar comigo, embora sua voz estivesse clara o suficiente, saindo com pouca dificuldade.
“Você conhece minha vontade testamentária,” disse ele. “Cumpra-a ao pé da letra.”
Essa havia sido uma questão polêmica entre nós, devido a seu desejo de que, antes que seu herdeiro e único sobrinho sobrevivente, Paul Tuttle, pudesse clamar a propriedade, a casa devesse ser destruída – não derrubada, mas destruída, junto com certos livros designados pelo número de prateleira, em suas instruções finais. Seu leito de morte não era lugar para debater novamente aquela ideia de destruição gratuita; assenti, e aceitei a ordem. Teria sido melhor sorte se eu tivesse obedecido sem questionar!
“Veja só,” continuou, “há um livro lá embaixo, que você deve devolver à biblioteca da Universidade Miskatonic.”
Falou-me do título. Naquele momento não significava nada para mim; mas a partir daí tornara-se para mim, mais do que eu possa descrever – símbolo de um horror ancilário, de coisas enlouquecedoras além do véu da vida cotidiana e prosaica – a tradução latina do abominável Necronomicon, de autoria do árabe louco Abdul Alhazred.
Encontrei o livro com facilidade. Pelas últimas décadas de sua vida, Amos Tuttle havia vivido em reclusão cada vez maior, entre livros coletados em toda parte do globo; textos antigos, roídos pelas traças, com títulos que apavorariam um homem menos rijo – o sinistro De Vermis Mysteriis, de Ludwig Prinn, o terrível Culte de Ghoules do Comte d'Erlette, o condenável Unaussprechlichen Kulten de von Juntz. Não sabia então o quão raros eram esses livros, nem compreendia a raridade sem preço de certas peças fragmentárias: o aterrorizante Livro de Eibon, os Manuscritos Pnakóticos, cheios de passagens horrorosas, e o temível Texto de R'lyeh; pois estes, descobrir ao examinar os balancetes, depois da morte de Amos, haviam sido comprados por somas fabulosas. Mas em parte alguma eu encontraria um número tão alto quanto aquele pago pelo Texto de R'lyeh, que havia chegado a ele de alguma parte do interior sombrio da Ásia; de acordo com os arquivos, ele havia pago não menos que cem mil dólares pelo livro; mas além disso, no registro do manuscrito amarelado, havia uma notação que me confundiu na época, mas que me dá ânsia pressagiosa em relembrar – depois da menção da soma, Amos Tuttle havia escrito, com sua caligrafia de teia de aranha: além do cumprimento da promessa.
Estes fatos não aconteceram até que Paul Tuttle tomasse posse, mas antes disso, várias ocorrências estranhas aconteceram, coisas que deveriam ter levantado minhas suspeitas quanto às lendas interioranas que falam de poderosas influências sobrenaturais ligadas à casa antiga. A primeira dessas ocorrências foi de pouca consequência, comparada às outras; aconteceu apenas que, ao devolver o Necronomicon à biblioteca da Universidade Miskatonic, em Arkham, encontrei-me levado por uma bibliotecária de lábios franzidos, direto ao escritório do diretor, Dr. Llanfer, que pediu-me diretamente para que eu explicasse a razão pela qual o livro estava em minhas mãos. Sem hesitação em responder, descobri que o raro volume jamais recebera permissão para sair da biblioteca e que, na verdade, Amos Tuttle o havia subtraído em uma de suas raras visitas, após ter falhado em persuadir o Doutor Llanfer a emprestá-lo. E Amos havia sido astuto o suficiente ao preparar de antemão uma imitação maravilhosamente razoável do livro, com a encadernação quase idêntica, e a reprodução do título e de suas páginas iniciais reproduzidas de memória; na ocasião de seu furto do livro do árabe louco, Amos havia substituído a imitação pelo original e saído com uma das duas únicas cópias disponíveis desta obra temida no continente norte-americano e uma das cinco conhecidas no mundo.
A segunda das ocorrências foi um pouco mais alarmante, embora tenha a aparência de sair das histórias mais convencionais de casas assombradas. Tanto Paul Tuttle quanto eu ouvimos na casa, em momentos estranhos da noite, particularmente enquanto o cadáver de seu tio estava ainda lá, o som de passos acolchoados, mas com algo esquisito neles: não era como se os passos fossem dentro da casa, mas passos de alguma criatura de tamanho quase além da concepção do homem, andando uma boa distância nos subterrâneos, de modo que o som na verdade vibrava na casa, a partir das profundezas da terra abaixo desta. E quando faço referência a passos, é apenas por falta de uma melhor palavra para descrever os sons, pois não eram passos limpos mas sons esponjosos, gelatinosos, chapinhantes, feitos com a força de tanto peso, que o consequente tremor de terra naquele lugar não era mais que isso. Mas agora o barulho se foi, coincidentemente logo após termos despachado o cadáver de Amos Tuttle, 48 horas antes do planejado. Os sons, classificamos como apenas os assentamentos da terra ao longo da costa distante, não só porque não demos muito importância a eles, mas devido à coisa final que aconteceu antes de Paul Tuttle tomar posse oficial da velha casa na Estrada Aylesbury.
A última coisa foi a mais chocante de todas, e dos três que a presenciaram, apenas eu permaneço vivo hoje, já que o doutor Sprague faz um mês de morto hoje, mas na época fora ele que observou e disse, “Enterre-o logo!” E assim o fizemos, pois as mudanças no corpo de Amos Tuttle eram macabras além da compreensão, especialmente horríveis no que sugeriam, e assim porque o corpo não estava caindo em decadência visível, mas mudando sutilmente para outra coisa, infundindo-se de uma iridescência esquisita, que escurecia até o ponto de parecer quase ébano, e a aparência da carne de suas mãos inchadas e de seu rosto mostrava o crescimento de pequenas escamas. Da mesma forma haviam mudanças no formato de sua cabeça; parecia alongar-se, assumir uma forma curiosa e pisciana, acompanhada de uma leve emanação de cheiro de peixe, saindo do caixão; e o fato dessas mudanças não serem mera imaginação foi chocantemente comprovado quando o corpo foi depois encontrado no lugar para onde seu maligno sucessor havia levado, e lá, finalmente apodrecendo, outros viram comigo as terríveis e sugestivas mudanças que haviam ocorrido, embora devam dar graças que não tenham conhecimento do que aconteceu antes. Mas no período em que Amos Tuttle estava na casa velha, não haviam pistas do que estava para acontecer, e fomos rápidos em fechar o caixão e mais rápidos ainda em levá-lo até o mausoléu dos Tuttle, coberto de hera, no cemitério de Arkham.
Naquela época, Paul Tuttle estava no final da casa dos quarenta anos, mas como muitos homens de sua geração, tinha o rosto e a constituição de um jovem de vinte. De fato, a única pista de sua idade estava nos leves toques de cinza no cabelo de seu bigode e têmperas. Ele era um homem alto e de cabelos escuros, um tanto acima do peso, com olhos azuis e francos, que anos de pesquisa erudita não haviam reduzido à necessidade de óculos. Ele não ignorava os termos da lei, pois rapidamente nos fez saber que se eu, como executor testamentário de seu tio, não estivesse disposto a ignorar a cláusula que ordenava a destruição da casa na Estrada Aylesbury, contestaria em juízo com base na insanidade de Amos Tuttle. Apontei a ele que ele estaria sozinho contra mim e o dr. Sprague, mas ao mesmo tempo não estava cego ao fato de que a irrazoabilidade da ordem poderia muito bem nos trazer uma derrota jurídica; e além disso, eu mesmo considerava a cláusula, nesse sentido, esquisitamente gratuita e sem sentido nesse apelo à destruição, e não estava preparado para lutar no tribunal por uma questão tão menor. Ainda assim, se tivesse previsto o que viria depois, teria atendido ao último pedido de Amos Tuttle, não importando qualquer decisão da corte. Contudo, tal capacidade de previsão não me ocorreu.
Eu e Tuttle fomos ver o juiz Wilton, e expomos o caso a ele. O juiz concordou conosco que a destruição da casa parecia desnecessária, e mais de uma vez fez sutil menção de concordar com a crença de Paul Tuttle na insanidade de seu falecido tio.
“O velho parecia alienado, sempre o conheci assim,” disse secamente. “Quanto a você, Haddon, poderia levantar-se no tribunal e jurar que ele era absolutamente são?”
Lembrando, com certo desconforto, o roubo do Necronomicon na Universidade Miskatonic, tive de confessar que não poderia fazê-lo.
De modo que Paul Tuttle tomou posse da propriedade na Estrada Aylesbury, e eu retornei a meu escritório advocatício em Boston, não exatamente descontente com a resolução das coisas, mas ainda assim sentindo um desconforto oculto, difícil de ser definido, uma sensação insidiosa de tragédia iminente, com certeza também alimentada por minha memória do que havia visto no caixão de Amos Tuttle, antes que este fosse selado e trancado no secular mausoléu do cemitério de Arkham.
II
Não muito tempo depois, mais uma vez fui ter com os telhados de duas águas e balaustradas georgianas da cidade de Arkham, amaldiçoada pelas bruxas, e estava então lá a serviço de um cliente que desejava assegurar que sua propriedade na antiga Innsmouth fosse protegida dos agentes governamentais e policiais que haviam tomado posse dessa temida e assombrada aldeia, embora não houvesse passado apenas alguns meses desde as misteriosa dinamitação dos blocos de prédios da orla, e de parte daquele terror – o Recife do Diabo, erguido no mar logo além – mistério que fora cuidadosamente guardado e oculto desde então, embora eu houvesse lido um artigo que se propunha a revelar os verdadeiros fatos do horror de Innsmouth, um manuscrito publicado privadamente, escrito por um autor de Providence. Seria impossível, naquele momento, ir até Innsmouth, porque o Serviço Secreto havia fechado todas as estradas que levavam até lá; contudo, redigi representações para as pessoas apropriadas e recebi uma confirmação de que a propriedade de meu cliente seria totalmente protegida, já que estava longe da orla; de modo que procedi a lidar com outras pequenas questões em Arkham.
Fui almoçar, naquele dia, num pequeno restaurante próximo à Universidade Miskatonic, e enquanto ali, fui abordado por uma voz familiar. Olhei e vi o dr. Llanfer, diretor da biblioteca da universidade. Ele parecia um tanto irritado, e suas feições traíam claramente seu estado. Convidei-o a partilhar de minha mesa, mas ele recusou; contudo, sentou-se, por assim dizer, na ponta da cadeira.
“Você tem visto Paul Tuttle?” perguntou abruptamente.
“Pensei em visitá-lo esta tarde,” repliquei. “Aconteceu algo errado?”
Ele ruborizou, com um ar um tanto culpado. “Não posso dizer com certeza,” respondeu firme. “Mas correm alguns rumores medonhos em Arkham. E o Necronomicon sumiu novamente.
“Bom Deus! Certamente não está acusando Paul Tuttle de tê-lo roubado?” Exclamei, numa mescla de surpresa e incômodo. “Não consigo imaginar que uso ele poderia dar a esse livro.”
“Ainda assim – está nas mãos dele,” persistiu o dr. Llanfer. “Mas não penso que ele o roubou, e gostaria que não pense que eu disse isso. É da minha opinião que um de nossos atendentes passou o livro para ele, e agora está relutante em confessar a enormidade de seu erro. Mas qualquer que seja a verdade, o livro ainda não reapareceu, e temo que teremos de ir atrás dele.”
“Eu poderia perguntar a Paul sobre o livro,” disse.
“Se fizer isso, ficarei grato,” respondeu o dr. Llanfer, com uma certa avidez. “Imagino que não ouviu nada dos rumores que andam por aqui?”
Balancei a cabeça negativamente.
“Muito provavelmente, apenas o resultado de alguma mente imaginativa,” continuou, mas seu ar sugeria que ele não estava disposto ou apto a aceitar uma explicação tão prosaica. “Parece que os passantes da Estrada Aylesbury ouvem estranhos ruídos à noite avançada, todos aparentemente emanando da casa Tuttle.”
“Que ruídos?” Perguntei, e não sem uma apreensão imediata.
“Aparentemente, ruídos de passadas; ainda assim, sei que ninguém pôde precisar a natureza desses ruídos, salvo um jovem que os caracterizou como esponjosos, e que disse que soaram como se fossem de algo grande, andando no lodo e água próximos.”
Os estranhos ruídos que Paul Tuttle e eu ouvimos na noite seguinte à morte de Amos Tuttle passaram em minha mente, mas nesta menção de passadas, feita pelo dr. Llanfer, a memória de tudo que havia ouvido voltou. Temi ter demonstrado isso de alguma forma, pois o dr. Llanfer percebeu meu súbito interesse; felizmente ele escolheu interpretá-lo como evidência de que eu havia escutado alguma coisa dos tais rumores, mesmo que eu tivesse dito o contrário. Preferi não corrigi-lo nesse sentido, e ao mesmo tempo experimentei um repentino desejo de não ouvir mais nada sobre o assunto; de modo que não pressionei-o em busca de detalhes adicionais, e quando ele levantou para retornar a seus deveres, deixou-me com a promessa de perguntar a Paul Tuttle sobre o livro perdido.
Sua história, por mais rasa que fosse, ainda assim soava uma nota de alarme dentro de mim; não consegui evitar lembrar as várias coisinhas que mantinha na memória – os passos que ouvimos, a estranha cláusula do testamento de Amos Tuttle, a horrenda metamorfose de seu cadáver. Já havia uma leve suspeita em minha mente, de que alguma sinistra cadeia de eventos estava manifestando-se ali; minha curiosidade natural atiçou-me, não sem uma certa sensação de desagrado, desejo consciente de evitar o caso, e a recorrência daquela estranha e insidiosa convicção de tragédia iminente. Mas estava determinado a ver Paul Tuttle o mais cedo possível.
Meu trabalho em Arkham consumiu toda a tarde, e somente no crepúsculo consegui estar diante da massiva porta de carvalho da velha casa Tuttle, na Estrada Aylesbury. Minha batida um tanto hesitante foi atendida pelo próprio Paul, que veio espreitar a noite crescente com sua lâmpada em mãos.
“Haddon!”, exclamou, abrindo mais a porta. “Pode entrar!”
Estava genuinamente grato em ver-me, disso não podia duvidar, pois a nota de entusiasmo em sua voz excluía quaisquer outras suposições. A afabilidade de suas boas-vindas também serviram-me para confirmar minha intenção de não falar dos rumores que ouvira, e proceder as perguntas sobre o Necronomicon no seu devido tempo. Lembrei que logo antes da morte de seu tio, Tuttle estava trabalhando num tratado filosófico ligado ao desenvolvimento do idioma indígena Sac, e passei a perguntar sobre o artigo, como se não houvesse nada mais importante.
“Já jantou, imagino,” disse Tuttle, levando-me pelo corredor para a biblioteca.
Respondi que já havia comido em Arkham.
Ele colocou a lâmpada sobre uma mesa cheia de livros, empurrando alguns papéis para o lado, ao fazê-lo. Convidando-me a sentar, ele voltou à cadeira que ele havia evidentemente deixado para atender à porta. Percebi nesse momento que ele estava um tanto desgrenhado, e que havia permitido que sua barba crescesse. Também havia engordado um pouco, sem dúvida consequência de seus estudos reforçados, que traziam confinamento à casa e falta de exercícios físicos.
“E quanto ao tratado Sac?” Perguntei.
“Coloquei-o de lado,” respondeu rápido. “Pode ser que o retome mais tarde. Mas agora, estou preso a algo bem mais importante – o quão importante, ainda não posso precisar.”
Vi então que os livros nas mesas não era os mesmos tomos eruditos que havia visto em sua mesa de Ipswich, mas com alguma apreensão, notei que eram os mesmos livros condenados pelas explícitas instruções do tio de Tuttle, e uma olhadela na direção dos espaços vazios nas prateleiras proscritas veio a confirmar o fato.
Tuttle voltou-se para mim com avidez e abaixou a voz, como se com medo de ser ouvido. “Na verdade, Haddon, é algo colossal – um gigantesco feito da imaginação, se não fosse por isso: não tenho mais certeza de que é algo imaginado, de fato, não tenho mais certeza. Fiquei imaginando qual seria a razão por trás da cláusula do testamento de meu tio; não podia compreender a razão pela qual a casa deveria ser destruída, e imaginei que a razão deveria estar nas páginas dos livros que ele tão cuidadosamente condenou. E estava certo.” Ele gesticulou em direção ao incunábulo à sua frente. “De modo que os examinei e posso dizer que descobri coisas de tal incrível estranheza, de tal horror bizarro, que às vezes hesito em aprofundar-me no mistério. Francamento, Haddon, a coisa que descobri é tão alienígena, e devo dizer que envolveu considerável pesquisa da minha parte, além de ler os livros coletados pelo Tio Amos.”
“Certo,” disse secamente. “E ouso dizer que você viajou bastante para tal?”
Abanou a cabeça negativamente. “De forma alguma, exceto uma viagem à Biblioteca da Universidade Miskatonic. O fato é que descobri poder conseguir o que queria através de carta. Lembra-se dos documentos de meu tio? Bem, descobri entre eles que Tio Amos pagou cem mil por um certo manuscrito encadernado – encadernado em pele humana, aliás – junto a uma linha enigmática: além do cumprimento da promessa. Comecei a perguntar-me que promessa Tio Amos poderia ter feito e a quem; se ao homem ou mulher que o vendera o Texto de R'lyeh, ou outra pessoa. Procedi portanto procurando o nome do homem que a ele vendera o livro, e cheguei a seu endereço: é um certo sacerdote chinês, do Tibete interior, e escrevi para ele. Sua resposta chegou há cerca de uma semana.”
Curvou-se e remexeu rapidamente nos papéis da mesa, até que encontrou o que buscava e passou-me.
“Escrevi em nome de meu tio, não confiando totalmente na transação, e mais ainda, escrevi como se tivesse esquecido ou tivesse esperança de evitar a promessa,” ele continuou. “Sua resposta é tão enigmática quanto a notação de meu tio.
De fato assim era, pois o papel amarrotado que me foi passado exibia, numa estranha caligrafia forçada, uma única linha, sem assinatura nem data: Oferecer um refúgio Àquele que Não Deve Ser Nomeado.
Ouso dizer que fitei Tuttle com uma estupefação que era espelhada claramente nos olhos dele, já que sorriu antes de responder.
“Não significa nada para você, certo? Nem significava nada para mim, quando li pela primeira vez. Mas não por muito tempo. Para compreender o que se segue, deve conhecer pelo menos um breve esboço da mitologia – se de fato trata-se de mitologia – na qual o mistério se enraíza. Meu Tio Amos aparentemente sabia dela e nela acreditava, pois as várias notas espalhadas nas margens dos livros proscritos aludem a um conhecimento muito além do meu. Aparentemente, a mitologia advém de uma fonte em comum de nossa Gênese lendária, mas com apenas umas poucas similaridades; às vezes sou tentado a dizer que esta mitologia é mais antiga que qualquer outra – certamente em suas implicações vai muito além das outras, sendo cósmica e imemorial, pois seus seres são de duas naturezas distintas: os Antigos, ou Deuses Anciões, simbolizando o bem cósmico, e aquelas entidades de mal cósmico, exibindo muitos nomes e categorizando-se em diferentes grupos, como se associados com os elementos e ao mesmo tempo transcendendo-os: pois existem os Seres da Água, ocultos nas profundezas; aqueles do Ar, que são os espreitadores primais de além do tempo; aqueles da Terra, horríveis sobreviventes animados de eras distantes. Há muito e muito tempo, os Anciões baniram dos lugares cósmicos os Malignos, aprisionando-os em muitos locais; mas com o tempo esses Malignos geraram lacaios infernais, que começaram a prepará-los para seu retorno à grandeza. Os Anciões não têm nomes, mas seu poder e vontade aparentemente sempre será maior, o suficiente para deter o poder dos outros.
“Agora, entre os Malignos aparentemente muitas vezes há conflito, bem como entre os seres inferiores. Os Seres da Água opõem-se aos do Ar; os Seres do Fogo opõem-se aos Seres da Terra, porém mesmo assim juntos odeiam e temem os Deuses Anciões e esperam sempre derrotá-los em algum tempo futuro. Entre os papéis de meu Tio Amos, aparecem muitos nomes temíveis, escritos em sua caligrafia difícil: Grande Cthulhu, Lago de Hali, Tsathoggua, Yog-Sothoth, Nyarlathotep, Azathoth, Hastur o Indizível, Yuggoth, Aldones, Thale, Aldebaran, as Híades, Carcosa, e outros nomes; e é possível dividir alguns desses nomes em classes vagamente sugestivas, a partir dessas notas que são a mim inteligíveis – embora muitas apresentem mistérios insolúveis, que não posso esperar penetrar algum dia; e muitas estão também escritas em idioma que não conheço, junto a símbolos e sinais enigmáticos e estranhamente assustadores. Mas através do que aprendi, é possível saber que o Grande Cthulhu é um dos Seres da Água, enquanto Hastur é um dos Seres que espreitam os espaços estelares; e é possível inferir, a partir dessas pistas vagas nesses livros proibidos, onde estão alguns desses seres. De modo que posso crer que, nesta mitologia, o Grande Cthulhu foi banido para um lugar sob os mares da Terra, enquanto Hastur foi lançado ao espaço exterior, aquele lugar onde as estrelas negras encontram-se, indicado como Aldebarã da Híades, que é o lugar mencionado por Chambers, que estava por sua vez repetindo a Carcosa de Bierce.
“À luz dessas coisas, da comunicação do sacerdote tibetano, posso certamente tornar claro um fato: Haddon, certamente, além de qualquer sombra de dúvida, Aquele Que Não Deve Ser Nomeado não pode ser outro senão Hastur, o Indizível!”
O súbito cessar de sua voz perturbou-me; havia algo hipnótico em seus ávidos sussurros, e algo que também me enchia de uma convicção muito além do poder das palavras de Paul Tuttle. Em algum lugar lá no fundo, nos recessos de minha mente, uma corda havia sido tangida, uma conexão mnemônica que não conseguia descartar, e que deixou-me com uma sensação de antiguidade ilimitada, uma ponte cósmica para outro lugar e outro tempo.
“Parece lógico,” Disse por fim, com cautela.
“Lógico, Haddon, é decerto lógico; deve ser lógico!” exclamou ele.
“Considerando que seja isso mesmo,” Eu disse, “Que deduz daí?”
“Veja só, considerando que seja isso mesmo,” ele prosseguiu com ânsia, “sabemos que meu Tio Amos prometeu oferecer um refúgio em preparo para o retorno de Hastur, vindo de qualquer seja a região do espaço exterior que agora o aprisiona. Onde seja isto, ou que tipo de lugar seja, até então não me preocupei em saber, embora possa talvez cogitar. Este não é tempo de cogitações, e ainda assim parece, a partir de certas outras evidências à mão, que podem haver outras deduções permissíveis a serem feitas. A primeira e mais importante delas é de natureza dupla – ergo, algo imprevisto impediu o retorno de Hastur, durante a vida de meu tio, e ainda assim, algum outro ser tornou-se manifesto.” Neste ponto ele fitou-me com franqueza incomum e não pouco nervoso. “Quanto à evidência desta manifestação, seria de bom alvitre não falar dela agora. É suficiente dizer que acredito ter tal evidência ao alcance. Retornemos então à minha premissa original.
“Entre as poucas anotações marginais feitas por meu tio, existem duas ou três especificamente notáveis no Texto de R'lyeh; de fato, à luz do que é conhecido, ou que pode justificadamente ser inferido, são notas sinistras e agourentas.”
Assim falando, abriu o antigo manuscrito e passou para um ponto bem próximo ao começo da narrativa.
“E agora preste atenção, Haddon,” disse ele, e eu levantei e curvei-me sobre ele para observar a caligrafia aracnídea e quase ilegível que eu sabia ser de Amos Tuttle. “Observe a linha de texto que está sublinhada: Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’ nagl fhtagn, e o que se segue foi escrito, sem qualquer dúvida, pela mão de meu tio: Seus lacaios preparando sua vinda, e ele não mais está sonhando? (WT: 2/28) e numa data mais recente, a julgar pela mão trêmula que aqui escreveu, uma única abreviação: Inns! Fica óbvio que isto não significa nada, sem uma tradução do texto. Sem isso, quando vi pela primeira vez a nota, voltei minha atenção à notação em parênteses, e em pouco tempo resolvi seu significado como sendo uma referência a uma revista popular, a Weird Tales, exemplar de fevereiro de 1928. Aqui a tem.”
Ele abriu a revista junto ao texto sem sentido, ocultando parcialmente as linhas que começaram a assumir uma inaudita atmosfera de idade sobrenatural perante meus olhos, e logo abaixo da mão de Paul Tuttle estava a primeira página de uma história que obviamente pertencia a essa inacreditável mitologia diante da qual eu não conseguia reprimir um começo de atordoamento. O título, apenas parcialmente coberto pela mão dele, era O Chamado de Cthulhu, de H.P. Lovecraft. Mas Tuttle não se deteve na primeira página; foi bem ao cerna da história, antes de pausar e apresentar a meus olhos a linha, idêntica e ilegível, que estava abaixo da escrita difícil de Amos Tuttle, no incrivelmente raro Texto de R'lyeh, sobre o qual repousava a revista. E ali, apenas um parágrafo abaixo, aparecia o que se passava por uma tradução de um idioma totalmente desconhecido do Texto: em sua casa de R'lyeh, o morto Cthulhu espera sonhando.
“E aqui está,” continuou Tuttle com certa satisfação, “Cthulhu também aguarda pelo tempo de seu ressurgimento – quantas eras, ninguém saberá dizer; mas meu tio questionou se Cthulhu ainda continuava sonhando, e seguindo isto, escreveu e sublinhou duas vezes uma abreviação que só pode significar Innsmouth! Isto, junto com as coisas macabras mal descritas nesta história reveladora, que passa por obra de ficção, abre uma visão de um horror jamais sonhado, um horror maléfico e ancilário.”
“Bom Deus!” Exclamei involuntariamente. “Certamente você não acha que esta fantasia ganhou vida?”
Tuttle voltou-se e me ofereceu um olhar estranhamente distante. “O que eu acho, não importa, Haddon,” replicou de maneira grave. “Mas há uma coisa que eu gostaria bastante que você soubesse – o que aconteceu em Innsmouth? O que aconteceu ali, por décadas, que fez as pessoas evitarem o lugarejo? Por qual razão este antes próspero porto caiu no esquecimento, com metade de suas casas vazias, suas propriedades praticamente sem valor? E por qual razão foi necessário que homens do governo explodissem rua após rua de armazéns e residências de sua orla? E por fim, por qual razão, diacho, enviaram um submarino para torpedear os espaços marinhos além do Recife do Diabo, ali perto de Innsmouth?"
“Não sei nada sobre isso,” repliquei. Mas ele não prestou atenção; levantou a voz um pouco, incerta e trêmula, dizendo, “Posso dizer a razão, Haddon. É como meu Tio Amos escreveu: o Grande Cthulhu despertou novamente!”
Por um momento senti um tremor; e então disse, “Mas é Hastur que ele estava esperando.”
“Precisamente,” concordou Tuttle numa voz direta e profissional. “Então gostaria de saber quem, ou o quê, caminha pela terra, nas horas sombrias em que Fomalhaut ascende e as Híades estão no leste!”
(continua...)
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sexta-feira, 22 de junho de 2012
O ANDARILHO DO PÓ
Clark Ashton Smith
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.
…Os antigos magos o conheciam, e o nomearam Quachil Uttaus. Poucas vezes é ele revelado: pois habita além do mais exterior dos círculos, no limbo soturno do tempo e espaço não-esféricos. Temível é a palavra que o convoca, palavra jamais pronunciada exceto em pensamentos: Pois Quachil Uttaus é a corrupção definitiva; e o momento de sua chegada é como a passagem de muitas eras; e nem a carne, nem a pedra, podem suportar suas andanças, pois todas as coisas ruem sob seus pés, átomo por átomo. E por esta razão, alguns o têm chamado O Andarilho do Pó.
-- Testamento de Carnamagos
Foi após intermináveis debates e argumentações consigo mesmo, após muitas tentativas de exorcizar a legião incorpórea e turva de seus medos, que John Sebastian retornou à causa que havia deixado tão apressadamente. Havia estado ausente por três dias; mas mesmo isto fora uma interrupção sem precedentes na vida reclusa e erudita a qual havia entregado-se totalmente após herdar a velha Mansão, junto com uma generosa quantia. Em momento algum havia definido por completo as razões de sua fuga: todavia a fuga parecera obrigatória. Havia uma certa urgência medonha que o impelira; mas agora, que havia se resolvido a retornar, a urgência havia estabelecido-se na forma de nervos exaustos pela dedicação excessivamente íntima e prolongada a seus livros. Ele havia imaginado certas coisas: mas essas coisas imaginadas eram patentemente absurdas e sem base alguma.
Mesmo se o fenômeno que o havia perturbado não fosse de todo imaginário, deveria haver alguma solução natural que não havia pensado com sua mente sobrecarregada. O amarelar súbito de um caderno recém-comprado, o desfazer das bordas das folhas, eram sem dúvida devido a imperfeições latentes do papel; e o estranho desvanecer de seus registros que, quase do dia para a noite, haviam tornado-se tênues, como se fossem escrita antiga – era claramente resultado de substâncias químicas baratas e falhas na tinta. O aspecto de antiguidade bruta, quebradiça e roída por vermes, que havia manifestado-se em certos elementos da mobília, certas porções da mansão, não mais era que a súbita revelação de uma desintegração oculta, que havia ocorrido sem que ele notasse, enquanto estava absorto pela dedicação meticulosa às pesquisas soturnas. E foi a mesma dedicação, com seus anos contínuos de esforço e confinamento, que trouxe seu envelhecimento prematuro; de modo que, ao contemplar-se no espelho, na manhã de sua fuga, ficara chocado e apavorado como se diante da aparição de uma múmia encarquilhada. Quanto ao criado, Timmers – bem, Timmers já era velho, e todos lembravam-se dele assim. Fora apenas o exagero dos nervos doentes que recentemente pensou ver em Timmers uma decrepitude tão extrema que o faria cair, sem o estado intermediário da morte, direto na podridão do túmulo.
De fato, podia explicar tudo que o havia perturbado, sem fazer referência aos conhecimentos selvagens e remotos, às demonologias e sistemas esquecidos que havia sondado. Aquelas passagens no Testamento de Carnagos, sobre as quais havia ponderado com esquisito desânimo, eram relevantes apenas aos horrores evocados por feiticeiros loucos de eras passadas.
Sebastian, firme em tais convicções, voltou à sua casa ao pôr do sol. Não tremia ou desfalecia quando cruzou o terreno que recebia a sombra dos pinheiros, e correu célere pelos degraus da fachada. Imaginou, embora sem certeza, se haviam de fato sinais de dilapidação nesses degraus; e a própria casa, conforme aproximava-se, parecia ter ficado um tanto derrubada, como se houvesse ocorrido erosão nos alicerces; mas isto, disse a si mesmo, era apenas ilusão trazida pelo crepúsculo que se iniciava.
Nenhuma lâmpada acesa, mas Sebastian não surpreendera-se com isto, pois sabia que Timmers, se deixado sozinho, costumava caminhar nas trevas como uma coruja senil, muito após o momento apropriado do acender das luzes. Sebastian, por outro lado, sempre havia tido aversão à escuridão ou mesmo às sombras; e recentemente a aversão havia aumentado bastante. Resoluto, acendeu todos os bulbos da casa tão logo a luz do dia começou a faltar. E agora resmungando sua irritação com a incompetência de Timmers, empurrou a porta e buscou apressado a fechadura do corredor.
Talvez devido a uma agitação nervosa que não percebera em si mesmo, perdeu um bom tempo sem achar o interruptor. O corredor era estranhamente sombrio e um reluzir do pôr-do-sol cinzento emanava entre os altos pinheiros para dentro do vão da porta por trás dele, mas sem conseguir penetrar além da soleira. Não conseguia enxergar coisa alguma; era como se a noite das eras mortas houvesse feito do corredor seu covil; e as narinas de Sebastian, ali onde ele havia parado, foram assaltadas por uma pungência seca, como se vinda de pó ancestral, odor como de cadáveres e caixões há muito indistintos na decadência pulverulenta.
Finalmente achara o interruptor; mas a iluminação que reagia era de algum modo tênue e insuficiente, e ele parecia detectar um pisca-pisca de sombras, como se o circuito estivesse falhando. Contudo ficou reconfortado em perceber que a casa, aparentemente, estava como ele a havia deixado. Talvez inconscientemente temesse encontrar os painéis de carvalho esfarelando-se numa podridão fragmentária, o tapete transformado em frangalhos comidos pelas traças; havia pensado ouvir o quebrar de tacos poderes sob seu andar.
E agora, imaginava, onde estava Timmers? O envelhecido faz-tudo, apesar de sua crescente senilidade, sempre havia sido rápido em atender; e muito embora não houvesse ouvido seu mestre entrar, o ligar das luzes teria sinalizado o retorno de Sebastian. Porém, muito embora Sebastian atentasse com dolorosa insistência, não ouvia o ranger dos familiares passos debilitados. O silêncio envolvia a tudo, como uma mortalha fúnebre e imperturbada.
Sem dúvida, pensou Sebastian, haveria alguma explicação mundana para tal. Timmers havia ido à aldeia próxima, talvez para reabastecer a despensa, ou na esperança de receber comunicação de seu mestre; e Sebastian havia dele se desencontrado, ao retornar da estação. Ou talvez o velho houvesse adoecido e agora jazesse vulnerável em seu quarto. Pressuroso com este último pensamento, foi direto ao dormitório de Timmers, que ficava no andar térreo, nos fundos da mansão. Estava vazio, e a cama estava primorosamente feita e obviamente não fora ocupada na noite anterior. Com um suspiro de alívio que pareceu retirar um horrendo íncubo de seu peito, decidiu Sebastian que a primeira conjectura estava correta.
Mas agora, ao esperar o retorno de Timmers, havia sentido nos nervos outro ato de inspiração, e marchou até o estúdio. Não admitia a si mesmo, com precisão, o que temia ver; mas à primeira vista, o aposento não havia mudado em nada, e todas as coisas estavam como no momento de sua partida apressada. A pilha alta e confusa de manuscritos, volumes e cadernos em sua mesa de escrever estava intocada por ninguém exceto sua própria mão; e as prateleiras da estante de livros, com seus acervos bizarros e aterrorizantes de autoridades em diabolismo, necromancia, goétia e em todas as ciências ridicularizadas ou proibidas, estavam imperturbadas e intactas. Sobre o velho atril, ou porta-livro, usado para os tomos mais pesados, estava o Testamento de Carnamagos, com sua capa marroquim e sua tranca de ossos humanos, estava aberto na mesma página que o havia assustado tão irracionalmente, com suas intimações sobrenaturais.
E então, ao passar para o espaço entre o atril e a mesa, percebeu pela primeira vez o inexplicável empoeiramento sobre tudo. O pó acumulava-se em toda parte; um pó fino e cinzento, como polvilho de átomos mortos. Havia coberto os manuscritos com um filme profundo, assentado-se espesso sobre as cadeiras, abajures e volumes; e os ricos vermelhos e amarelos como papoula das tapeçarias orientais eram desfeitos pelo acúmulo do pó. Era como se muitos anos desolados houvessem passado na câmara desde sua partida, e houvessem espanado de seus invólucros amortalhados a poeira de todas as coisas em ruínas. O mistério daquilo fez tremer Sebastian; pois ele sabia que o aposento havia sido varrido com rigor apenas três dias antes; e Timmers havia de espanar a cada manhã, cuidadosa e meticulosamente, durante sua ausência.
E agora o pó ascendia numa nuvem leve e rodopiante ao seu redor, preenchendo as narinas de Sebastian com o mesmo odor seco, como se oriundo de uma dissolução fantasticamente antiga, que o havia encontrado no corredor. Ao mesmo tempo percebeu o vento tempestuoso e frio que de alguma forma penetrava o aposento. Ele imaginara que uma das janelas havia sido deixada aberta, mas um olhar assegurou-o de que elas haviam sido fechadas por cortinas avassaladoras; e a porta havia se fechado por trás dele. O vento era leve como o suspirar de um fantasma, mas onde quer que passasse, levantava o fino pó sem peso, enchendo o ar e mais uma vez caindo numa lentidão imensa. Sebastian sentiu um estranho alarme, como se houvesse soprado nele um vento das dimensões desconhecidas, ou por uma oculta fenda de ruínas; e simultaneamente foi tomado por um paroxismo de tosse prolongada e violenta.
Ele não conseguira localizar a fonte do vento. Mas enquanto movia-se descuidado e impaciente, seu olhar foi atraído por uma pilha baixa e longa de pó cinzento, que até então havia sido oculto de sua visão pela mesa. Estava logo abaixo da cadeira que usava para escrever. Próximo à pilha de poeira estava o espanador usado por Timmers em sua rodada diária de limpeza.
Pareceu a Sebastian que o rigor de uma grande e letal frialdade havia invadido todo seu ser. Ele não conseguiu mexer-se por vários minutos, contemplando o inexplicável monturo. No centro deste via uma vaga depressão, que poderia ser a marca de uma pegada bastante diminuta, meio apagada pelos sopros de vento que evidentemente haviam levado muito do pó e espalhado-o pela câmara.
Finalmente o poder do movimento voltara a Sebastian. Sem reconhecer conscientemente o impulso que o impeliu a tal, abaixou-se para pegar o espanador. Mas quando seus dedos o tocaram, o cabo e as penas dissolveram-se em fina poeira que, assentada numa pequena pilha, preservava de maneira vaga os contornos do objeto original.
Uma fraqueza assolou Sebastian, como se o fardo da idade e mortalidade absolutas esmagasse seus ombros entre um instante e outro. Houve um rodopiar de sombras vertiginosas diante de seus olhos, sobre a luz da lâmpada, e ele pensou que desfaleceria, se não sentasse de imediato. Colocou a mão na cadeira ao seu lado – e a cadeira, com o toque, desfez-se instantaneamente em nuvens leves de pó, que assentavam-se atraídas pelo chão.
Depois disso – quanto tempo depois, não conseguiria precisar – encontrou-se sentado na cadeira alta, diante do trecho onde o Testamento de Carnamagos se abria. Surpreendeu-se de modo vago pela cadeira não ter-se desfeito sob seu peso. Assaltava-o novamente a urgência da fuga rápida e repentina daquela casa amaldiçoada; mas parecia que ele havia ficado velho demais, encarquilhado e débil demais; e que nada mais importava muito – nem mesmo aquele destino final apavorante que entrevia.
Agora, sentado num estado mesclando o terror e o estupor, seus olhos foram atraídos pelo volume magista diante de si: os escritos do sábio e vidente maligno Carnamagos, que foram recobrados mil anos passados, em alguma tumba greco-bactriana, e transcritos por um monge apóstata no grego original, usando o sangue de um monstro procriado por íncubos. Naquele volume estavam as crônicas dos grandes feiticeiros da antiguidade, e as histórias de demônios terrenos e ultracósmicos, e os encantamentos verdadeiros através dos quais os demônios poderiam ser controlados e dispensados. Sebastian, estudante profundo de tais conhecimentos, há muito acreditara que o livro era apenas uma lenda medieval; e ficara tanto espantado quanto gratificado quando encontrara a esta cópia nas prateleiras de um comerciante de velhos manuscritos e incunábulos. Dizia-se que apenas duas cópias haviam existido, e que a outra havia sido destruída pela Inquisição Espanhola, no começo do século XIII.
A luz piscava como se asas ominosas houvessem batido perto dela; e os olhos de Sebastian ficaram baços de um corrimento cada vez mais profuso, conforme lia mais uma vez aquela passagem fatal e sinistra que havia conseguido provocar-lhe medos tão soturnos:
'Embora Quachil Uttaus atenda – mas atenda raramente, foi bem documentado que seu advento nem sempre ocorre em resposta à runa pronunciada e ao pantáculo desenhado... Poucos magos, de fato muito poucos convocariam um espírito assim tão agourento... Mas que fique perfeitamente claro que aquele que lê sozinho, no silêncio de sua câmara, a fórmula dada mas abaixo, correrá graves riscos se em seu coração abrigar aberta ou disfarçadamente o mínimo desejo de morte e aniquilação. Pois pode acontecer que Quachil Uttaus a ele atenda, trazendo aquele destino final que, com o mais leve toque, transforma o corpo no pó eterno, e torna a alma num vapor para toda a eternidade dissolvido. E o advento de Quachil Uttaus é pressagiado por certos indícios; pois na pessoa do evocador, e possivelmente nas pessoas mais próximas a ele, aparecerão os sinais da súbita idade avançada; e sua casa, e os pertences que houver tocado, assumirão as marcas de decadência e antiguidade apressadas...'
Sebastian não percebera que resmungava as sentenças em voz baixa, quando as lia; que também resmungara o terrível encantamento que seguia ao alerta... Seus pensamentos rastejaram como se envoltos por algo frio e congelante. Numa certeza embotada e mórbida, soube que Timmers não havia ido à aldeia. Devia ter avisado a Timmers antes de partir; deveria ter escondido e trancado o Testamento de Carnamagos... pois Timmers, a seu modo, era também um erudito, e a ele não faltava curiosidade sobre os estudos ocultistas de seu mestre. Timmers estava bastante apto a ler o grego de Carnamagos... e até mesmo aquela fórmula atroz e devastadora das almas, a qual Quachil Uttaus, demônio da corrupção definitiva, responderia do vácuo exterior... Sebastian adivinhou daí, com precisão, a origem do pó cinzento, a razão daqueles esfarelamentos misteriosos...
Sentiu mais uma vez o impulso de fuga; porém seu corpo era um íncubo seco e morto, que recusava a obedecer à própria vontade. De qualquer forma, refletiu consigo, já era tarde demais, pois os sinais do fim haviam reunido-se ao seu redor e sobre ele... Porém, certamente jamais houvera nele o mínimo anseio por morte e destruição. Ele apenas desejara sondar os mistérios sombrios que cercavam o estado mortal. E sempre havia sido cauteloso, jamais mexera com círculos mágicos e evocações de presenças perigosas. Sabia da existência de espíritos do mal, espíritos da cólera, perdição e aniquilação; mas jamais, pela própria vontade, invocaria qualquer um de suas prisões e abismos noturnos...
Sua letargia e fraqueza pareceu aumentar; foi como se lustros inteiros, décadas completas de senescência sobre ele caíssem, no espaço de um fôlego. Sua linha de pensamentos se interrompia a intervalos, e ele a recobrava com dificuldade. Suas memórias, e até mesmo seus medos, pareciam cambalear nos limites de um oblívio final. Com os ouvidos quase surdos, ouviu um som de madeira caindo e quebrando, em algum lugar da casa; com os olhos exibindo uma catarata como a dos anciões, viu as luzes tremerem e apagarem sob o ataque de uma escuridão negra como um morcego.
Era como se a noite de uma catacumba em ruínas se fechasse sobre ele. Sentia aos poucos o respirar tênue e gélido do vento que o havia perturbado antes, com seu mistério; e mais uma vez o pó ascendeu até suas narinas. Percebeu então que o aposento não estava totalmente escuro, pois conseguia discernir os vagos contornos do atril diante de si. Certamente nenhum raio de luz passava pelas venezianas; porém ainda assim havia luz. Seus olhos, abrindo-se com um esforço titânico, viram pela primeira vez que uma fenda irregular e grosseira havia surgido na parede externa do aposento, no alto do canto norte. Através da fenda uma estrela solitária reluzia na câmara, fria e remota como o olho de um demônio espreitando através de golfos intercósmicos.
Daquela estrela – ou dos espaços além dela – um raio de lívida radiância, pálido e mortal, lançou-se como um dardo contra Sebastian. Da largura de uma tábua, inabalável, imovível, parecia transfixar seu próprio corpo e formar uma ponte entre si e os mundos da escuridão inimaginável.
Estava como se petrificado pelo olhar da górgona. E então, através da brecha das ruínas, veio algo planando suave e rapidamente para dentro do aposento, em sua direção, seguindo o raio de luz. A parede pareceu esfarelar-se e a fenda alargar-se, quando a coisa entrou.
Era uma figura não maior que uma pequena criança, mas seca, murcha e encarquilhada como uma múmia milenar. Sua cabeça calva, seu rosto sem feições definidas, saídos de um pescoço de magreza esquelética, eram decorados por milhares de rugas reticuladas. O corpo era como o de um aborto monstruoso e emaciado que jamais houvesse conhecido a respiração. Os braços como varetas, terminando em garras ossudas, estendiam-se para frente como se anquilosados nesse gesto de eterno e temível tatear. As pernas, de pés como os de uma Morte pigmeia, eram fundidas como se houvessem sido comprimidas por bandagens mortuárias; não havia nelas qualquer movimento, ou caminhar, ou marcha. Ereto e rígido, o horror flutuava célere, descendo pelo raio acinzentado, pálido e mortal, na direção de Sebastian.
E agora estava próximo dele, a cabeça da coisa próxima a sua fronte e seus pés opostos a seu tórax. Por um momento fugaz, percebeu que o horror havia nele tocado, com suas mãos esticadas, com seus pés obscenamente flutuantes. Parecia fundir-se a ele, tornar-se uno com seu ser. Sentia que suas veias se enchiam de pó, que seu cérebro esfarelava-se, célula por célula. E então ele não era mais John Sebastian, mas um universo de estrelas e mundos mortos, que decaíam remoendo a escuridão, diante do tremendo soprar de algum vento ultraestelar...
A coisa que os magos imemoriais haviam chamado de Quachil Uttaus havia desaparecido; e a noite e as estrelas haviam retornado àquela câmara arruinada. Mas em parte alguma encontrava-se sequer a sombra de John Sebastian; apenas um leve monturo de pó, no chão diante do atril, exibindo uma vaga depressão, como a pegada de um diminuto pé... ou dois pés muito encostados.
Texto original em inglês encontrado em
http://www.eldritchdark.com/writings/short-stories/222/the-treader-of-the-dust
Texto traduzido em PDF
http://www.4shared.com/office/Zx6t7yy4/Andarilho_do_P_-_Clark_Ashton_.html
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.
…Os antigos magos o conheciam, e o nomearam Quachil Uttaus. Poucas vezes é ele revelado: pois habita além do mais exterior dos círculos, no limbo soturno do tempo e espaço não-esféricos. Temível é a palavra que o convoca, palavra jamais pronunciada exceto em pensamentos: Pois Quachil Uttaus é a corrupção definitiva; e o momento de sua chegada é como a passagem de muitas eras; e nem a carne, nem a pedra, podem suportar suas andanças, pois todas as coisas ruem sob seus pés, átomo por átomo. E por esta razão, alguns o têm chamado O Andarilho do Pó.
-- Testamento de Carnamagos
Foi após intermináveis debates e argumentações consigo mesmo, após muitas tentativas de exorcizar a legião incorpórea e turva de seus medos, que John Sebastian retornou à causa que havia deixado tão apressadamente. Havia estado ausente por três dias; mas mesmo isto fora uma interrupção sem precedentes na vida reclusa e erudita a qual havia entregado-se totalmente após herdar a velha Mansão, junto com uma generosa quantia. Em momento algum havia definido por completo as razões de sua fuga: todavia a fuga parecera obrigatória. Havia uma certa urgência medonha que o impelira; mas agora, que havia se resolvido a retornar, a urgência havia estabelecido-se na forma de nervos exaustos pela dedicação excessivamente íntima e prolongada a seus livros. Ele havia imaginado certas coisas: mas essas coisas imaginadas eram patentemente absurdas e sem base alguma.
Mesmo se o fenômeno que o havia perturbado não fosse de todo imaginário, deveria haver alguma solução natural que não havia pensado com sua mente sobrecarregada. O amarelar súbito de um caderno recém-comprado, o desfazer das bordas das folhas, eram sem dúvida devido a imperfeições latentes do papel; e o estranho desvanecer de seus registros que, quase do dia para a noite, haviam tornado-se tênues, como se fossem escrita antiga – era claramente resultado de substâncias químicas baratas e falhas na tinta. O aspecto de antiguidade bruta, quebradiça e roída por vermes, que havia manifestado-se em certos elementos da mobília, certas porções da mansão, não mais era que a súbita revelação de uma desintegração oculta, que havia ocorrido sem que ele notasse, enquanto estava absorto pela dedicação meticulosa às pesquisas soturnas. E foi a mesma dedicação, com seus anos contínuos de esforço e confinamento, que trouxe seu envelhecimento prematuro; de modo que, ao contemplar-se no espelho, na manhã de sua fuga, ficara chocado e apavorado como se diante da aparição de uma múmia encarquilhada. Quanto ao criado, Timmers – bem, Timmers já era velho, e todos lembravam-se dele assim. Fora apenas o exagero dos nervos doentes que recentemente pensou ver em Timmers uma decrepitude tão extrema que o faria cair, sem o estado intermediário da morte, direto na podridão do túmulo.
De fato, podia explicar tudo que o havia perturbado, sem fazer referência aos conhecimentos selvagens e remotos, às demonologias e sistemas esquecidos que havia sondado. Aquelas passagens no Testamento de Carnagos, sobre as quais havia ponderado com esquisito desânimo, eram relevantes apenas aos horrores evocados por feiticeiros loucos de eras passadas.
Sebastian, firme em tais convicções, voltou à sua casa ao pôr do sol. Não tremia ou desfalecia quando cruzou o terreno que recebia a sombra dos pinheiros, e correu célere pelos degraus da fachada. Imaginou, embora sem certeza, se haviam de fato sinais de dilapidação nesses degraus; e a própria casa, conforme aproximava-se, parecia ter ficado um tanto derrubada, como se houvesse ocorrido erosão nos alicerces; mas isto, disse a si mesmo, era apenas ilusão trazida pelo crepúsculo que se iniciava.
Nenhuma lâmpada acesa, mas Sebastian não surpreendera-se com isto, pois sabia que Timmers, se deixado sozinho, costumava caminhar nas trevas como uma coruja senil, muito após o momento apropriado do acender das luzes. Sebastian, por outro lado, sempre havia tido aversão à escuridão ou mesmo às sombras; e recentemente a aversão havia aumentado bastante. Resoluto, acendeu todos os bulbos da casa tão logo a luz do dia começou a faltar. E agora resmungando sua irritação com a incompetência de Timmers, empurrou a porta e buscou apressado a fechadura do corredor.
Talvez devido a uma agitação nervosa que não percebera em si mesmo, perdeu um bom tempo sem achar o interruptor. O corredor era estranhamente sombrio e um reluzir do pôr-do-sol cinzento emanava entre os altos pinheiros para dentro do vão da porta por trás dele, mas sem conseguir penetrar além da soleira. Não conseguia enxergar coisa alguma; era como se a noite das eras mortas houvesse feito do corredor seu covil; e as narinas de Sebastian, ali onde ele havia parado, foram assaltadas por uma pungência seca, como se vinda de pó ancestral, odor como de cadáveres e caixões há muito indistintos na decadência pulverulenta.

E agora, imaginava, onde estava Timmers? O envelhecido faz-tudo, apesar de sua crescente senilidade, sempre havia sido rápido em atender; e muito embora não houvesse ouvido seu mestre entrar, o ligar das luzes teria sinalizado o retorno de Sebastian. Porém, muito embora Sebastian atentasse com dolorosa insistência, não ouvia o ranger dos familiares passos debilitados. O silêncio envolvia a tudo, como uma mortalha fúnebre e imperturbada.
Sem dúvida, pensou Sebastian, haveria alguma explicação mundana para tal. Timmers havia ido à aldeia próxima, talvez para reabastecer a despensa, ou na esperança de receber comunicação de seu mestre; e Sebastian havia dele se desencontrado, ao retornar da estação. Ou talvez o velho houvesse adoecido e agora jazesse vulnerável em seu quarto. Pressuroso com este último pensamento, foi direto ao dormitório de Timmers, que ficava no andar térreo, nos fundos da mansão. Estava vazio, e a cama estava primorosamente feita e obviamente não fora ocupada na noite anterior. Com um suspiro de alívio que pareceu retirar um horrendo íncubo de seu peito, decidiu Sebastian que a primeira conjectura estava correta.
Mas agora, ao esperar o retorno de Timmers, havia sentido nos nervos outro ato de inspiração, e marchou até o estúdio. Não admitia a si mesmo, com precisão, o que temia ver; mas à primeira vista, o aposento não havia mudado em nada, e todas as coisas estavam como no momento de sua partida apressada. A pilha alta e confusa de manuscritos, volumes e cadernos em sua mesa de escrever estava intocada por ninguém exceto sua própria mão; e as prateleiras da estante de livros, com seus acervos bizarros e aterrorizantes de autoridades em diabolismo, necromancia, goétia e em todas as ciências ridicularizadas ou proibidas, estavam imperturbadas e intactas. Sobre o velho atril, ou porta-livro, usado para os tomos mais pesados, estava o Testamento de Carnamagos, com sua capa marroquim e sua tranca de ossos humanos, estava aberto na mesma página que o havia assustado tão irracionalmente, com suas intimações sobrenaturais.
E então, ao passar para o espaço entre o atril e a mesa, percebeu pela primeira vez o inexplicável empoeiramento sobre tudo. O pó acumulava-se em toda parte; um pó fino e cinzento, como polvilho de átomos mortos. Havia coberto os manuscritos com um filme profundo, assentado-se espesso sobre as cadeiras, abajures e volumes; e os ricos vermelhos e amarelos como papoula das tapeçarias orientais eram desfeitos pelo acúmulo do pó. Era como se muitos anos desolados houvessem passado na câmara desde sua partida, e houvessem espanado de seus invólucros amortalhados a poeira de todas as coisas em ruínas. O mistério daquilo fez tremer Sebastian; pois ele sabia que o aposento havia sido varrido com rigor apenas três dias antes; e Timmers havia de espanar a cada manhã, cuidadosa e meticulosamente, durante sua ausência.
E agora o pó ascendia numa nuvem leve e rodopiante ao seu redor, preenchendo as narinas de Sebastian com o mesmo odor seco, como se oriundo de uma dissolução fantasticamente antiga, que o havia encontrado no corredor. Ao mesmo tempo percebeu o vento tempestuoso e frio que de alguma forma penetrava o aposento. Ele imaginara que uma das janelas havia sido deixada aberta, mas um olhar assegurou-o de que elas haviam sido fechadas por cortinas avassaladoras; e a porta havia se fechado por trás dele. O vento era leve como o suspirar de um fantasma, mas onde quer que passasse, levantava o fino pó sem peso, enchendo o ar e mais uma vez caindo numa lentidão imensa. Sebastian sentiu um estranho alarme, como se houvesse soprado nele um vento das dimensões desconhecidas, ou por uma oculta fenda de ruínas; e simultaneamente foi tomado por um paroxismo de tosse prolongada e violenta.
Ele não conseguira localizar a fonte do vento. Mas enquanto movia-se descuidado e impaciente, seu olhar foi atraído por uma pilha baixa e longa de pó cinzento, que até então havia sido oculto de sua visão pela mesa. Estava logo abaixo da cadeira que usava para escrever. Próximo à pilha de poeira estava o espanador usado por Timmers em sua rodada diária de limpeza.
Pareceu a Sebastian que o rigor de uma grande e letal frialdade havia invadido todo seu ser. Ele não conseguiu mexer-se por vários minutos, contemplando o inexplicável monturo. No centro deste via uma vaga depressão, que poderia ser a marca de uma pegada bastante diminuta, meio apagada pelos sopros de vento que evidentemente haviam levado muito do pó e espalhado-o pela câmara.
Finalmente o poder do movimento voltara a Sebastian. Sem reconhecer conscientemente o impulso que o impeliu a tal, abaixou-se para pegar o espanador. Mas quando seus dedos o tocaram, o cabo e as penas dissolveram-se em fina poeira que, assentada numa pequena pilha, preservava de maneira vaga os contornos do objeto original.
Uma fraqueza assolou Sebastian, como se o fardo da idade e mortalidade absolutas esmagasse seus ombros entre um instante e outro. Houve um rodopiar de sombras vertiginosas diante de seus olhos, sobre a luz da lâmpada, e ele pensou que desfaleceria, se não sentasse de imediato. Colocou a mão na cadeira ao seu lado – e a cadeira, com o toque, desfez-se instantaneamente em nuvens leves de pó, que assentavam-se atraídas pelo chão.

Agora, sentado num estado mesclando o terror e o estupor, seus olhos foram atraídos pelo volume magista diante de si: os escritos do sábio e vidente maligno Carnamagos, que foram recobrados mil anos passados, em alguma tumba greco-bactriana, e transcritos por um monge apóstata no grego original, usando o sangue de um monstro procriado por íncubos. Naquele volume estavam as crônicas dos grandes feiticeiros da antiguidade, e as histórias de demônios terrenos e ultracósmicos, e os encantamentos verdadeiros através dos quais os demônios poderiam ser controlados e dispensados. Sebastian, estudante profundo de tais conhecimentos, há muito acreditara que o livro era apenas uma lenda medieval; e ficara tanto espantado quanto gratificado quando encontrara a esta cópia nas prateleiras de um comerciante de velhos manuscritos e incunábulos. Dizia-se que apenas duas cópias haviam existido, e que a outra havia sido destruída pela Inquisição Espanhola, no começo do século XIII.
A luz piscava como se asas ominosas houvessem batido perto dela; e os olhos de Sebastian ficaram baços de um corrimento cada vez mais profuso, conforme lia mais uma vez aquela passagem fatal e sinistra que havia conseguido provocar-lhe medos tão soturnos:
'Embora Quachil Uttaus atenda – mas atenda raramente, foi bem documentado que seu advento nem sempre ocorre em resposta à runa pronunciada e ao pantáculo desenhado... Poucos magos, de fato muito poucos convocariam um espírito assim tão agourento... Mas que fique perfeitamente claro que aquele que lê sozinho, no silêncio de sua câmara, a fórmula dada mas abaixo, correrá graves riscos se em seu coração abrigar aberta ou disfarçadamente o mínimo desejo de morte e aniquilação. Pois pode acontecer que Quachil Uttaus a ele atenda, trazendo aquele destino final que, com o mais leve toque, transforma o corpo no pó eterno, e torna a alma num vapor para toda a eternidade dissolvido. E o advento de Quachil Uttaus é pressagiado por certos indícios; pois na pessoa do evocador, e possivelmente nas pessoas mais próximas a ele, aparecerão os sinais da súbita idade avançada; e sua casa, e os pertences que houver tocado, assumirão as marcas de decadência e antiguidade apressadas...'
Sebastian não percebera que resmungava as sentenças em voz baixa, quando as lia; que também resmungara o terrível encantamento que seguia ao alerta... Seus pensamentos rastejaram como se envoltos por algo frio e congelante. Numa certeza embotada e mórbida, soube que Timmers não havia ido à aldeia. Devia ter avisado a Timmers antes de partir; deveria ter escondido e trancado o Testamento de Carnamagos... pois Timmers, a seu modo, era também um erudito, e a ele não faltava curiosidade sobre os estudos ocultistas de seu mestre. Timmers estava bastante apto a ler o grego de Carnamagos... e até mesmo aquela fórmula atroz e devastadora das almas, a qual Quachil Uttaus, demônio da corrupção definitiva, responderia do vácuo exterior... Sebastian adivinhou daí, com precisão, a origem do pó cinzento, a razão daqueles esfarelamentos misteriosos...
Sentiu mais uma vez o impulso de fuga; porém seu corpo era um íncubo seco e morto, que recusava a obedecer à própria vontade. De qualquer forma, refletiu consigo, já era tarde demais, pois os sinais do fim haviam reunido-se ao seu redor e sobre ele... Porém, certamente jamais houvera nele o mínimo anseio por morte e destruição. Ele apenas desejara sondar os mistérios sombrios que cercavam o estado mortal. E sempre havia sido cauteloso, jamais mexera com círculos mágicos e evocações de presenças perigosas. Sabia da existência de espíritos do mal, espíritos da cólera, perdição e aniquilação; mas jamais, pela própria vontade, invocaria qualquer um de suas prisões e abismos noturnos...
Sua letargia e fraqueza pareceu aumentar; foi como se lustros inteiros, décadas completas de senescência sobre ele caíssem, no espaço de um fôlego. Sua linha de pensamentos se interrompia a intervalos, e ele a recobrava com dificuldade. Suas memórias, e até mesmo seus medos, pareciam cambalear nos limites de um oblívio final. Com os ouvidos quase surdos, ouviu um som de madeira caindo e quebrando, em algum lugar da casa; com os olhos exibindo uma catarata como a dos anciões, viu as luzes tremerem e apagarem sob o ataque de uma escuridão negra como um morcego.
Era como se a noite de uma catacumba em ruínas se fechasse sobre ele. Sentia aos poucos o respirar tênue e gélido do vento que o havia perturbado antes, com seu mistério; e mais uma vez o pó ascendeu até suas narinas. Percebeu então que o aposento não estava totalmente escuro, pois conseguia discernir os vagos contornos do atril diante de si. Certamente nenhum raio de luz passava pelas venezianas; porém ainda assim havia luz. Seus olhos, abrindo-se com um esforço titânico, viram pela primeira vez que uma fenda irregular e grosseira havia surgido na parede externa do aposento, no alto do canto norte. Através da fenda uma estrela solitária reluzia na câmara, fria e remota como o olho de um demônio espreitando através de golfos intercósmicos.
Daquela estrela – ou dos espaços além dela – um raio de lívida radiância, pálido e mortal, lançou-se como um dardo contra Sebastian. Da largura de uma tábua, inabalável, imovível, parecia transfixar seu próprio corpo e formar uma ponte entre si e os mundos da escuridão inimaginável.
Estava como se petrificado pelo olhar da górgona. E então, através da brecha das ruínas, veio algo planando suave e rapidamente para dentro do aposento, em sua direção, seguindo o raio de luz. A parede pareceu esfarelar-se e a fenda alargar-se, quando a coisa entrou.
Era uma figura não maior que uma pequena criança, mas seca, murcha e encarquilhada como uma múmia milenar. Sua cabeça calva, seu rosto sem feições definidas, saídos de um pescoço de magreza esquelética, eram decorados por milhares de rugas reticuladas. O corpo era como o de um aborto monstruoso e emaciado que jamais houvesse conhecido a respiração. Os braços como varetas, terminando em garras ossudas, estendiam-se para frente como se anquilosados nesse gesto de eterno e temível tatear. As pernas, de pés como os de uma Morte pigmeia, eram fundidas como se houvessem sido comprimidas por bandagens mortuárias; não havia nelas qualquer movimento, ou caminhar, ou marcha. Ereto e rígido, o horror flutuava célere, descendo pelo raio acinzentado, pálido e mortal, na direção de Sebastian.
E agora estava próximo dele, a cabeça da coisa próxima a sua fronte e seus pés opostos a seu tórax. Por um momento fugaz, percebeu que o horror havia nele tocado, com suas mãos esticadas, com seus pés obscenamente flutuantes. Parecia fundir-se a ele, tornar-se uno com seu ser. Sentia que suas veias se enchiam de pó, que seu cérebro esfarelava-se, célula por célula. E então ele não era mais John Sebastian, mas um universo de estrelas e mundos mortos, que decaíam remoendo a escuridão, diante do tremendo soprar de algum vento ultraestelar...
A coisa que os magos imemoriais haviam chamado de Quachil Uttaus havia desaparecido; e a noite e as estrelas haviam retornado àquela câmara arruinada. Mas em parte alguma encontrava-se sequer a sombra de John Sebastian; apenas um leve monturo de pó, no chão diante do atril, exibindo uma vaga depressão, como a pegada de um diminuto pé... ou dois pés muito encostados.
Texto original em inglês encontrado em
http://www.eldritchdark.com/writings/short-stories/222/the-treader-of-the-dust
Texto traduzido em PDF
http://www.4shared.com/office/Zx6t7yy4/Andarilho_do_P_-_Clark_Ashton_.html
quinta-feira, 21 de junho de 2012
A MÚSICA DE ERICH ZANN
de H.P. Lovecraft
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.
Examinei os mapas da cidade com o maior dos cuidados, mas nunca mais encontrei a Rue d'Auseil. Estes mapas não incluíam apenas os modernos, pois sei que nomes de ruas mudam. Pelo contrário, imergi profundamente nas antiguidades do local, e explorei em pessoa cada região nomeada com qualquer título que pudesse responder pela rua que conheci por Rue d'Auseil. Porém, apesar de tudo que fiz, permanece um fato humilhante que não consiga encontrar a casa, a rua, ou mesmo a localidade, onde, durante os últimos meses de minha empobrecida vida como estudante de metafísica na universidade, ouvi a música de Erich Zann.
Não duvido que minha memória esteja defeituosa; pois minha saúde, tanto a física quanto a mental, fora gravemente perturbada por todo o período de minha residência na Rue d'Auseil, e recordo que não levei nenhum de meus conhecidos ali. Mas o fato de não conseguir encontrar mais o lugar é tão singular quanto causador de perplexidade; pois ficava a meia hora de caminhada da universidade, e era distinta por peculiaridades que dificilmente poderiam ser esquecidas por qualquer um que uma vez lá estivesse. Jamais conheci pessoa alguma que tivesse visto a Rue d'Auseil.
A Rue d'Auseil era paralela a um escuro rio cujas encostas íngremes abrigavam alguns armazéns de tijolos e janelas foscas, atravessado por uma soturna ponte de pedras negras. Eram sempre sombrias as margens daquele rio, como se a fumaça das fábricas próximas bloqueassem o sol para toda a eternidade. O rio liberava também odores malignos que nunca senti em parte alguma, e que podem talvez ajudar-me um dia a encontrá-lo, já que eu os reconheceria de imediato. Além da ponte, haviam ruas estreitas, de calçamento de pedras; e então vinha a subida, a princípio gradual, e depois cada vez mais íngreme conforme chegava-se perto da Rue d'Auseil.
Jamais vi rua tão estreita e íngreme como a Rue d'Auseil. Era quase um penhasco, fechada a todos os veículos, consistindo de vários pontos com escadarias, e terminando no topo com um impávido muro coberto de heras. Sua pavimentação era irregular; às vezes lajotas de pedra, às vezes cantaria, e às vezes a terra nua que lutava contra a vegetação cinza-esverdeada. As casas eram altas, encimadas por telhados, incrivelmente antigas, e inclinadas de modo insano para trás, para frente e para os lados. De vez em quando um par oposto, ambos inclinados para a frente, quase se encontravam no meio da rua, como um arco; e certamente isto impedia a maior parte da luz de alcançar o chão abaixo. Haviam umas tantas pontes suspensas de casa a casa, por toda a rua.
Os habitantes da rua impressionavam de modo peculiar. A princípio pensei que isto acontecia porque eram todos silenciosos e reticentes; porém depois decidi que era porque eram todos muito velhos. Não sei como foi que cheguei a viver em tal rua, mas não estava em bom estado mental quando fiz a mudança para lá. Havia vivido em muitos lugares pobres, sempre despejado por falta de dinheiro; até que encontrasse aquela casa torta na Rue d'Auseil, mantida pelo paralítico Blandot. Era a terceira casa contando a partir do topo da rua, e de longe a mais alta de todas.
Meu quarto ficava no quinto andar; o único quarto habitado ali, já que a casa era quase vazia. À noite ouvia estranhas músicas vindas do elevado sótão acima, e no dia seguinte perguntei ao velho Blandot sobre isso. Ele contou-me que era um velho alemão, tocador de viola, um homem estranho e estúpido que assinava o nome de Erich Zann, e que tocava à noite numa orquestra de um teatro barato; e além disso falou que o desejo de Zann de tocar à noite, depois de voltar do teatro, era a razão pela qual o alemão havia escolhido aquele aposento isolado lá em cima, cuja única janela de cumeeira era o único ponto na rua a partir do qual poder-se-ia contemplar por cima do fim do muro, o declive e o panorama além deste.
Portanto eu ouvia Zann todas as noites, e embora isto me mantivesse acordado, eu permanecia assombrado pela estranheza da música. Mesmo sabendo muito pouco de arte, eu tinha certeza de que nenhuma das harmonias tinha qualquer relação com qualquer coisa que já tivesse ouvido; e concluí que ele era um compositor de gênio altamente original. Quanto mais ouvia, mais ficava fascinado, até que depois de uma semana, resolvi fazer amizade com o velho.
Uma noite, quando ele estava voltando de seu trabalho, interceptei Zann no corredor, e contei a ele que gostaria de conhecê-lo e estar com ele enquanto ele tocava. Ele era uma pessoinha curvada e encarquilhada, de roupas surradas e olhos azuis, com uma face grotesca, mais parecendo um sátiro, e quase totalmente calvo; e ouvindo minhas primeiras palavras, ele pareceu tanto enfurecido quanto apavorado. Apesar disso, minha evidente cordialidade acabou por fim a comovê-lo; e ele relutantemente conduziu-me a segui-lo pelas escadas escuras, rangentes e frágeis. Seu aposento, um dos dois do sótão inclinado, ficava no lado oeste, virado para o muro alto que formava o final alto da rua. Seu tamanho era enorme, e a mim parecia ainda maior devido a seu estado extraordinariamente negligente e desolado. Quanto a mobílias, havia apenas uma estreita cama de ferro, um lavatório sujo, uma pequena mesa, uma grande estante de livros, um atril de ferro, para dispor a partitura, e três cadeiras em estilo antigo. As partituras estavam empilhadas pelo chão, em desordem. As paredes não tinham rodapé, e provavelmente nunca conheceram pintura nem papel; enquanto a abundância de poeira e teias de aranha fazia o local parecer mais deserto que habitado. Ficava evidente que o mundo de beleza de Erich Zann estava além, em algum cosmos distante da imaginação.
Gesticulando para que eu me sentasse, o velho parvo fechou a porta, virou um grande candelabro e acendeu uma vela, para aumentar o efeito daquela que havia trazido consigo. Removeu então sua viola de sua maleta comida por traças, sentando-se na menos desconfortável das cadeiras. Não usou o atril, nem ofereceu-me escolha, começando a tocar de memória, encantando-me por mais de uma hora com peças que jamais havia ouvido antes; peças que devem ter sido de sua própria autoria. Descrever sua natureza exata é impossível para aquele que não estudou música. Eram um tipo de fuga, com passagens recorrentes da mais cativante qualidade, mas para mim era notável a ausência de quaisquer das estranhas notas que havia ouvido ao longe, de meu quarto abaixo do dele.
Lembrei-me dessas notas assombrosas, que já havia muitas vezes assobiado inadvertidamente para mim mesmo, de modo que quando o tocador repousou seu instrumento, perguntei se ele não tocaria alguma delas para mim. Mas ao começar o pedido, aquela face de sátiro enrugado perdeu a placidez entediada que havia demonstrado durante seu tocar, e começou a mostrar a mesma mistura curiosa de fúria e medo que eu havia notado quando segurei-o na escada. Por um momento senti vontade de usar da persuasão, não dando muito valor aos caprichos da senilidade; e até mesmo tentei despertar o tom mais estranho do meu anfitrião, assobiando algumas das notas que havia ouvido na noite anterior. Mas não fiz isso por mais que um momento; pois quando o músico idiotado reconheceu a nota assobiada, seu rosto subitamente se distorceu numa expressão além de qualquer descrição, e sua mão direita, fria e ossuda, veio calar minha boca, silenciando minha rude imitação. Fazendo isto, demonstrou mais ainda sua excentricidade olhando de soslaio sua única janela acortinada, como se temendo algum intruso – olhar duplamente absurdo, já que o sótão era alto e inacessível sobre todos os telhados adjacentes, sendo esta janela o único ponto naquela íngreme rua, assim me havia dito o zelador, do qual podia-se ver por cima do muro final.
O olhar do velho lembrou-me do comentário de Blandot, e com um certo capricho senti desejo de observar o amplo e fascinante panorama dos telhados enluarados e das luzes da cidade além da colina, que de todos os habitantes da Rue d'Auseil, só este músico rezingão podia contemplar. Passei em direção à janela e teria puxado as cortinas ordinárias, se o locatário retardado não me detivesse, desta vez com uma fúria assustada ainda maior; e com a cabeça apontava para a porta, puxando-me nervoso, com ambas as mãos. Agora já bastante enojado com meu anfitrião, ordenei a ele que me libertasse, que eu iria de uma vez. Seu aperto afrouxou, e quando ele notou minha repulsa e ofensa, sua própria raiva pareceu diminuir. Ele voltou a apertar, mas dessa vez de maneira amigável, forçando-me a sentar numa cadeira; e então, com um semblante melancólico foi até a mesa atulhada, onde escreveu muita palavras usando um lápis, no francês esforçado de um estrangeiro.
A nota que ele finalmente me passou era um apelo à tolerância e ao perdão. Zann dizia ser velho, solitário, e aflito por estranhos medos e desordens nervosas conectadas à sua música e outras coisas. Ele havia gostado de minha audiência, e desejava que eu voltasse, sem prestar atenção às minhas excentricidades. Mas não podia tocar novamente suas harmonias bizarras, e não podia suportar ouvi-las vindo de outrem; nem podia suportar qualquer coisa naquele aposento ser tocada por outra pessoa. Ele não sabia, até nossa conversa de corredor, que eu podia ouvir ao longe a música que saía de seu aposento, e agora pedia que eu arranjasse com Blandot um quarto mais baixo, onde não pudesse ouvi-lo à noite. Ele pagaria a diferença de aluguel, assim escreveu.
Sentado decifrando aquele execrável francês, senti-me mais compreensivo perante o velho. Ele era vítima de sofrimento físico e nervoso, como também era eu; e meus estudos metafísicos haviam ensinado-me a gentileza. No silêncio, veio um leve som da janela – a persiana deve ter tremido com o vento da noite, e por alguma razão tremi tão violentamente quanto havia feito Erich Zann. De modo que quando terminei a leitura, apertei a mão de meu anfitrião e despedi-me como seu amigo.
No dia seguinte, Blandot deu-me um quarto mais caro no terceiro andar, entre os apartamentos de um agiota envelhecido e o quarto de um respeitável estofador. Não havia ninguém no quarto andar.
Não demorou muito para que eu descobrisse que a ansiedade por companhia de Zann não era tão grande quanto ele parecia demostrar, quando me persuadia a deixar o quinto andar. Ele não me procurava e quando eu ia atrás dele, parecia estar inquieto e tocava de maneira apática. Isto sempre acontecia à noite – durante o dia, ele dormia e não receberia ninguém. Minha simpatia por ele não cresceu, embora o sótão e a música bizarra pareciam fascinar-me de modo estranho. Eu sentia o desejo curioso de olhar pela janela, por cima do muro, olhar lá para baixo, pelo declive oculto para os telhados e as espiras brilhantes que deviam ser vistas dali. Uma vez subi até a cumeeira durante a hora do teatro, quando Zann estava fora, mas a porta estava trancada.
O que consegui fazer foi ouvir ao longe a toada noturna do velho retardado. A princípio, andava na ponta dos pés até o meu velho aposento do quinto andar, e então criava coragem para subir pela última escadaria rangente até o acimado sótão. Lá no estreito corredor, logo antes da porta aparafusada de fechadura coberta, muitas vezes ouvi sons que me enchiam de um temor indefinível – temor de um vago fascínio e mistério agourento. Não é que os sons fossem medonhos, pois não eram; mas continham vibrações sugestivas de algo além deste globo terráqueo, que em certos intervalos assumiam uma qualidade sinfônica que eu mal podia conceber produzida por apenas um músico. Certamente Erich Zann era um gênio de poder espantoso. Conforme passaram as semanas, a toada tornou-se mais selvagem, enquanto o velho músico mostrava abatimento e furtividade cada vez maiores, que me causavam pena. Ele agora recusava-se a receber-me e me evitava toda vez que nos encontrávamos nas escadarias.
E então, uma noite, quando fui ouvir perto da porta, ouvi a viola gritante decair numa caótica babel sonora; um pandemônio que me fez duvidar da própria sanidade, se não viesse detrás daquele portal barrado uma piedosa prova de que o horror era real – o resmungo horrendo e inarticulado que apenas um mudo pode proferir, e que só é ouvido em voz alta naqueles momentos do mais terrível medo ou angústia. Bati repetidamente na porta, mas não obtive resposta. Depois esperei no corredor sombrio, tiritando de frio e medo, até que ouvi os débeis esforços do musicista ao erguer-se do chão, com a ajuda de uma cadeira. Acreditando que o velho estava consciente após um surto de desmaio, voltei a bater, enquanto identificava-me com voz solícita. Ouvi Zann ir aos tropeções até a janela e fechar tanto a persiana quanto o caixilho, e mais uma vez tropeçar balbuciante até a porta, que destrancou para receber-me. Desta vez, o prazer provocado por minha presença era real; pois seu rosto distorcido reluzia de alívio, enquanto ele agarrava meu casaco como uma criança agarra as saias da mãe.
Tremendo de modo patético, o velho forçou-me a sentar numa cadeira enquanto afundou em outra, ao lado da qual viola e arco estavam jogados descuidadamente no chão. Ele sentou inativo por um curto período de tempo, balançando a cabeça de maneira esquisita, numa sugestão paradoxal de alguém que ouve algo, intensa e assustadamente. Logo após pareceu estar satisfeito, e indo a uma cadeira na mesa escreveu uma breve nota, que passou para mim, e voltou à mesa, onde começou a escrever rápida e incessantemente. A nota implorava-me, por misericórdia, e pela minha própria curiosidade, que eu esperasse enquanto ele fazia um registro completo, em alemão, de todas as maravilhas e terrores que o assediavam. Esperei, e o lápis do retardado fluiu. Talvez uma hora mais tarde, quando ainda esperava e as folhas febrilmente escritas do velho músico continuavam a empilhar-se, que vi Zann parar como se começando a entrar num choque horrendo. Sem dúvida, ele estava fitando a janela coberta pela cortina, e ouvindo algo, enquanto tremia de tantos calafrios. Foi então que eu pensei ter ouvido também algum som; mas não era um som horrível e sim uma nota musical exoticamente baixa e infinitamente distante, sugerindo um músico em uma das casas vizinhas, ou em alguma morada além do alto muro sobre o qual nunca conseguíamos olhar. O efeito sobre Zann fora terrível, pois, largando seu lápis, subitamente ele levantou-se, tomou da viola e começou a rasgar a noite com a toada mais selvagem que jamais ouvi ser tocada por seu arco, salvo quando ouvindo atrás da porta fechada.
Seria inútil descrever a toada de Erich Zann naquela noite temível. Fora mais horrenda que tudo que havia ouvido antes, porque agora podia ver a expressão de seu rosto, e perceber naquele momento que a motivação de tudo era medo puro. Ele estava tentando fazer ruídos; impedir a chegada de algo, ou abafar o som de algo – o quê, eu não conseguia imaginar, por mais fascinante que pensava que pudesse ser. A toada tornou-se fantástica, delirante e histérica, mas ainda assim presa ao máximo às qualidades de gênio supremo que eu sabia que o estranho velho possuía. Reconheci a melodia – era uma dança selvagem húngara popular nos teatros, e refleti por um momento que esta era a primeira vez que jamais ouvi Zann tocar a obra de outro compositor.
Cada vez mais alto, cada vez mais selvagem, continuavam os gritos e lamentos da desesperada viola. O músico estava suando estranhamente, curvado como um macaco, sempre fitando freneticamente a janela coberta pela cortina. Em suas melodias frenéticas eu quase podia enxergar sátiros e bacanais sombrias, dançando e rodopiando insanamente por abismos borbulhantes de nuvens e fumaça e relâmpago. E então ouvi uma nota mais aguda e firme, que não vinha da viola; uma nota calma, deliberada, motivada e zombeteira, vinda muito além ao oeste.
Neste ponto a persiana começou a bater com o vento noturno uivante, que vinha do exterior como se respondesse ao louco que tocava ali dentro. A viola gritante de Zann agora se superava, emitindo sons que jamais havia pensado que uma viola seria capaz de emitir. A persiana bateu com mais ruído, soltando-se, e começou a bater contra a janela. Foi então que o vidro quebrou-se, trêmulo, após os impactos persistentes, e o vento gélido correu a encher o aposento, fazendo as velas apagarem e espalhando as folhas de papel na mesa, onde Zann havia começado a escrever seu horrível segredo. Olhei para Zann, e o que vi estava além da observação consciente. Seus olhos azuis estavam arregalados, vítreos e cegos, e a toada frenética havia tornado-se uma orgia cega, mecânica e irreconhecível, que escrito algum conseguirá jamais chegar a sugerir.
Uma súbita rajada, mais forte que as outras, tomou do manuscrito e o levou em direção à janela. Segui as folhas esvoaçantes, desesperado, mas se foram antes que eu alcançasse as vidraças quebradas. Então lembrei de meu antigo desejo de observar desta janela, a única janela na Rue d'Auseil a partir da qual poder-se-ia enxergar a ladeira além do muro, e a cidade espalhada lá embaixo. Estava muito escuro, mas as luzes da cidade sempre estavam acesas, e eu esperei vê-las entre a chuva e o vento. Porém quando olhei, da mais alta das janelas da cumeeira, olhei enquanto as velas apagavam e a viola insana uivava junto com o vento noturno, não vi cidade alguma espalhada lá embaixo, e nenhuma luz amigável brilhando nas ruas familiares, mas apenas a treva do espaço ilimitado; espaço inimaginável, vivo de movimentos e música, sem comparação a qualquer coisa da terra. E quando olhei aquilo, aterrorizado, o vento soprou ambas as velas daquela antiga cumeeira, deixando-me numa escuridão selvagem e impenetrável, caos e pandemônio diante de mim, e por trás a loucura demoníaca daquela viola que uivava para a noite.
Dei passos vacilantes para trás, sem atinar como acender uma luz, batendo contra a mesa, virando uma cadeira e finalmente, às apalpadelas, chegando onde a treva gritava com sua música chocante. Para salvar-me e a erich Zann, eu deveria ao menos tentar, não importando os poderes que se me opunham. Pensei então sentir alguma coisa gélida roçar minha pele, e gritei, mas meu grito não podia ser ouvido acima daquela viola macabra. Subitamente, da escuridão o arco da viola, tocando insanamente, bateu em mim, e eu percebi que estava próximo ao músico. Aproximei-me mais, toquei as costas da cadeira de Zann e então encontrei e balancei seu ombro, num esforço de reanimar seus sentidos.
Ele não respondeu, e ainda assim a viola gritava, sem descanso. Passei minha mão para a cabeça dele, cujo balançar mecânico consegui parar, e gritei em sua orelha, vamos fugir das coisas desconhecidas da noite. Mas nem ele me respondeu, nem diminuiu o frenesi de sua música impronunciável, enquanto por toda a cumeeira, estranhas correntes de vento pareciam dançar na escuridão e na babel. Quando minha mão tocou sua orelha, senti calafrios, mas não soube por quê – não soube até sentir a face rígida; a face gelada, paralisada e que não respirava, cujos olhos vítreos arregalavam-se inutilmente para o vácuo. E então, por algum milagre, encontrei a porta e a grande maçaneta de madeira, e fugi maníaco, daquela coisa de olhos vítreos no escuro, e do mórbido uivar daquela viola maldita, cuja fúria aumentou quanto mais eu fugia.
Saltando, flutuando, voando abaixo por aquelas escadarias sem fim pela casa escura; correndo sem pensar pela rampa estreita e íngreme da antiga rua de degraus e casas tortas; fazendo um estardalhaço com meus passos sobre as pedras das ruas mais baixas e até o pútrido rio murado por cânions; perdendo o fôlego ao correr pela grande e sombria ponte até as ruas e bulevares mais largos e saudáveis que eu conhecia; todas essas terríveis impressões ainda guardam-se dentro de mim. E eu lembro que não havia vento, que a lua estava visível, e que todas as luzes da cidade cintilavam.
Apesar de minhas mais cuidadosas buscas e investigações, desde então jamais consegui encontrar a Rue d'Auseil. Mas em parte sou grato por não encontrá-la; nem a rua, nem a vertigem nos abismos insonháveis daquelas folhas de linhas apertadas, que poderiam ter explicado o que estava por trás da música de Erich Zann.
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.
Examinei os mapas da cidade com o maior dos cuidados, mas nunca mais encontrei a Rue d'Auseil. Estes mapas não incluíam apenas os modernos, pois sei que nomes de ruas mudam. Pelo contrário, imergi profundamente nas antiguidades do local, e explorei em pessoa cada região nomeada com qualquer título que pudesse responder pela rua que conheci por Rue d'Auseil. Porém, apesar de tudo que fiz, permanece um fato humilhante que não consiga encontrar a casa, a rua, ou mesmo a localidade, onde, durante os últimos meses de minha empobrecida vida como estudante de metafísica na universidade, ouvi a música de Erich Zann.
Não duvido que minha memória esteja defeituosa; pois minha saúde, tanto a física quanto a mental, fora gravemente perturbada por todo o período de minha residência na Rue d'Auseil, e recordo que não levei nenhum de meus conhecidos ali. Mas o fato de não conseguir encontrar mais o lugar é tão singular quanto causador de perplexidade; pois ficava a meia hora de caminhada da universidade, e era distinta por peculiaridades que dificilmente poderiam ser esquecidas por qualquer um que uma vez lá estivesse. Jamais conheci pessoa alguma que tivesse visto a Rue d'Auseil.
A Rue d'Auseil era paralela a um escuro rio cujas encostas íngremes abrigavam alguns armazéns de tijolos e janelas foscas, atravessado por uma soturna ponte de pedras negras. Eram sempre sombrias as margens daquele rio, como se a fumaça das fábricas próximas bloqueassem o sol para toda a eternidade. O rio liberava também odores malignos que nunca senti em parte alguma, e que podem talvez ajudar-me um dia a encontrá-lo, já que eu os reconheceria de imediato. Além da ponte, haviam ruas estreitas, de calçamento de pedras; e então vinha a subida, a princípio gradual, e depois cada vez mais íngreme conforme chegava-se perto da Rue d'Auseil.
Jamais vi rua tão estreita e íngreme como a Rue d'Auseil. Era quase um penhasco, fechada a todos os veículos, consistindo de vários pontos com escadarias, e terminando no topo com um impávido muro coberto de heras. Sua pavimentação era irregular; às vezes lajotas de pedra, às vezes cantaria, e às vezes a terra nua que lutava contra a vegetação cinza-esverdeada. As casas eram altas, encimadas por telhados, incrivelmente antigas, e inclinadas de modo insano para trás, para frente e para os lados. De vez em quando um par oposto, ambos inclinados para a frente, quase se encontravam no meio da rua, como um arco; e certamente isto impedia a maior parte da luz de alcançar o chão abaixo. Haviam umas tantas pontes suspensas de casa a casa, por toda a rua.

Meu quarto ficava no quinto andar; o único quarto habitado ali, já que a casa era quase vazia. À noite ouvia estranhas músicas vindas do elevado sótão acima, e no dia seguinte perguntei ao velho Blandot sobre isso. Ele contou-me que era um velho alemão, tocador de viola, um homem estranho e estúpido que assinava o nome de Erich Zann, e que tocava à noite numa orquestra de um teatro barato; e além disso falou que o desejo de Zann de tocar à noite, depois de voltar do teatro, era a razão pela qual o alemão havia escolhido aquele aposento isolado lá em cima, cuja única janela de cumeeira era o único ponto na rua a partir do qual poder-se-ia contemplar por cima do fim do muro, o declive e o panorama além deste.
Portanto eu ouvia Zann todas as noites, e embora isto me mantivesse acordado, eu permanecia assombrado pela estranheza da música. Mesmo sabendo muito pouco de arte, eu tinha certeza de que nenhuma das harmonias tinha qualquer relação com qualquer coisa que já tivesse ouvido; e concluí que ele era um compositor de gênio altamente original. Quanto mais ouvia, mais ficava fascinado, até que depois de uma semana, resolvi fazer amizade com o velho.
Uma noite, quando ele estava voltando de seu trabalho, interceptei Zann no corredor, e contei a ele que gostaria de conhecê-lo e estar com ele enquanto ele tocava. Ele era uma pessoinha curvada e encarquilhada, de roupas surradas e olhos azuis, com uma face grotesca, mais parecendo um sátiro, e quase totalmente calvo; e ouvindo minhas primeiras palavras, ele pareceu tanto enfurecido quanto apavorado. Apesar disso, minha evidente cordialidade acabou por fim a comovê-lo; e ele relutantemente conduziu-me a segui-lo pelas escadas escuras, rangentes e frágeis. Seu aposento, um dos dois do sótão inclinado, ficava no lado oeste, virado para o muro alto que formava o final alto da rua. Seu tamanho era enorme, e a mim parecia ainda maior devido a seu estado extraordinariamente negligente e desolado. Quanto a mobílias, havia apenas uma estreita cama de ferro, um lavatório sujo, uma pequena mesa, uma grande estante de livros, um atril de ferro, para dispor a partitura, e três cadeiras em estilo antigo. As partituras estavam empilhadas pelo chão, em desordem. As paredes não tinham rodapé, e provavelmente nunca conheceram pintura nem papel; enquanto a abundância de poeira e teias de aranha fazia o local parecer mais deserto que habitado. Ficava evidente que o mundo de beleza de Erich Zann estava além, em algum cosmos distante da imaginação.
Gesticulando para que eu me sentasse, o velho parvo fechou a porta, virou um grande candelabro e acendeu uma vela, para aumentar o efeito daquela que havia trazido consigo. Removeu então sua viola de sua maleta comida por traças, sentando-se na menos desconfortável das cadeiras. Não usou o atril, nem ofereceu-me escolha, começando a tocar de memória, encantando-me por mais de uma hora com peças que jamais havia ouvido antes; peças que devem ter sido de sua própria autoria. Descrever sua natureza exata é impossível para aquele que não estudou música. Eram um tipo de fuga, com passagens recorrentes da mais cativante qualidade, mas para mim era notável a ausência de quaisquer das estranhas notas que havia ouvido ao longe, de meu quarto abaixo do dele.
Lembrei-me dessas notas assombrosas, que já havia muitas vezes assobiado inadvertidamente para mim mesmo, de modo que quando o tocador repousou seu instrumento, perguntei se ele não tocaria alguma delas para mim. Mas ao começar o pedido, aquela face de sátiro enrugado perdeu a placidez entediada que havia demonstrado durante seu tocar, e começou a mostrar a mesma mistura curiosa de fúria e medo que eu havia notado quando segurei-o na escada. Por um momento senti vontade de usar da persuasão, não dando muito valor aos caprichos da senilidade; e até mesmo tentei despertar o tom mais estranho do meu anfitrião, assobiando algumas das notas que havia ouvido na noite anterior. Mas não fiz isso por mais que um momento; pois quando o músico idiotado reconheceu a nota assobiada, seu rosto subitamente se distorceu numa expressão além de qualquer descrição, e sua mão direita, fria e ossuda, veio calar minha boca, silenciando minha rude imitação. Fazendo isto, demonstrou mais ainda sua excentricidade olhando de soslaio sua única janela acortinada, como se temendo algum intruso – olhar duplamente absurdo, já que o sótão era alto e inacessível sobre todos os telhados adjacentes, sendo esta janela o único ponto naquela íngreme rua, assim me havia dito o zelador, do qual podia-se ver por cima do muro final.
O olhar do velho lembrou-me do comentário de Blandot, e com um certo capricho senti desejo de observar o amplo e fascinante panorama dos telhados enluarados e das luzes da cidade além da colina, que de todos os habitantes da Rue d'Auseil, só este músico rezingão podia contemplar. Passei em direção à janela e teria puxado as cortinas ordinárias, se o locatário retardado não me detivesse, desta vez com uma fúria assustada ainda maior; e com a cabeça apontava para a porta, puxando-me nervoso, com ambas as mãos. Agora já bastante enojado com meu anfitrião, ordenei a ele que me libertasse, que eu iria de uma vez. Seu aperto afrouxou, e quando ele notou minha repulsa e ofensa, sua própria raiva pareceu diminuir. Ele voltou a apertar, mas dessa vez de maneira amigável, forçando-me a sentar numa cadeira; e então, com um semblante melancólico foi até a mesa atulhada, onde escreveu muita palavras usando um lápis, no francês esforçado de um estrangeiro.
A nota que ele finalmente me passou era um apelo à tolerância e ao perdão. Zann dizia ser velho, solitário, e aflito por estranhos medos e desordens nervosas conectadas à sua música e outras coisas. Ele havia gostado de minha audiência, e desejava que eu voltasse, sem prestar atenção às minhas excentricidades. Mas não podia tocar novamente suas harmonias bizarras, e não podia suportar ouvi-las vindo de outrem; nem podia suportar qualquer coisa naquele aposento ser tocada por outra pessoa. Ele não sabia, até nossa conversa de corredor, que eu podia ouvir ao longe a música que saía de seu aposento, e agora pedia que eu arranjasse com Blandot um quarto mais baixo, onde não pudesse ouvi-lo à noite. Ele pagaria a diferença de aluguel, assim escreveu.
Sentado decifrando aquele execrável francês, senti-me mais compreensivo perante o velho. Ele era vítima de sofrimento físico e nervoso, como também era eu; e meus estudos metafísicos haviam ensinado-me a gentileza. No silêncio, veio um leve som da janela – a persiana deve ter tremido com o vento da noite, e por alguma razão tremi tão violentamente quanto havia feito Erich Zann. De modo que quando terminei a leitura, apertei a mão de meu anfitrião e despedi-me como seu amigo.
No dia seguinte, Blandot deu-me um quarto mais caro no terceiro andar, entre os apartamentos de um agiota envelhecido e o quarto de um respeitável estofador. Não havia ninguém no quarto andar.
Não demorou muito para que eu descobrisse que a ansiedade por companhia de Zann não era tão grande quanto ele parecia demostrar, quando me persuadia a deixar o quinto andar. Ele não me procurava e quando eu ia atrás dele, parecia estar inquieto e tocava de maneira apática. Isto sempre acontecia à noite – durante o dia, ele dormia e não receberia ninguém. Minha simpatia por ele não cresceu, embora o sótão e a música bizarra pareciam fascinar-me de modo estranho. Eu sentia o desejo curioso de olhar pela janela, por cima do muro, olhar lá para baixo, pelo declive oculto para os telhados e as espiras brilhantes que deviam ser vistas dali. Uma vez subi até a cumeeira durante a hora do teatro, quando Zann estava fora, mas a porta estava trancada.
O que consegui fazer foi ouvir ao longe a toada noturna do velho retardado. A princípio, andava na ponta dos pés até o meu velho aposento do quinto andar, e então criava coragem para subir pela última escadaria rangente até o acimado sótão. Lá no estreito corredor, logo antes da porta aparafusada de fechadura coberta, muitas vezes ouvi sons que me enchiam de um temor indefinível – temor de um vago fascínio e mistério agourento. Não é que os sons fossem medonhos, pois não eram; mas continham vibrações sugestivas de algo além deste globo terráqueo, que em certos intervalos assumiam uma qualidade sinfônica que eu mal podia conceber produzida por apenas um músico. Certamente Erich Zann era um gênio de poder espantoso. Conforme passaram as semanas, a toada tornou-se mais selvagem, enquanto o velho músico mostrava abatimento e furtividade cada vez maiores, que me causavam pena. Ele agora recusava-se a receber-me e me evitava toda vez que nos encontrávamos nas escadarias.
E então, uma noite, quando fui ouvir perto da porta, ouvi a viola gritante decair numa caótica babel sonora; um pandemônio que me fez duvidar da própria sanidade, se não viesse detrás daquele portal barrado uma piedosa prova de que o horror era real – o resmungo horrendo e inarticulado que apenas um mudo pode proferir, e que só é ouvido em voz alta naqueles momentos do mais terrível medo ou angústia. Bati repetidamente na porta, mas não obtive resposta. Depois esperei no corredor sombrio, tiritando de frio e medo, até que ouvi os débeis esforços do musicista ao erguer-se do chão, com a ajuda de uma cadeira. Acreditando que o velho estava consciente após um surto de desmaio, voltei a bater, enquanto identificava-me com voz solícita. Ouvi Zann ir aos tropeções até a janela e fechar tanto a persiana quanto o caixilho, e mais uma vez tropeçar balbuciante até a porta, que destrancou para receber-me. Desta vez, o prazer provocado por minha presença era real; pois seu rosto distorcido reluzia de alívio, enquanto ele agarrava meu casaco como uma criança agarra as saias da mãe.
Tremendo de modo patético, o velho forçou-me a sentar numa cadeira enquanto afundou em outra, ao lado da qual viola e arco estavam jogados descuidadamente no chão. Ele sentou inativo por um curto período de tempo, balançando a cabeça de maneira esquisita, numa sugestão paradoxal de alguém que ouve algo, intensa e assustadamente. Logo após pareceu estar satisfeito, e indo a uma cadeira na mesa escreveu uma breve nota, que passou para mim, e voltou à mesa, onde começou a escrever rápida e incessantemente. A nota implorava-me, por misericórdia, e pela minha própria curiosidade, que eu esperasse enquanto ele fazia um registro completo, em alemão, de todas as maravilhas e terrores que o assediavam. Esperei, e o lápis do retardado fluiu. Talvez uma hora mais tarde, quando ainda esperava e as folhas febrilmente escritas do velho músico continuavam a empilhar-se, que vi Zann parar como se começando a entrar num choque horrendo. Sem dúvida, ele estava fitando a janela coberta pela cortina, e ouvindo algo, enquanto tremia de tantos calafrios. Foi então que eu pensei ter ouvido também algum som; mas não era um som horrível e sim uma nota musical exoticamente baixa e infinitamente distante, sugerindo um músico em uma das casas vizinhas, ou em alguma morada além do alto muro sobre o qual nunca conseguíamos olhar. O efeito sobre Zann fora terrível, pois, largando seu lápis, subitamente ele levantou-se, tomou da viola e começou a rasgar a noite com a toada mais selvagem que jamais ouvi ser tocada por seu arco, salvo quando ouvindo atrás da porta fechada.
Seria inútil descrever a toada de Erich Zann naquela noite temível. Fora mais horrenda que tudo que havia ouvido antes, porque agora podia ver a expressão de seu rosto, e perceber naquele momento que a motivação de tudo era medo puro. Ele estava tentando fazer ruídos; impedir a chegada de algo, ou abafar o som de algo – o quê, eu não conseguia imaginar, por mais fascinante que pensava que pudesse ser. A toada tornou-se fantástica, delirante e histérica, mas ainda assim presa ao máximo às qualidades de gênio supremo que eu sabia que o estranho velho possuía. Reconheci a melodia – era uma dança selvagem húngara popular nos teatros, e refleti por um momento que esta era a primeira vez que jamais ouvi Zann tocar a obra de outro compositor.
Cada vez mais alto, cada vez mais selvagem, continuavam os gritos e lamentos da desesperada viola. O músico estava suando estranhamente, curvado como um macaco, sempre fitando freneticamente a janela coberta pela cortina. Em suas melodias frenéticas eu quase podia enxergar sátiros e bacanais sombrias, dançando e rodopiando insanamente por abismos borbulhantes de nuvens e fumaça e relâmpago. E então ouvi uma nota mais aguda e firme, que não vinha da viola; uma nota calma, deliberada, motivada e zombeteira, vinda muito além ao oeste.
Neste ponto a persiana começou a bater com o vento noturno uivante, que vinha do exterior como se respondesse ao louco que tocava ali dentro. A viola gritante de Zann agora se superava, emitindo sons que jamais havia pensado que uma viola seria capaz de emitir. A persiana bateu com mais ruído, soltando-se, e começou a bater contra a janela. Foi então que o vidro quebrou-se, trêmulo, após os impactos persistentes, e o vento gélido correu a encher o aposento, fazendo as velas apagarem e espalhando as folhas de papel na mesa, onde Zann havia começado a escrever seu horrível segredo. Olhei para Zann, e o que vi estava além da observação consciente. Seus olhos azuis estavam arregalados, vítreos e cegos, e a toada frenética havia tornado-se uma orgia cega, mecânica e irreconhecível, que escrito algum conseguirá jamais chegar a sugerir.
Uma súbita rajada, mais forte que as outras, tomou do manuscrito e o levou em direção à janela. Segui as folhas esvoaçantes, desesperado, mas se foram antes que eu alcançasse as vidraças quebradas. Então lembrei de meu antigo desejo de observar desta janela, a única janela na Rue d'Auseil a partir da qual poder-se-ia enxergar a ladeira além do muro, e a cidade espalhada lá embaixo. Estava muito escuro, mas as luzes da cidade sempre estavam acesas, e eu esperei vê-las entre a chuva e o vento. Porém quando olhei, da mais alta das janelas da cumeeira, olhei enquanto as velas apagavam e a viola insana uivava junto com o vento noturno, não vi cidade alguma espalhada lá embaixo, e nenhuma luz amigável brilhando nas ruas familiares, mas apenas a treva do espaço ilimitado; espaço inimaginável, vivo de movimentos e música, sem comparação a qualquer coisa da terra. E quando olhei aquilo, aterrorizado, o vento soprou ambas as velas daquela antiga cumeeira, deixando-me numa escuridão selvagem e impenetrável, caos e pandemônio diante de mim, e por trás a loucura demoníaca daquela viola que uivava para a noite.
Dei passos vacilantes para trás, sem atinar como acender uma luz, batendo contra a mesa, virando uma cadeira e finalmente, às apalpadelas, chegando onde a treva gritava com sua música chocante. Para salvar-me e a erich Zann, eu deveria ao menos tentar, não importando os poderes que se me opunham. Pensei então sentir alguma coisa gélida roçar minha pele, e gritei, mas meu grito não podia ser ouvido acima daquela viola macabra. Subitamente, da escuridão o arco da viola, tocando insanamente, bateu em mim, e eu percebi que estava próximo ao músico. Aproximei-me mais, toquei as costas da cadeira de Zann e então encontrei e balancei seu ombro, num esforço de reanimar seus sentidos.
Ele não respondeu, e ainda assim a viola gritava, sem descanso. Passei minha mão para a cabeça dele, cujo balançar mecânico consegui parar, e gritei em sua orelha, vamos fugir das coisas desconhecidas da noite. Mas nem ele me respondeu, nem diminuiu o frenesi de sua música impronunciável, enquanto por toda a cumeeira, estranhas correntes de vento pareciam dançar na escuridão e na babel. Quando minha mão tocou sua orelha, senti calafrios, mas não soube por quê – não soube até sentir a face rígida; a face gelada, paralisada e que não respirava, cujos olhos vítreos arregalavam-se inutilmente para o vácuo. E então, por algum milagre, encontrei a porta e a grande maçaneta de madeira, e fugi maníaco, daquela coisa de olhos vítreos no escuro, e do mórbido uivar daquela viola maldita, cuja fúria aumentou quanto mais eu fugia.

Apesar de minhas mais cuidadosas buscas e investigações, desde então jamais consegui encontrar a Rue d'Auseil. Mas em parte sou grato por não encontrá-la; nem a rua, nem a vertigem nos abismos insonháveis daquelas folhas de linhas apertadas, que poderiam ter explicado o que estava por trás da música de Erich Zann.
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