domingo, 19 de maio de 2013

O DILACERADOR DOS VÉUS

Ramsey Campbell 
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.





À meia noite, o último ônibus para Brichester já havia partido, e estava chovendo pesadamente. Kevin Gillson considerou amargamente ficar sob a marquise do cinema próximo até o raiar da manhã, mas o vento forte impelia a chuva de tal forma que a marquise não fornecia abrigo algum. Ele virou a gola de seu casaco para cima, tão logo a água começou a descer por seu pescoço, e lentamente subiu pela colina, distanciando-se do ponto de ônibus.
As ruas estavam virtualmente desertas; uns poucos carros que passavam não reagiam aos sinais que ele fazia. Muito poucas das casas pelas quais ele passava sequer chegavam a ter luzes acesas; causava-lhe depressão andar pelo asfalto úmido e negro, que refletia imagens trêmulas das luzes dos postes. Encontrou apenas uma pessoa na rua – uma figura silenciosa, curvada à sombra de umbrais. Apenas o brilho avermelhado de um cigarro convencera Gillson de que havia de fato alguém ali.
Na esquina das ruas Gaunt e Ferrey, notou um veículo aproximando-se. Um tanto atordoado pelos reflexos dos faróis, percebeu que era um táxi, passando pelas ruas em busca do último passageiro da noite. Kevin acenou com o esfrangalhado Camside Observer que estava carregando, e o táxi estacionou ao seu lado.
"Ainda está pegando passageiros?” gritou pela divisória.
"Eu estava indo pra casa,” respondeu o motorista. "Mas – se você ainda vai andar muito – eu não o deixaria andando pelas ruas numa noite como esta. Para onde vai?”
Gillson pediu que fossem para Brichester, e fez menção de entrar. Porém, naquele momento, ouviu uma voz próxima chamando; e ao voltar-se viu uma figura correndo pela chuva, em direção ao táxi. Pelo cigarro entre seus dedos e pela direção de onde havia vindo, Gillson imaginou que tratava-se do homem que havia notado nos umbrais.
"Espere – por favor, espere!" gritava o homem. Batia os pés no chão até chegar no táxi, molhando Gillson no processo. "Se importaria se compartilhássemos seu táxi? Se estiver com pressa, deixa pra lá – mas se eu for desviá-lo do caminho, pago a diferença. Não sei como é que eu poderia ir pra casa se não pegando táxi, embora eu não more muito longe daqui."
"E onde você mora, mesmo?" perguntou Gillson, cauteloso. "Não estou com pressa, mas..."
"Na Rota Tudor," respondeu rapidamente o homem.
"Ah, esse lugar é a caminho de Brichester, não?" disse Gillson, aliviado. "Claro, pode entrar – vamos acabar pegando pneumonia se ficarmos em pé aqui por mais tempo."
Uma vez no táxi, Gillson deu orientações ao motorista e sentou-se na parte de trás. Não sentia vontade de conversar, tendo decidido ler um livro, esperando que o outro não puxasse conversa. Pegou a cópia do Bruxaria nos Dias de Hoje que havia comprado numa banca, e ficou folheando as páginas.
Estava começando um capítulo quando uma voz o interrompeu. "Você acredita nessas coisas?"
"Nisto aqui?" Gillson inquiriu de maneira resignada, batendo na capa do livro. "De certa forma, sim – suponho que essas pessoas acreditavam que dançar nus e cuspir em crucifixos os faria bem. Um tanto infantil, porém – eram todos psicopatas, claro."
"Digno de um livro sensacionalista como esse, eu diria," concordou o outro.
Houve um silêncio de uns poucos minutos, e Gillson considerou voltar ao livro. Abriu-o novamente e leu a extravagante sinopse de orelha, e então o pôs de lado de jeito irritado, quando um fio de água desceu de sua manga para a página aberta. Limpou a mancha, e então sentiu-se irritado demais para ler o livro.
"Mas você sabe o que estava por trás desses cultos de bruxas?"
"O que quer dizer?" perguntou Gillson, deixando o livro de lado.
"Você conhece os verdadeiros cultos?" continuou a voz. "Não os servos medievais de Satã – mas aqueles que veneram deuses existentes?"
"Depende do que você quer dizer com 'deuses existentes'," respondeu Gillson.
O homem pareceu não ter notado esse comentário. "Eles formavam esses cultos porque estavam buscando alguma coisa. Talvez você tenha lido alguns de seus livros – você não os encontrará nas bancas, como aconteceu com esse aí, mas estão preservados em certos museus."
"Bem, uma vez estive em Londres, e dei uma olhada no que eles tinham no Museu Britânico."
"O Necronomicon, suponho." O homem parecia quase divertido. "E o que achou dele?"
"Achei um tanto perturbador," confessou Gillson, "mas não tão horripilante quando haviam me levado a esperar. Porém, não pude compreender tudo que havia ali."
"Pessoalmente, eu penso que ele é ridículo," disse o outro, "tão vago... Mas, é claro, se o livro tivesse descrito aquilo do qual dá pistas, nenhum museu teria contato com ele. Suponho que seja melhor que apenas uns poucos saibam da verdade... Desculpe-me, você deve estar me achando esquisito. E olha só, você nem me conhece. Sou Henry Fisher, e suponho que possa descrever-me como um ocultista."
"Não, por favor, continue," disse Gillson, "O que você está contando me interessa."
"Bem, interessado em pessoas buscando coisas? Por que razão, estaria você procurando alguma coisa?”
"Não exatamente, embora eu tenha um tipo de convicção persistente, desde que era criança. Nada incômodo, na verdade – só uma espécie de ideia de que nada é realmente como enxergamos: se houvesse outra forma de enxergar as coisas sem usar seus olhos, tudo pareceria bem diferente. Esquisito, não é?”
Quando não veio resposta, ele se virou. Havia uma expressão estranha nos olhos de Henry Fisher; um olhar de triunfo surpreso. Notando o desconcertamento de Gillson, pareceu controlar-se e comentou:
"É fantástico que você tenha dito isto. Já tive essa ideia por muito tempo, e muitas vezes estive a ponto de encontrar uma maneira de prová-la. Sabe, há uma maneira de enxergar o mundo sem utilizar os olhos, mesmo que você esteja na verdade com eles abertos – mas não só isto pode ser perigoso, como requer duas pessoas. Poderia ser interessante nós dois tentarmos... ah, mas é aqui que eu desço.”
Haviam estacionado diante de um flat. Por trás das árvores que gotejavam, um caminho de concreto corria até onde janelas pintadas de amarelo e preto amontoavam-se umas sobre as outras. "O meu é no térreo,” comentou Fisher ao sair e pagar o motorista.
Gillson abaixou a janela. "Espere só um minuto,” disse. "Você estava falando sério – o que foi que disse sobre ver as coisas como elas realmente são?”
"Está interessado?” Fisher abaixou-se e olhou para dentro do táxi. "Lembre-se que eu falei que poderia ser perigoso.”
"Não me importo,” respondeu Gillson, abrindo a porta e saindo. Fez sinal para que o motorista fosse embora, e somente quando estavam já observando as luzes traseiras diminuirem com a distância é que ele lembrou que havia deixado seu livro no assento.
Embora as árvores ainda estivessem gotejando, a chuva havia parado. Os dois homens andaram pelo caminho de concreto, e o vento turbilhionou por volta deles, parecendo soprar das estrelas geladas. Kevin Gillson sentiu alívio quando fecharam as portas de vidro por trás dele e entraram em um hall decorado com papel de parede florido. As escadas levavam para outros flats, mas Fisher virou-se para uma porta à esquerda, de azulejos de vidro.
Gillson na verdade não esperava nada específico, mas o que viu além daquela porta de azulejos de vidro o fascinou. Era uma sala de estar normal, com mobília contemporânea, papel de parede moderno, uma lareira elétrica; mas alguns dos objetos não eram de forma alguma normais. Reproduções de pinturas de Bosch, Clark Ashton Smith e Dali estabeleciam a atmosfera anormal, que era aumentada pelos livros esotéricos ocupando uma estante em um canto. Mas estes, pelo menos, poderiam ser encontrados em outros lugares; algumas das coisas ali, ele jamais havia visto antes. Não conseguia definir o objeto em formato de ovo que estava na mesa no centro do aposento, emitindo um estranho e intermitente assobio. Nem reconheceu os contornos de algo que estava num pedestal num canto, coberto por uma lona.
"Talvez eu devesse tê-lo avisado,” interrompeu Fisher. "Acho que não é exatamente o que você esperaria a partir da fachada do prédio. De qualquer forma, sente aí, e vou pegar um pouco de café enquanto explico alguns detalhes. E vamos ligar o gravador – quero que ele esteja funcionando mais tarde, de modo que eu possa registrar nosso experimento.”
Foi até a cozinha, e Gillson ouviu o bater de panelas. Por sobre o barulho, Fisher falava:
"Eu fui um garoto bem peculiar, sabe – bastante sensível, mas dotado de um estranho sangue frio. Depois de ter visto um gárgula uma vez na igreja, tive sonhos nos quais ele me perseguia, mas uma vez quando um cachorro foi atropelado diante de nossa casa, os vizinhos todos comentaram o quão avidamente eu observava a cena. Meus pais uma vez chamaram um médico, e ele disse que eu era 'muito mórbido, e que deveria ser mantido longe de qualquer coisa que pudesse me afetar.” Como se eles pudessem!
"Bem, foi na escola de gramática que eu tive essa ideia – na verdade foi na aula de física. Estávamos estudando a estrutura do olho, certo dia, e eu comecei a pensar no caso. Quanto mais olhava para o diagrama das retinas e humores e lentes, mais ficava convencido de que o que enxergamos através desse sistema complicado deve estar distorcido, de alguma forma. É muito simplista dizer que o que se forma na retina é apenas uma imagem, não mais distorcida do que as que enxergamos num telescópio. Eu quase me levantei e disse ao professor o que pensava, mas sabia que se o fizesse, eles ririam de mim.
"Não pensei mais no caso até chegar na Universidade. Então comecei a conversar com um dos alunos, um dia – seu nome era Taylor – e antes que eu percebesse, havia me unido a um culto de bruxos. Não aqueles decadentes pelados do seu livro, mas aqueles que realmente sabem como canalisar o poder de elementais. Eu poderia dizer bastante sobre o que realizamos juntos, mas algumas das coisas levariam tempo demais para serem explicadas. Hoje eu quero tentar o experimento, mas talvez depois eu conte a você sobre as coisas que eu sei. Coisas como a parte do cérebro que não é utilizada e como ela pode de fato ser posta em uso, e sobre o que está enterrado num cemitério não muito longe daqui...
"De qualquer forma, depois de algum tempo após minha iniciação, o culto foi exposto, e todos foram expulsos. Tive sorte, já que não estava na reunião que foi delatada, então permaneci na Universidade. Melhor ainda, alguns deles haviam decidido abandonar totalmente a feitiçaria; e eu persuadi um deles a me doar todos os seus livros. Entre eles estava o Revelações de Glaaki, e foi nele que li sobre o processo que quero tentar esta noite. Li sobre isto.”
Fischer entrou na sala de estar, carregando uma bandeja onde estavam duas canecas e um bule de café. Cruzou então a sala até onde estava o objeto velado num pedastal, e enquanto Gillson se aproximava, puxou a lona.
Kevin Gillson pôde apenas olhar fixamente. O objeto não era amorfo, mas era tão complexo, que os olhos não conseguiam reconhecer forma alguma descritível. Haviam hemisférios e metal reluzente, acoplados por longos bastões de plástico. Os bastões eram de uma cor cinzenta e plana, de modo que ele não conseguia perceber quais deles estavam mamis próximos que os outros; mesclavam-se numa massa plana, a partir da qual saiam como protusões os cilindros individuais. Ao observar a coisa, teve uma curiosa sensação de que olhos brilhavam por entre os bastões; mas de onde quer que fitasse o construto, enxergava apenas os espaços entre eles. A parte mais estranha era que ele sentia como se aquela fosse a imagem de algo vivo – algo de uma dimensão onde tal exemplo de geometria anormal poderia viver. Ao virar-se para falar com Fisher, enxergou, pelo canto do olho, que a coisa havia se expandido e ocupado quase toda aquela metade da sala – mas quando girou de volta, a imagem, é claro, estava do mesmo tamanho que antes. Pelo menos ele pensava que sim – mas Gillson não tinha nem mesmo certeza de quão alta ela estava antes.
"Está tendo ilusões de tamanho, então?” Fisher notou seu embaraço. "Isto porque é apenas uma extensão tridimensional da coisa real – é claro que, em sua própria dimensão, não se parece dessa forma.”
"Mas o que é isso?” perguntou Gillson com impaciência.
"Isso,” disse Fisher, "é uma imagem de Daoloth – o Dilacerador dos Véus.
Ele foi até a mesa onde havia colocado a bandeja. Servindo o café, passou a caneca para Gillson, que então comentou:
"Você terá de me explicar sobre isso já já, mas antes, pensei em algo enquanto você estava na cozinha. Eu o teria mencionado antes, mas é que não gosto de conversar através de aposentos diferentes. É bastante conveniente dizermos que o que enxergamos está distorcido – digamos que esta mesa não é retangular, nem plana. Mas quando eu a toco, sinto uma superfície retangular e plana – como você explica isto?”
"Uma simples alucinação tátil,” explicou Fisher. "E é por isto que eu disse que poderia ser perigoso. Sabe, você não está sentindo de fato nenhuma superfície plana e retangular – mas já que a enxerga dessa forma, sua mente o ilude de modo a pensar que está sentindo a contraparte de sua visão. Apenas de vez em quando, eu penso – por que a mente iria estabelecer esse sistema de ilusão? Será que se nos enxergarmos como nós realmente somos, seria demais para nós?”
"Olha só, você quer enxergar as coisas sem distorção,” disse Gillson, "e eu também. Não tente me fazer voltar atrás agora, pelo amor de Deus, logo agora que você conseguiu me deixar interessado. Você chamou isso de Daoloth – o que significa?”
"Bem, vou ter que sair pelo que pode parecer tangencial”, Fisher pediu desculpas. "Você estava observando aquela coisa em formato de ovo ali, repetidas vezes, desde que entrou – é que leu sobre elas no Necronomicon. Lembra-se daquelas referências aos cristalizadores de Sonho? Este é um deles – o aparelho que nos projeta enquanto estamos adormecidos, para outras dimensões. Leva um certo tempo pra nos acostumarmos a ele, mas com o passar de alguns anos, tenho conseguido entrar em quase todas as dimensões, e a um nível tão alto quanto a vigésima-quinta dimensão. Se pelo menos eu pudesse transmitir em palavras as sensações desse último plano, onde é o espaço que existe, e a matéria não pode ter existência! Não me pergunte onde achei o cristalizador, por falar nisso – até que eu tenha certeza de que seu guardião não me seguirá, jamais devo falar disso. Mas deixemos isso de lado.
"Depois de ter lido nas Revelações de Glaaki sobre como posso provar esta minha ideia, determinei ver por mim mesmo o que eu deveria invocar. Aconteceu por tentativa e erro; mas finalmente, certa noite, encontrei-me materializado num lugar que nunca estive antes. Haviam paredes e colunas tão altas que eu não conseguia enxergar onde elas terminavam, e no meio do chão havia uma grande fissura que corria de parede a parede, irregular, como se resultado de um terremoto. Conforme eu a observava, os contornos da rachadura pareciam dissolver-se e ficar imprecisos, e algo dela saiu. Eu disse a você que a imagem parece bastante diferente em sua própria dimensão – bem, eu vi sua contraparte viva, e você vai entender se eu não tiver de descrevê-la. Ficou ali vibrando por um momento, e então começou a expandir. Teria me engolido em poucos minutos, mas eu não esperei por isso. Corri por entre as colunas.
"Não fui muito longe, até que um grupo de homens ficou diante de mim. Estavam vestidos em robes e capuzes metálicos, e carregavam pequenas imagens daquilo que eu havia visto, de modo que percebi que eram seus sacerdotes. O primeiro perguntou-me a razão pela qual eu havia entrado em seu mundo, e eu expliquei que esperava poder convocar o auxílio de Daoloth para enxergar além dos véus. Eles olharam um para o outro, e então um deles me passou a imagem que estava carregando. "Você irá precisar disso,” ele me falou. "Vai servir como uma ligação, e você não vai conseguir encontrar nenhum igual em seu mundo.” E então a cena inteira desapareceu, e achei-me deitado na cama – mas estava segurando essa imagem que você vê aí.”
"Mas você não chegou a me dizer – ” implorou Gillson.
"Já vou chegar nesse ponto. Você sabe agora como eu consegui essa imagem. Porém, está imaginando o que isso tem a ver com o experimento de hoje, e o que diabos seria Daoloth?




"Daoloth é uma divindade – uma divindade alienígena. Foi venerado na Atlântida, onde era o deus dos astrólogos. Presumo que foi lá que seu modo de veneração foi estabelecido: ele jamais deve ser visto, pois o olho tenta seguir as convoluções de sua forma, e isto provoca insanidade. É por isto que não deve haver luz quando ele é invocado – quando o chamarmos, mais tarde, teremos de apagar todas as luzes. Mesmo aquilo ali é uma réplica deliberadamente imprecisa da entidade; tem de ser assim.
"Quanto a razão pela qual invocaremos Daoloth, em Yuggoth e Tond, ele é conhecido como o Dilacerador dos Véus, e este título tem bastante significado. Lá, seus sacerdotes podem enxergar não só o passado e o futuro – eles podem enxergar como os objetos prolongam-se até a última dimensão. É por isto que se o invocarmos e o contermos no Pentáculo dos Planos, poderemos ter o auxílio dele para eliminar a distorção. E isto é tudo que posso explicar agora. Já são quase 2:30 e devemos estar prontos às 2:45, que é quando as aberturas entrarão em alinhamento... É claro, se você acha que não está pronto, por favor me diga agora. Mas não quero ter que arrumar tudo pra nada.”
"Eu vou ficar,” disse-lhe Gillson, mas ao olhar de relance para a imagem de Daoloth, sentiu-se um tanto hesitante.
"Tudo bem. Me ajude aqui, sim?”
Fisher abriu um armário próximo à estante. Gillson enxergou várias caixas grandes, colocadas em ordem definida e marcadas com símbolos pintados. Ele ergueu uma enquanto Fisher puxava a que estava logo abaixo. Ao fechar a porta, Gillson ouviu o outro levantando a tampa; e quando virou-se Fisher já estava colocando o conteúdo da caixa pelo chão. Um conjunto de superfícies de plástico veio à luz, sendo organizadas como um pentagrama semissólido; e foram seguidas por duas velas negras de formatos vagamente obscenos, um bastão de metal com um ícone na ponta, e uma caveira. Essa caveira perturbou Gillson; haviam buracos no crânio para segurar as velas, mas mesmo assim ele podia perceber, a partir de seu formato e falta de boca, que aquilo não havia sido humano.
Fisher começou então a arranjar os objetos. Primeiro empurrou as cadeiras e mesas para junto das paredes, e então jogou o pentagrama no centro do chão. Conforme colocava a caveira, agora segurando as velas, dentro do pentagrama, e as acendia, Gillson perguntou por trás dele:
"Pensei que você disse que não poderíamos ter luzes – e quanto a essas aí?”
"Não se preocupe – elas não irão iluminar nada,” explicou Fisher. "Quando Daoloth vier, ele sugará a luz delas – isto torna o alinhamento das aberturas mais fácil.”
Ao se levantar para desligar a luz no interruptor, fez um comentário por sobre o ombro de Gillson: "Ele vai aparecer no pentáculo, e sua materialização sólida e tridimensional permanecerá lá o tempo todo. Porém, ele vai varrer a sala com prolongamentos bidimensionais, e você poderá senti-las – mas não fique com medo. Veja só, ele vai tirar um pouco de sangue de nós dois.” Sua mão ficou mais próxima do interruptor.
"O quê? Você nunca disse nada sobre – ”
"Está tudo bem,” assegurou Fisher. "Ele tira sangue de qualquer um que o chamar; parece que é sua forma de testar intenções. Mas não será muito. Ele tirará mais de mim, porque sou o sacerdote – você só está aqui para que eu possa utilizar sua vitalidade para abrir o caminho para ele. Certamente, não irá doer.” E sem esperar mais protestos, desligou as luzes.
Havia um pouco de luz do símbolo em neon na garagem fora da janela, mas muito pouco passava pelas cortinas. As velas negras eram também muito fracas, e Gillson não conseguia enxergar nada além do pentagrama, a partir de onde estava perto da estante. Ficou estarrecido quando seu anfitrião bateu o bastão com o ícone na ponta e começou a gritar histericamente. "Uthgos plam'f Daoloth asgu'i – venha, Tu que varres os véus da visão para longe, e exibe as realidades além.” Houve muito mais que isso, mas Gillson não conseguiu prestar atenção a nada específico. Estava observando a névoa luminosa que apareceu, arqueando-se sobre ele e Fisher, para entrar no crânio deformado da caveira no pentáculo. No fim do encantamento, havia uma aura definida entre os dois homens e a caveira. Ele observava tudo com fascínio; foi então que Fisher parou de falar.
Por um minuto, nada aconteceu. Então os arcos de névoa sumiram, e havia então apenas as luzes das velas; mas estas brilhavam mais forte agora, e uma aura nebulosa as cercava. Conforme Gillson as observava, as chamas gêmeas começaram a diminuir, e de súbito desapareceram. Por um segundo, uma chama negra pareceu substituí-las – uma espécie de fogo negativo – mas tão rapidamente quanto apareceu, foi embora. No mesmo instante, Gillson percebeu que ele e Fisher não estavam mais sozinhos naquela sala.
Ouviu um farfalhar vindo do pentáculo, e sentiu que uma forma movimentava-se ali. Rapidamente, sentiu-se cercado. Coisas secas, impossivelmente leves, tocavam seu rosto, e algo escorregou por entre seus lábios. Nenhum ponto em seu corpo foi tocado por tempo suficiente para que pudesse agarrar aquilo que nele sentia; passaram tão céleres que ele lembrava-se, em vez de sentir, aquelas antenas que o tocavam. Mas quando o farfalhar retornou para o centro do do aposento, havia um gosto salgado em sua boca – e ele sabia que a antena que havia entrado em sua boca havia drenado seu sangue.
Por sobre o farfalhar, declamou Fisher: "Agora que Tu já provaste nosso sangue, Tu sabes nossas intenções. O Pentagrama dos Planos Te conterá até que Tu realizes nosso desejo – dilacera o véu da crença e mostra as realidades da existência desvelada. Tu nos mostrará, assim libertado-Te?”
O farfalhar aumentou. Gillson desejou que o ritual terminasse; seus olhos estavam começando a acostumar-se com o brilho do símbolo da garagem, e naquele momento começava quase a ver algo tênue se contorcendo na escuridão dentro da figura.
Subitamente, soou uma irrupção discordante de metal raspando contra metal, e o edifício inteiro tremeu. O som passou a zumbido, e depois ao silêncio, e Gillson sabia que o ocupante do pentáculo havia ido embora. O aposento ainda estava escuro; as luzes das velas não haviam retornado, e sua visão ainda não conseguia penetrar as trevas.
Fisher disse de onde estava, perto da porta: "Bem, ele se foi – e aquela figura está construída de forma que ele não poderia voltar sem fazer o que lhe foi pedido. De modo que quando eu ligar a luz, você enxergará tudo como realmente é. Mas se mudou de ideia, encontrará uma máscara para os olhos em cima da estante. Coloque-as e não conseguirá enxergar nada – isto é, se você não quiser continuar com o experimento. Então eu vou ligar a luz e poderei enxergar tudo que eu quiser, e então usarei o ícone para anular o efeito. Você prefere fazer as coisas desta forma?”
"Eu vim até este ponto com você,” lembrou Gillson, "e não foi pra ficar apavorado no último momento.”
"Quer enxergar agora? Você sabe que, uma vez que tenha visto, as ilusões táteis não vão mais funcionar direito – tem certeza de que vai querer viver com isso?”
"Pelo amor de Deus, sim!” a resposta de Gillson era quase inaudível.
"Tudo bem. Vou ligar a luz – agora!”


Quando a polícia chegou nos flats da Rua Tudor, para onde haviam sido chamadas por um morador histérico, encontraram uma cena que horrorizou até o menos suscetível deles. O morador, tendo voltado de uma festa tardia, havia enxergado apenas o cadáver de Kevin Gillson jogado no tapete, esfaqueado até a morte. Os policiais não ficaram nauseados com isto, porém, mas pelo que encontraram no jardim, sob a janela da frente, que estava quebrada: Henry Fisher havia morrido ali, com sua garganta dilacerada pelos estilhaços de vidro da janela.
Parecia tudo muito extraordinário, e o gravador não ajudava muito. Tudo que foi dito de fato era que algum tipo de ritual de magia negra fora praticado naquela noite, e eles deduziram que Gillson havia sido morto com a ponta afiada do ícone do bastão. O resto da fita estava cheia de referências esotéricas, e no final, a coisa ficava totalmente incoerente. A parte após o clique do interruptor da luz na gravação era o que deixava os ouvintes mais estupefatos; até então ninguém encontrou qualquer razão para que Fisher tenha assassinado seu hóspede.
Quando detetives curiosos rodam a fita, a voz de Fisher sempre soa assim: "Aqui – mas que diabos, não posso enxergar direito depois de tanta escuridão. E agora, o que...
"Meu Deus, onde é que eu estou? E onde é que está você? Gillson, onde está você – onde está você? Não, sai daqui – Gillson, pelo amor de Deus, mexa seu braço. Eu posso enxergar algo se movendo em tudo isso – mas Deus, esse não pode ser você – por que é que eu não consigo escutá-lo – mas isso é suficiente pra deixar qualquer um surdo... Agora chegue perto – meu Deus, essa coisa é você – está se expandindo – contraindo – a geleia primal, formando, mudando – e a cor... Sai daqui! Não chegue mais perto – você tá maluco? Se ousar me tocar, vai provar a ponta deste ícone – pode parecer molhado e esponjoso e olhe – que horrível – mas eu farei por você! Não me toque – eu não posso suportar sentir isso – "
E então vem um grito e o barulho de uma queda. Um surto de gritos insanos é cortado pelo som de vidros quebrando, e um terrível ruído de alguém sufocando logo é reduzido ao nada.
É incrível pensar que dois homens foram aparentemente iludidos a pensar que haviam mudado fisicamente; mas este é o caso, pois os dois cadáveres estavam intactos, exceto pelas mutilações. Nada neste caso pode ser explicado quanto à insanidade dos dois homens. Pelo menos, há uma anomalia; mas o chefe da polícia de Camside está certo de que é apenas uma falha na fita que faz com que o gravador emita, em certos pontos, um som alto e seco, um farfalhar.

domingo, 23 de setembro de 2012

VISÕES DO ALÉM



HP Lovecraft
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.






Horrenda além de todo entendimento, a mudança que ocorrera em meu melhor amigo, Crawford Tillinghast. Eu não o via desde aquele dia, há dois meses e meio, quando ele contou-me o rumo que estavam levando suas pesquisas físicas e metafísicas; quando ele reagiu às minhas objeções fascinadas e quase assustadas expulsando-me de seu laboratório e casa, num surto de fúria fanática. Eu soube que ele havia permanecido a maior parte do tempo trancado em seu laboratório, no sótão, com aquela amaldiçoada máquina elétrica, comendo pouco, e evitando até mesmo os criados, mas não pensei que um breve período de dez semanas pudesse alterar e desfigurar tanto uma criatura humana. Não é agradável ver um homem robusto de repente emagrecer, e é ainda pior quando a pele flácida ficou amarelada, ou acinzentada, os olhos afundados, marcados de olheiras e por um brilho esquisito, a testa cheia de veias e rugas, e as mãos trêmulas e agitadas. E para piorar o caso, via-se uma falta de higiene repelente, uma desordem louca no vestuário, os cabelos escuros desgrenhados e brancos em suas raízes, e uma barba branca malcuidada onde antes não haviam sinais do barbear, tudo causando um efeito cumulativo bastante chocante. Mas era esse o aspecto de Crawford Tillinghast na noite em que sua mensagem quase incoerente levou-me a bater em sua porta, após minhas semanas de exílio; era esse o espectro que tremia ao receber-me, segurando uma vela, espiando furtivamente por sobre o ombro, como se temeroso de coisas ocultas em sua antiga e solitária casa no topo da Rua Benevolent.

Era um equívoco, Crawford Tillinghast jamais deveria ter estudado ciência e filosofia. Estas coisas devem ser deixadas para o investigador frio e impessoal, pois oferecem duas alternativas trágicas ao homem de sentimentos e ação; o desespero, se falhar em suas buscas, e terrores incomunicáveis e inimagináveis, caso tenha sucesso. Tillinghast havia antes sido presa do fracasso, solitário e melancólico; mas agora eu percebia, sentindo por dentro um medo nauseante, que ele era presa do sucesso. De fato, eu o havia advertido dez semana s antes, quando ele havia chegado, afobado com o relato do que achava estar próximo de descobrir. Estava então corado e empolgado, falando num tom alto e incomum, embora como sempre pedante.

“O que é que sabemos,” disse ele então, “do mundo e do universo ao nosso redor? Nossos meios de receber impressões são absurdamente escassos, e nossas noções dos objetos que nos cercam são infinitamente estreitas. Enxergamos as coisas apenas de acordo a como somos construídos para enxergá-las, e não conseguimos ideia alguma de sua natureza absoluta. Com cinco débeis sentidos, pretendemos compreender o cosmos, que é infinitamente complexo, porém outros seres, dotados de sentidos mais amplos, mais fortes, ou de uma gama diferente de sentidos, podem não apenas perceber as coisas de maneira bastante diferente da que percebemos, como podem perceber e estudar mundos inteiros de matéria, energia e vida que estão a nosso alcance mas que nunca podem ser detectados com os sentidos que temos. Sempre acreditei que esses mundos estranhos e inacessíveis estejam diante dos nossos narizes, e agora acredito ter encontrado uma maneira de romper as barreiras. Não estou brincando. Dentro de vinte e quatro horas, aquela máquina próxima à mesa vai gerar ondas, agindo sobre órgãos sensoriais não reconhecidos, que existem dentro de nós atrofiados, ou como vestígios rudimentares. Essas ondas abrirão a nós muitos vislumbres desconhecidos ao homem, e alguns desconhecidos de qualquer coisa que consideramos como vida orgânica. Enxergaremos aquilo que faz os cães uivarem na noite, e aquilo que faz os gatos levantarem as orelhas após a meia-noite. Enxergaremos essas coisas, e mais outras coisas que nenhuma criatura que respira jamais conseguiu ver. Saltaremos sobre o tempo, espaço, e outras dimensões, e sem que seja preciso o movimento físico, espiaremos os alicerces da criação.”

Quando Tillinghast disse essas coisas, fiz objeções, pois eu o conhecia bem demais, de modo que senti mais medo do que achei graça; mas ele estava fanático e expulsou-me da casa. Agora ele não era menos fanático, mas seu desejo de falar conquistara seu ressentimento, e fez exigências numa caligrafia que eu mal conseguia reconhecer. Ao entrar no lar de meu amigo, tão subitamente metamorfoseado numa gárgula trêmula, fui infectado pelo terror que parecia espreitar de todas as sombras. As palavras e crenças expressas dez semanas atrás pareciam vazar da escuridão além do pequeno círculo de luz de vela, e fiquei incomodado com a voz exausta e alterada de meu anfitrião. Pensava ver os criados ali, e não gostei quando ele me disse que haviam todos saído três dias antes. Parecia estranho, pelo menos, que o velho Gregory abandonaria seu mestre, sem pelo menos avisar um amigo próximo como eu. Fora ele mesmo que informara-me de tudo que eu sabia de Tillinghast, depois de eu ter sido expulso com tanta fúria.

Mesmo assim, logo pus de lado todos os meus medos em prol de minha crescente curiosidade e fascinação. Eu podia apenas cogitar exatamente o quê Crawford Tillinghast desejava, mas ele tinha algum segredo ou descoberta espantosa para compartilhar, sem dúvida. Antes, eu havia protestado contra suas observações antinaturais de coisas impensáveis; agora que ele havia, evidentemente, tido algum grau de êxito, eu quase compartilhava de seu entusiasmo, por mais terrível que parecesse o custo da vitória. Subindo pela desolação sombria da casa, segui a vela vacilante na mão daquela paródia trêmula de homem. A eletricidade parecia ter sido desligada, e quando perguntei a meu guia sobre isso, ele disse que havia uma razão definida para tanto.

“Seria demais... eu não ousaria,” ele continuou a resmungar. Notei especialmente o novo hábito de resmungos, pois não era coisa de Tillinghast falar sozinho. Entramos no laboratório do sótão, e percebi a detestável máquina elétrica, brilhando com uma luminosidade violeta doentia e sinistra. Estava conectada a uma bateria química poderosa, mas parecia não estar recebendo corrente; pois lembrei que em seu estágio experimental, ela crepitava e bramia quando ligada. Respondendo a minha pergunta, Tillinghast resmungou que aquele brilho permanente não era elétrico, não de alguma forma que eu pudesse compreender.

Ele fez-me sentar do lado da máquina, de modo que esta ficasse à minha direita, e ligou um interruptor em algum lugar logo abaixo do aglomerado superior de bulbos de vidro. Começou o crepitar de costume, que passou a ser apenas um chiado, e terminou como um zumbido tão leve que sugeria o retorno ao silêncio. Enquanto isso, a luminosidade aumentou, mais uma vez diminuiu, e então assumiu uma coloração pálida e esquisita, que eu não conseguiria classificar nem descrever. Tillinghast me observava, e notou minha expressão confusa.

“Sabe o que é isto?” sussurrou, “Isto é ultravioleta.” Ele reagiu à minha surpresa com um estranho risinho. “Você pensava que ultravioleta era invisível, e de fato é – mas você pode enxergá-lo, e outras coisas invisíveis, agora.”

“Preste atenção! As ondas dessa coisa estão despertando em nós milhares de sentidos adormecidos; sentidos que herdamos durante eras de evolução, do estado de életrons livres para o estado de humanidade orgânica. Eu enxerguei a verdade, e tenciono mostrá-la para você. Você consegue imaginar como é essa verdade? Vou explicar.” Aqui Tillinghast sentou-se diretamente oposto a mim, soprou a chama da vela e fitou meus olhos de maneira horrível. “Seus órgãos sensorais existentes – primeiro os ouvidos, creio eu – receberão muitas das impressões, pois estão intimamente conectados com os órgãos dormentes. E então virão os outros. Já ouviu falar da glândula pineal? Rio-me dos rasos endocrinologistas, tão iludidos e superestimados quanto os psicanalistas freudianos. Essa glândula é o principal órgão sensorial – assim descobri. No fim das contas, é similar à visão, e transmite imagens visuais ao cérebro. Se você é normal, é esta a forma com que apreenderá a maior parte... quero dizer, a maior parte das evidências do além.”

Meus olhos correram pelo imenso aposento do sótão, com sua parede sul inclinada, tenuamente iluminado por raios que o olho cotidiano não consegue enxergar. Os cantos mais distantes estavam cheios de sombras, e o lugar inteiro assumiu uma vaga irrealidade, que obscureceu sua natureza, e convidava a imaginação ao simbolismo e à fantasia. Durante o intervalo em que Tillinghast permaneceu calado, imaginei-me estar em algum vasto e incrível templo de deuses há muito mortos; algum vago edifício de inúmeras colunas de pedra negra, saindo do chão de lajes úmidas para juntar-se a um topo nebuloso, além do alcance de minha visão. A imagem por um tempo ficou bastante vívida, porém pouco a pouco, deu lugar a uma concepção mais horrenda; a concepção da solidão total e absoluta no espaço cego, mudo e infinito. Parecia haver um vácuo e nada mais que isso, e senti um medo infantil, que levou-me a buscar no bolso o revólver que eu carregava nas horas noturnas, desde que havia sido assaltado no leste de Providence. E então, das mais longínquas regiões remotas, o som suavemente boiou e fez-se existente. Era infinitamente tênue, sutilmente vibrante, e sem sombra de dúvida musical, mas tinha um aspecto de instabilidade exagerada que fazia com seu impacto sentisse como uma delicada tortura em todo o meu corpo. Senti sensações como aquelas que se sente quando se pisa em vidro no chão, por acidente. Simultaneamente, surgiu algo como uma corrente de ar frio, que parecia passar por mim, vinda da direção do som distante. Esperando sem fôlego, percebi que tanto o som quanto o vento aumentavam; e o efeito dava-me a bizarra impressão de estar preso aos trilhos no caminho de uma gigantesca locomotiva, que chegava cada vez mais perto. Comecei a falar com Tillinghast, e ao fazê-lo, todas as impressões incomuns desapareceram abruptamente. Eu enxergava apenas o homem, a máquina brilhante, e o apartamento em sombras. Tillinghast sorria repelente, notando o revólver que eu havia quase inconscientemente sacado, mas por sua expressão, eu tinha certeza de que ele havia visto e ouvido tanto quanto eu, se não muito mais. Sussurrei o que eu havia experienciado, e ele ordenou-me que permanecesse tão quieto e receptivo quanto possível.

“Não se mexa,” avisou, “pois sob estes raios, podemos tanto ser vistos quanto ver. Eu te disse que os criados foram embora, mas não disse como. Foi culpa daquela governanta de cabeça dura – ela ligou as luzes lá embaixo, depois de eu ter alertado que não o fizesse, e os fios pegaram vibrações simpáticas. Deve ter sido aterrador – pude ouvir os gritos aqui em cima, apesar de tudo que estava vendo e ouvindo de outra direção, e mais tarde, foi bastante desagradável encontrar aquelas pilhas de roupas vazias, largadas pela casa. As roupas da sra. Updike estavam próximas do interruptor do salão principal – é por isso que sei o que ela fez. A coisa pegou todos eles. Mas conquanto permaneçamos imóveis, estaremos perfeitamente seguros. Lembre-se, estamos lidando com um mundo horroroso, no qual estamos praticamente indefesos... fique quieto!

A combinação do choque da revelação com o comando abrupto causou-me uma espécie de paralisia, e aterrorizada, minha mente mais uma vez abriu-se às impressões vindas do que Tillinghast chamava “além.” Estava agora num vórtice de som e movimento, de imagens confusas diante de meus olhos. Enxergava os contornos borrados do aposento, mas em algum ponto do espaço, parecia brotar uma coluna efervescente de formas ou nuvens irreconhecíveis, penetrando o telhado sólido em algum ponto adiante, à minha direita. Notei então mais uma vez o efeito do templo, mas desta vez, os pilares alcançavam um oceano aéreo de luz, que lançava para baixo um raio cegante sobre o caminho da coluna nebulosa que eu enxergara antes. Depois disso, a cena ficou quase totalmente caleidoscópica, e na mistura de visões, sons, e impressões sensoriais não identificadas, sentia como se fosse dissolver, ou de alguma forma, perder a forma sólida. Tive uma visão definida, que lembrarei para sempre. Por um instante, pareci contemplar um trecho de um estranho céu noturno, cheio de esferas luminosas e girantes, e enquanto esse trecho afastava-se de mim, notei que os sóis brilhantes formavam uma constelação, ou galáxia, de formato definido; e esse formato era o do rosto distorcido de Crawford Tillinghast. Em outro momento, senti enormes coisas animadas roçando em mim, e às vezes passando ou vagando pelo meu corpo supostamente sólido, e pensei notar Tillinghast fitando-as como se seus sentidos melhor treinados pudessem percebê-las visualmente. Lembrei o que ele havia dito sobre a glândula pineal, e imaginei o que ele podia enxergar com esse olho sobrenatural.

De súbito, eu mesmo fui dotado de uma espécie de visão aprimorada. Acima e além do caos luminoso e sombrio, surgiu uma imagem que, embora vaga, possuía os elementos da consistência e da permanência. De fato era algo familiar, pois a parte incomum era sobreposta à cena terrestre comum, de forma bastante similar à projeção de cinema, que pode ser lançada sobre a cortina escura. Eu enxergava o laboratório no sótão, a máquina elétrica, e a forma desagradável de Tillinghast diante de mim; mas em todo o espaço não ocupado por objetos familiares, nenhuma partícula estava vazia. Formas indescritíveis, tanto vivas quanto inanimadas, mesclavam-se numa desordem nauseante, e próximo a cada coisa conhecida, haviam mundos inteiros de entidades alienígenas e desconhecidas. Da mesma forma, parecia que todas as coisas conhecidas entravam na composição de outras coisas desconhecidas, e vice-versa. Mais notáveis entre os objetos vivos, percebiam-se monstruosidades, similares a águas-vivas e feitas de negrume, que agitavam-se flácidas, em harmonia com as vibrações da máquina. Estavam presentes numa profusão repugnante, e para meu horror, percebi que elas sobrepunham-se; que eram semifluidas e capazes de passar umas por dentro das outras, e pelas coisas que pensamos ser sólidas. Aquelas coisas nunca paravam, mas pareciam sempre flutuar com algum propósito maligno. Às vezes, pareciam devorar umas às outras, o atacante lançando-se contra sua vítima e instantaneamente obliterando-a de vista. Sentindo calafrios, percebi o que devia haver obliterado os infelizes criados, e não pude excluir esse pensamento da mente, enquanto lutava para observar outras propriedades do mundo invisível ao nosso redor, e que agora estava visível diante de mim. Porém Tillinghast estava me vigiando, e começou a falar.

“Consegue enxergá-las? Consegue enxergá-las? Enxergou as coisas que flutuam e agitam-se ao seu redor e através de você, em todos os momentos de sua vida? Consegue enxergar as criaturas que formam o que os homens chamam de ar puro e de céu azul? Não consegui quebrar as barreiras; não mostrei a você mundos que nenhum outro homem vivo jamais viu?” Ouvia seu grito através daquele caos horrível, e vi seu rosto selvagem aproximar-se ofensivo. Seus olhos eram poços de chamas, e fitavam-ne com o que eu agora percebia ser um ódio intenso. A máquina zumbia de maneira detestável.

Você acha que essas coisas trêmulas eliminaram os criados? Idiota, são inofensivas! Mas os criados desapareceram, não foi? Você tentou me impedir; desencorajou-me quando eu precisava de cada gota de encorajamento que pudesse conseguir; você estava com medo da verdade cósmica, seu maldito covarde, mas agora eu te peguei! O que aniquilou os criados? O que os fez gritar tão alto?... Não sabe, hein! Mas vai saber logo, logo. Olhe para mim – preste atenção ao que estou dizendo – você realmente supõe que existam coisas como tempo e magnitude? Imagina existir coisas como forma, ou matéria? Pois eu lhe digo, eu atingi profundezas que seu cerebrozinho não conseguiria conceber. Eu enxerguei além dos limites da infinitude e arrastei demônios das estrelas... eu canalizei as sombras que vagam de mundo em mundo, semeando morte e loucura... o espaço a mim pertence, está ouvindo? Coisas estão me caçando agora – as coisas que devoram e dissolvem – mas eu sei como ludibriá-las. É você que elas pegarão, como pegaram os criados... Está agitado, senhor? Eu disse que era perigoso se mexer, eu o salvei até agora, dizendo que ficasse parado – salvei-o para ver mais coisas, e ouvir minhas palavras. Se você tivesse se mexido, elas o teriam pego bem antes. Não se preocupe, elas não vão machucar você. Elas não machucaram os criados – foi enxergá-las que fez os pobres diabos berrarem tanto. Meus bichinhos não são bonitos, pois vêm de lugares onde os padrões estéticos são – bem diferentes. A desintegração é um processo indolor, asseguro a você – mas eu quero que você as veja. Eu quase as vi, mas soube quando parar. Está curioso? Eu sempre soube que você não era um cientista de verdade. Tremendo, hein. Tremendo de ansiedade para ver as coisas mais ocultas que eu descobri. Por que não se move, então? Está cansado? Bem, não se preocupe, meu amigo, pois elas estão vindo... Olhe, olhe, mas que diabo, olhe... estão logo acima de seu ombro esquerdo...”

O resto do que há para ser dito é bastante breve, e você já pode saber por ter lido nos jornais. A polícia ouviu um tiro na velha casa Tillinghast, e nos encontrou ali – Tillinghast morto, e eu inconsciente. Eles prenderam-me, porque o revólver estava em minha mão, mas libertaram-me três horas depois, pois descobriram que Tillinghast havia morrido de apoplexia, e perceberam que meu tiro havia sido contra a nociva máquina, que agora está estilhaçada para sempre no chão do laboratório. Eu não contei muito do que vi, pois temi que o legista ficasse cético; mas ouvindo o resumo evasivo que dei, o médico avaliou que eu havia, sem dúvida, sido hipnotizado pelo louco vingativo e homicida. Gostaria de acreditar nesse médico. Ajudaria meus nervos abalados se eu pudesse não considerar mais o que agora penso do ar e do céu ao meu redor e sobre mim. Nunca mais senti-me sozinho ou confortável, e uma horrenda sensação de perseguição às vezes me toma como um calafrio, quando estou cansado. O que me impede de acreditar no médico é um fato muito simples – a polícia nunca encontrou os corpos daqueles criados que dizem que Crawford Tillinghast assassinou.








Escrito em 1920 e originalmente publicado com o título em inglês de From Beyond, em 1934 na Fantasy Fan.
Traduzido para o português em setembro de 2012.



sexta-feira, 10 de agosto de 2012

UBBO-SATHLA


Clark Ashton Smith
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.






Pois Ubbo-Sathla é a fonte e o produto final. Antes de Zhothaqquah, ou Yok-Zothoth, ou Kthulhut descerem das estrelas, Ubbo-Sathla já habitava os pântanos escaldantes da Terra recém-criada: uma massa sem cabeça ou membros, gerando as salamandras amorfas da época primordial e os pavorosos protótipos da vida terrena... E toda a vida terráquea, assim é dito, deverá retornar por fim, através do grande círculo do tempo, a Ubbo-Sathla.

O Livro de Eibon


Paul Tregardis encontrou o cristal leitoso numa pilha de restos de muitas terras e eras. Havia entrado na loja do vendedor de curiosidades, seguindo um impulso sem objetivo, sem qualquer objetivo específico em mente que não a distração ociosa de olhar e tocar uma miscelânia de coisas reunidas de muitos locais distantes. Passando os olhos pelo material, sem método algum, seu atenção foi atraída por um brilho embotado em uma das mesas; e extraiu a esquisita pedra em formato de orbe de sua posição sombria e atulhada entre um pequeno e feio ídolo asteca, o ovo fossilizado de uma moa, e um obsceno fetiche nigeriano, feito de madeira negra.

A coisa tinha mais ou menos o tamanho de uma pequena laranja, e era levemente aplanada nas extremidades, como um planeta em seus polos. Aquilo intrigava Tregardis, pois não era um cristal comum, sendo nebuloso e mutável, com um brilho intermitente em seu âmago, como se fosse alternadamente iluminado e escurecido a partir de dentro. Segurando-o à luz da janela cheia de neve, estudou-o um pouco, sem conseguir determinar o segredo daquela singular e regular alternação. Sua confusão logo foi complicada por uma sensação cada vez maior de vaga e irreconhecível familiaridade, como se houvesse visto a coisa antes, em circunstâncias agora totalmente esquecidas.

Chamou o vendedor de curiosidades, um hebreu diminuto de ar de antiguidade empoeirada, que dava a impressão de estar perdido em considerações comerciais, em alguma rede de devaneios cabalísticos.

“Pode dizer-me alguma coisa sobre isto?”

O vendedor contraiu de maneira indescritível e simultânea os ombros e as sobrancelhas.

“É bastante antigo – paleogênico, poder-se-ia dizer. Não posso dizer muito, pois sabe-se pouco. Um geólogo encontrou-o na Groelândia, sob o gelo glacial, em terreno mioceno. Quem sabe? Pode ter pertencido a algum feiticeiro da Thule primeva. A Groelândia era uma região quente e fértil sob o sol da época miocena. Sem dúvida é um cristal mágico; e pode-se ter estranhas visões em seu âmago, caso seja observado por tempo suficiente.

Tregardis ficou bastante surpreso; pois a sugestão aparentemente fantástica do vendedor trouxe à mente suas próprias sondagens de um ramo da sabedoria obscura; em particular lembrava-se do Livro de Eibon, aquele volume esquecido e oculto tão estranho e raro, que diz-se ter sido passado adiante através de uma série de múltiplas traduções, a partir de um original pré-histórico escrito no idioma perdido da Hiperbórea. Tregardis, com bastante dificuldade, obtera a versão francesa – cópia que estivera em posse de muitas gerações de feiticeiros e satanistas – mas nunca conseguira encontrar o manuscrito grego a partir do qual aquela versão fora derivada.

O original remoto e fabuloso era tido como a obra do grande mago hiperbóreo que lhe dava o título. Era uma coleção de mitos sombrios e ominosos, de liturgias, rituais e encantamentos tão malignos quanto esotéricos. Não sem sentir calafrios, no decorrer dos estudos que uma pessoa comum acharia mais que singular, Tregardis havia feito comparações do volume francês com o temível Necronomicon, do árabe louco Abdul Alhazred. Encontrara muitas correspondências de significância bastante sombria e aterradora, junto com vários dados proibidos que eram desconhecidos do árabe ou omitidos por ele... ou por seus tradutores.

Seria isso o que estava tentando relembrar, pensou Tregardis? – a referência breve e casual no Livro de Eibon a um cristal nebuloso que fora propriedade do mago Zon Mezzamalech, em Mhu Thulan? É claro, era tudo fantástico demais, hipotético demais, incrível demais – porém Mhu Thulan, a porção norte da antiga Hiperbórea, supostamente correspondia mais ou menos à Groelândia moderna, que antes seria uma península do continente principal. Será que a pedra em suas mãos, por um acaso fabuloso, seria o cristal de Zon Mezzamelech?

Tregardis sorriu consigo mesmo, diante da ironia que era sequer conceber essa noção absurda. Tais coisas não aconteceriam – pelo menos não na Londres contemporânea; e de qualquer forma, muito provavelmente o Livro de Eibon não passava de fantasia supersticiosa. Mesmo assim, havia algo no cristal, que continuava a tentá-lo e persuadi-lo. Terminou por comprar o cristal, por um preço razoavelmente moderado. A soma foi declarada pelo vendedor e paga pelo comprador, sem qualquer barganha.

Com o cristal no bolso, Paul Tregardis apressou-se em voltar a seu alojamento, ao invés de continuar o passeio de lazer. Instalou o globo leitoso em sua mesa de trabalho, onde ficou firme sobre uma de suas extremidades oblatas. E então, ainda sorrindo com o próprio absurdo, pegou o manuscrito em papel de pergaminho amarelado, o Livro de Eibon, de seu lugar numa coleção um tanto abrangente de literatura incomum. Abriu a capa de couro vermiculado, de fechos de aço manchado, e leu para si mesmo, traduzindo a partir do francês arcaico, o parágrafo que referia-se a Zon Mezzamelech:


“Este mago, bastante poderoso entre os feiticeiros, encontrara uma pedra nebulosa, semelhante a um orbe, um tanto achatada nas extremidades, na qual podia contemplar muitas visões do passado terreno, e até mesmo dos começos da Terra, quando Ubbo-Sathla, a fonte incriada, repousa vasta e inchada e fermentescente em meio à geleia vaporosa... Mas daquilo que chegou a contemplar, Zon Mezzamalech deixou poucos registros; e as pessoas dizem que ele desapareceu de maneira desconhecida; e depois disso o cristal nebuloso se perdera.”

Paul Tregardis colocou o manuscrito de lado. Mais uma vez, havia algo que o tentava e seduzia, como um sonho perdido ou uma memória condenada ao esquecimento. Impelido por uma sensação que não ponderou ou questionou, sentou-se diante da mesa e começou a fitar resoluto as profundezas da orbe gelada e nebulosa. Sentia uma expectativa que, de alguma forma, era tão familiar, uma parte de sua consciência tão permeante, que nem chegou a dar-lhe um nome.

Minuto após minuto, ficou ali sentado, observando o reluzir e apagar alternados da misteriosa luz no âmago do cristal. Quase que imperceptivelmente, foi abatendo-se sobre ele uma sensação de dualidade onírica quanto à sua pessoa e seu ambiente. Ele ainda era Paul Tregardis – mas também era outro alguém: o aposento era o do seu apartamento em Londres – mas também uma câmara em algum lugar estrangeiro, embora bastante conhecido. E em ambos os lugares, ele fitava com resolução o mesmo cristal.

Após um ínterim, sem surpresa da parte de Tregardis, o processo de reidentificação tornou-se completo. Ele sabia que era Zon Mezzamalech, feiticeiro de Mhu Thulan, estudante de toda a sabedoria anterior à sua própria época. Sábio em segredos terríveis não conhecidos por Paul Tregardis, que era um amador em antropologia e ciências ocultas na Londres dos dias recentes, buscou através do cristal leitoso uma maneira de conseguir conhecimentos ainda mais antigos e terríveis.

Ele havia adqurido a pedra de maneira duvidosa, vinda de fonte mais que sinistra. Era singular e incomparável, em todas as terras ou tempos. Em suas profundezas, todos os anos anteriores, todas as coisas que já haviam acontecido, supostamente eram espelhadas e revelar-se-iam ao visionário paciente. E através do cristal, Zon Mezzamalech sonhava recuperar a sabedoria dos deuses que morreram antes que a Terra houvesse nascido. Haviam passado para além do vácuo sem luz, deixando sua sabedoria inscrita em tabuletas de pedra ultraestelar; tabuletas guardadas no lodaçal primordial pelo demiurgo amorfo e idiota, Ubbo-Sathla. Apenas através do cristal conseguiria encontrar e ler as tabuletas.

Pela primeira vez, estava testando as virtudes propaladas do globo. Em volta de si, uma câmara enfeitada de marfim, cheia de livros e parafernálias mágicas, estava lentamente esvaindo de sua consciência. Diante dele, numa mesa de alguma madeira negra hiperbórea, gravada com cifras grotescas, o cristal parecia inchar e aprofundar-se, e em suas profundezas translúcidas contemplou um rápido e desconexo turbilhão de cenas vagas, transitórias como as bolhas na calha de um moinho. Era como se estivesse testemunhando o mundo real, com suas cidades, florestas, montanhas, mares e prados fluindo abaixo dele, iluminando-se e escurecendo-se como se a passagem dos dias e noites fosse bizarramente acelerada no fluxo do tempo.

Zon Mezzamalech esquecera Paul Tregardis – perdera a lembrança de sua própria existência e dos arredores em Mhu Thulan. Momento a momento, a visão fluente no cristal ficava mais definida e distinta, e a própria orbe aprofundava-se até causar vertigens, como se estivesse de uma altura insegura, espreitando um abismo jamais antes sondado. Ele sabia que o tempo retrocedia no cristal, desenrolando diante dele o cortejo de todos os dias já passados; mas um estranho alarmismo o arrebatou, e temeu continuar observando. Como alguém que quase caiu de um precipício, forçou-se para fora do transe da orbe, com um arranco violento.

Mais uma vez, diante de seu olhar, o enorme mundo rodopiante que havia espreitado não passava de um pequeno e nebuloso cristal, na sua mesa rúnica em Mhu Thulan. E então, pouco a pouco, pareceu que o grande aposento de painéis esculpidos de marfim de mamute estava estreitando-se para formar outro lugar, mais escuro; e Zon Mezzamalech, perdendo sua sabedoria sobrenatural e poder feiticeiro, retornou, em uma estranha regressão, a ser Paul Tregardis.

Porém, aconteceu que não conseguiu retornar completamente. Tregardis, tonto e cogitabundo, encontrava-se diante da mesa de trabalho onde havia posto a esfera oblata. Sentiu a confusão daquele que sonha e ainda assim não despertou totalmente do sonho. O aposento o confundia de maneira vaga, como se algo estivesse errado com seu tamanho e mobília; e sua lembrança da compra do cristal das mãos de um vendedor de curiosidades misturava-se esquisita e discrepantemente com a impressão de que havia adquirido o objeto de maneira bastante diversa.

Sentia que algo muito estranho havia acontecido com ele, ao espreitar o cristal; mas exatamente o quê, não conseguia lembrar. A experiência havia deixado aquele tipo de turvação que advém de uma orgia de haxixe. Assegurou-se de que era Paul Tregardis, que vivia em tal e tal rua em Londres, que o ano era 1932; mas tais verdades e lugares-comum tinham de certa forma perdido seu significado e validade; e tudo ao seu redor parecia fantasmagórico e insubstancial. As próprias paredes pareciam evanescer como fumaça; as pessoas nas ruas eram espectros de espectros; e ele mesmo não passava de uma sombra perdida, um eco vagante de algo há muito esquecido.

Resolveu não repetir o experimento de cristalomancia. Os efeitos eram demasiado desagradáveis e duvidosos. Mas no mesmo dia seguinte, seguindo um impulso irracional ao qual sucumbiu quase que mecanicamente e sem relutância, encontrou-se sentado diante do orbe nebuloso. Mais uma vez tornou-se o feiticeiro Zon Mezzamelech, em Mhu Thulan; mais uma vez sonhou para recuperar a sabedoria dos deuses pré-mundanos; mais uma vez fugiu do cristal aprofundante, com o terror daqueles que temem cair; e mais uma vez – embora de forma tênue e duvidosa – ele se tornava Paul Tregardis.

Três vezes Tregardis repetiu a experiência, em dias sucessivos; e a cada vez, sua própria pessoa e o mundo ao seu redor tornavam-se mais tênues e confusos. Suas sensações eram as de um sonhador prestes a despertar; e a própria Londres era tão irreal quanto as terras que somem diante do sonhador, desaparecendo numa bruma viscosa, numa luz nebulosa. Era como se a fantasmagoria do tempo e do espaço dissolvesse ao seu redor, revelando alguma realidade mais crível – ou outro sonho de espaço e tempo.

Veio então, por fim, o dia em que ele sentou-se diante do cristal – e não mais retornou como Paul Tregardis. Foi em dia em que Zon Mezzamalech, impetuosamente desconsiderando certos alertas malignos e portentosos, resolveu superar seu curioso medo de cair corporalmente no mundo visionário que contemplava – medo que até então o impedia de seguir muito o fluxo inverso do tempo. Ele deveria, repetia a si mesmo, conquistar esse medo, se quisesse ver e ler as tabuletas perdidas dos deuses. Havia contemplado apenas pouco mais que alguns fragmentos dos anos de Mhu Thulan imediatamente posteriores aos anos contemporâneos de sua própria vida; e haviam ciclos inestimáveis entre esses anos e o Princípio.

Mais uma vez, diante de seu olhar, o cristal aprofundou-se imensuravelmente, mostrando cenas e acontecimentos que fluíam de maneira retrógrada. Mais uma vez as cifras mágicas da mesa escura saíram de seu campo de percepção, e as paredes feiticeiramente inscritas de sua câmara desfizeram-se como algo menos que um sonho. Mais uma vez ficou tonto de uma enorme vertigem, ao curvar-se diante do turbilhão e sorvedouro dos terríveis abismos de tempo naquele orbe que parecia um planeta. Sentindo medo, apesar de sua resolução, quase acabou por afastar-se; mas observara e espreitara por tempo demais. Houve uma sensação de queda abissal, uma sucção como se de ventos inelutáveis, de redemoinhos que o esmagou através de visões instáveis e efêmeras de sua própria vida passada, até chegar a anos e dimensões pré-natais. Parecia suportar a agonia da dissolução invertida; e que não era mais Zon Mezzamalech, o sábio e erudito observador do cristal, mas uma parte real do fluxo esquisitamente rápido que corria em reverso para reatingir o Princípio.

Pareceu viver inúmeras vidas, morrer miríades de mortes, esquecendo a cada vez a morte e a vida que aconteciam antes. Lutou como guerreiro em batalhas semilendárias; foi uma criança brincando nas ruínas de alguma antiga cidade de Mhu Thulan; foi um rei que reinava quando a cidade estava em seu ápice, o profeta que prevera sua construção e seu fim. Como uma mulher, chorou pelos mortos há muito falecidos, em necrópoles há muito em ruínas; como um antigo mago, murmurou os feitiços rudimentares das primeiras feitiçarias; como sacerdote de algum deus pré-humano, empunhou a adaga sacrificial em templos-cavernas de pilares de basalto. Vida por vida, era por era, retraçou os longos e trôpegos ciclos através dos quais a Hiperbórea ascendera da selvageria para a alta civilização.

Tornou-se um bárbaro de alguma tribo troglodita, fugindo do gelo lento e torreado de uma prévia era glacial, invadindo terras iluminadas pelo fulgor rubicundo dos vulcões perpétuos. E então, após incomputáveis anos, não era mais um homem, mas uma fera similar a homem, vagando em florestas de samambaias e calamitas gigantes, ou construindo um ninho improvisado nos galhos de poderosas cicadáceas.

Através de éons de sensação anterior, de luxúria e fome básicas, de terror e loucura aborígenes, havia alguém – ou algo – que retrocedia no tempo. A morte tornou-se nascimento e o n nascimento era a morte. Numa lenta visão de mudança reversa, a terra pareceu derreter, e desfez-se das colinas e montanhas de seus estratos posteriores. O sol ficava sempre maior e mais quente sobre os pântanos fumegantes, que pululavam de vida grosseira, em meio a uma vegetação mais exuberante. E a coisa que havia sido Paul Tregardis, que havia sido Zon Mezzamalech, era parte de toda essa monstruosa involução. Voou com as asas de garras de um pterodáctilo, nadou em mares tépidos com o volume vasto e comprido de um ictiossauro, urrou grosseiro com a garganta armadurada de algum behemote esquecido, urrando para a enorme lua que queimava em meio a névoas primordiais.

Com o passar do tempo, após éons de brutalidade imemorial, tornou-se um dos homens-serpente perdidos, que preparavam suas cidades de gneisse negra e lutavam suas guerras venenosas no primeiro continente do mundo. Caminhou onduladamente em ruas pré-humanas, em estranhas criptas curvas; espreitou as estrelas primevas do topo de torres altas e babélicas; ajoelhou-se nas litanias sibilantes dos grandes ídolos serpentinos. Com o passar de anos e épocas da era ofídica, ele voltou a ser uma coisa que rastejava no limo, uma coisa que não havia ainda aprendido a pensar e sonhar e construir. E veio o tempo em que não havia mais continente, mas apenas um charco vasto e caótico, um mar de limo, sem limites ou horizontes, sem costas ou elevações, fervilhando no contorcer cego dos vapores amorfos.

E então, no princípio cinzento da Terra, a massa disforme que era Ubbo-Sathla repousava por entre o limo e os vapores. Sem cabeça, sem órgãos, sem membros, expelia de suas laterais lodosas, numa onda lenta e incessante, as formas ameboides que constituíam os arquétipos da vida terrena. Era algo horrível, se fosse possível apreender o horror; algo repugnante, se houvesse alguém ali capaz de sentir repugnância. Perto dele, largadas ou lançadas na lama, estavam as poderosas tábulas de pedra minerada nas estrelas, onde estava escrita a inconcebível sabedoria dos deuses pré-mundanos.

E para ali, para o objetivo de uma busca esquecida, foi atraída a coisa que havia sido – ou que algum dia haveria de tornar-se Paul Tregardis e Zon Mezzamalech. Transformado numa salamandra amorfa do começo dos tempos, a coisa rastejava preguiçosa e indiferente sobre as decaídas tábulas dos deuses, e lutava e devorava cegamente outras crias de Ubbo-Sathla.

* * *

Quanto a Zon Mezzamalech e seu desaparecimento, não há menção em parte alguma, exceto naquele breve trecho do Livro de Eibon. Quanto a Paul Tregardis, que também desaparecera, houve uma breve notícia em vários dos jornais londrinos. Ninguém parecia saber nada sobre o caso: ele desaparecera como se jamais houvesse existido; e o cristal, presume-se, também desaparecera. Ou pelo menos, ninguém o encontrou.






Leia o original aqui:
http://www.eldritchdark.com/writings/short-stories/224/ubbo-sathla
Baixe a tradução em pdf aqui:
http://pt.scribd.com/doc/102539807/Ubbo-Sathla-Clark-Ashton-Smith-Traducao-Arthur-Ferreira-Jr

terça-feira, 7 de agosto de 2012

O HORROR DE SALEM


Henry Kuttner
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.




Quando Carson chegou a notar os sons em seu sótão, culpou os ratos. Mais tarde, começou a ouvir as histórias sussurradas pelos supersticiosos moeiros poloneses da Rua Derby, que falavam da primeira ocupante da casa antiga, Abigail Prinn. Não há ninguém vivo hoje que possa lembrar-se da diabólica velha, mas as mórbidas lendas que pululam no “distrito das bruxas” de Salem, como ervas daninhas ou covas negligenciadas, mencionam particularidades perturbadoras de suas atividades, e eram desagradavelmente explícitas quanto aos detestáveis sacrifícios que sabe-se que ela ofertou a uma imagem de chifres crescentes, degradada pelos vermes e de origem incerta. Os mais velhos ainda sussurram sobre Abbie Prinn e suas monstruosas gabolices de que era alta sacerdotisa de um deus horrivelmente potente, que habitava nas profundezas sob as colinas. De fato, foram as gabolices incansáveis das velha bruxa que a levaram a sua abrupta e misteriosa morte em 1692, por volta da época dos famosos enforcamentos de Gallows Hill. Ninguém gosta de falar sobre o assunto, mas de vez em quando alguma velha desdentada resmunga temerosa, falando sobre as chamas que não queimavam a bruxa, pois todo o seu corpo havia sido tomado pela peculiar anestesia de sua marca diabólica.

Abbie Prinn e sua estátua anômala há muito desapareceram, mas ainda ficou difícil encontrar quem alugasse sua casa decrépita e de frontão triangular, com seu segundo andar quase caído e curiosas janelas de caixilho em formato de diamante. A notoriedade maligna da casa espalhou-se por toda Salem. Nada de fato havia acontecido lá, nos anos recentes, que pudesse dar margem a histórias inexplicáveis, mas aqueles que alugavam a casa tinham o hábito de sair dali com rapidez, geralmente explicando de maneira vaga e insatisfatória sobre a questão dos ratos.


E foi um rato que levou Carson ao Quarto da Bruxa. O padrão abafado e rangente dentro das paredes apodrecidas havia perturbado Carson mais de uma vez, durante as noites de sua primeira semana na casa, que havia alugado para obter a solidão que o permitiria completar um romance pedido pelos seus editores – outro romance leve a ser adicionado à sua longa cadeia de sucessos populares. Mas não foi senão até algo mais tarde, que certa noite começou a conjeturar de maneira fantástica sobre a inteligência daquele rato, que fazia ruídos sob seus pés, no escuro do corredor.

A casa havia recebido fiação elétrica, mas o bulbo no corredor era pequeno e gerava apenas uma luz tênue. O rato era uma sombra deformada e negra que se lançava alguns metros para a frente e então pausava, aparentemente observando Carson.

Em qualquer outro momento, Carson teria enxotado o animal com um gesto ameaçador e voltado a trabalhar. Mas o tráfego na Rua Derby estivera incomumente barulhento, e ele achava difícil concentrar-se no romance. Seus nervos, sem nenhuma razão aparente, estavam tensos; e de alguma forma ele sentia que o rato, observando-o logo além de seu alcance, estava fitando-o de modo divertido e sardônico.

Sorrindo com a ideia, aproximou-se alguns passos do rato, e este saiu correndo para a porta do sótão, que para sua surpresa, estava entreaberta. Pensou que deveria ter deixado de fechá-la da última vez que subira até lá, embora geralmente tomasse cuidado em manter as portas fechadas, pois a velha casa era bem fria. O rato esperava na soleira da porta.

Irracionalmente aborrecido com o fato, Carson deu um carreirão no rato, que subiu pela escada. Ligou então a luz do porão e observou o rato, que estava num canto. O animal observava com toda a atenção de seus olhos pequenos e brilhantes.

Ao descer as escadas, não conseguiu evitar sentir que estava agindo feito idiota. Mas seu trabalho estava cansativo, e seu subconsciente acolheria qualquer interrupção. Moveu-se pelo porão em direção ao rato, percebendo que, para seu espanto, a criatura permanecia imóvel, fitando-o. Uma estranha sensação de incerteza começou a crescer dentro de Carson. O rato estava agindo anormalmente, era isto que sentia; e o fitar de seus olhinhos frios, que nunca piscavam, era de certa forma perturbador.

Mas caiu na risada, pois o rato de súbito virou para o lado e desapareceu num pequeno buraco da parede do porão. Com uma certa preguiça, riscou com o dedão do pé uma cruz sobre a poeira diante da toca, decidindo que poria ali uma armadilha quando viesse a manhã.

O focinho e os bigodes irregulares do rato surgiram de maneira cautelosa. Ele movia-se para a frente e então hesitava, voltando. O animal começava então a agir de maneira singular e indescritível – como se estivesse dançando, pensou Carson. Movia-se de maneira tateante para frente, e então retrocedia. Um pequeno salto para a frente, aparecendo rapidamente, e então pulava de volta com rapidez, como se – a comparação passou pela mente de Carson – uma cobra estivesse enrodilhada diante da toca, alerta para impedir a fuga do rato. Mas não havia nada ali, salvo a pequena cruz que Carson havia riscado no pó.


Sem dúvida, era o próprio Carson que bloqueava a fuga do rato, pois estava em pé a menos de um metro da toca. Moveu-se para a frente, e o animal celeremente saía de vista.

Interessado, Carson encontrou um pedaço de pau e com ele cutucou o buraco, explorando-o. Também prestou atenção próximo à parede, detectando algo estranho na laje de pedra logo acima da toca de rato. Uma rápida olhadela confirmou suas suspeitas. A laje aparentemente era móvel.

Carson a examinou de perto, notando uma depressão em sua borda, onde podia caber uma mão. Seus dedos se encaixavam com facilidade na cavidade, e ele puxou com cuidado. A pedra moveu-se um pouco e parou. Puxou com mais força, e num espirrar de terra seca a laje destacou-se da parede, como se presa a uma dobradiça.

Um retângulo negro, da altura de seu ombro, abria-se na parede. De suas profundezas emanou um fedor úmido e desagradável de ar viciado, fazendo Carson dar um passo para trás, involuntariamente. De repente lembrou-se das monstruosas histórias sobre Abbie Prinn e os horrendo segredos que supostamente ela teria ocultado em sua casa. Teria ele encontrado um refúgio escondido de uma bruxa há muito tempo morta?

Antes de entrar pela passagem sombria, tomou a precaução de pegar uma lanterna lá em cima. Então baixou a cabeça com cuidado e caminhou por aquela passagem estreita e de odor maligno, sondando com o facho de luz da lanterna.

Estava num túnel estreito, pouco mais alto que sua cabeça, murado com lajes de pedra. Prolongava-se por talvez cinco metros e então abria-se numa grande alcova. Conforme Carson adentrava o aposento subterrâneo – sem dúvida um refúgio oculto de Abbie Prinn, um esconderijo, pensou, que mesmo assim não pôde salvá-la no dia em que a multidão louca de medo entrou em fúria e a arrastou pela Rua Derby – segurou o fôlego, engasgado de assombro. O aposento era fanástico, surpreendente.

Era o chão que capturava o olhar de Carson. O cinza morto da parede circular dava lugar aqui a um mosaico de pedras de múltiplas cores, nas quais predominavam azuis, verdes e púrpuras – de fato, não eram vistas nenhuma das cores mais quentes. Deviam haver milhares de fragmentos de pedra compondo aquele padrão, pois nenhum deles era maior que uma noz. E o mosaico parecia seguir algum padrão definido, desconhecido para Carson; haviam curvas de púrpura e violeta mesclados a linhas angulosas de verde e azul, entrelaçadas a arabescos fantásticos. Haviam círculos, triângulos, um pentagrama, e outras figuras menos familiares. A maioria das linhas e figuras irradiavam-se a partir de um ponto definido: o centro da câmara, onde havia um disco circular de pedra negra e morta, talvez de meio metro de diâmetro.


Estava tudo muito silencioso. Os sons dos carros que ocasionalmente passavam lá na Rua Derby não podiam ser ouvidos. Numa pequena alcova da parede Carson vislumbrou marcas nas paredes, e moveu-se lentamente naquela direção, o facho de luz viajando para cima e para baixo, nas paredes do nicho.

Aas marcas, o que quer que fossem, foram emplastadas na pedra há muito tempo, pois o que restava dos símbolos enigmáticos era indecifrável. Carson viu vários hieroglifos parcialmente apagados, que a ele lembraram árabe, mas não tinha muita certeza. No chão da alcova, um disco de metal corroído, de cerca de dois metros e quarenta de diâmetro, e Carson teve a impressão nítida de que era móvel. Mas não parecia haver maneira de levantá-lo.

Ficou consciente de que estava no centro exato da câmara, no círculo de pedra negra onde centrava-se o estranho padrão. Mais uma vez, notou o silêncio total. Seguindo um impulso, desligou o facho da lanterna. Instantaneamente, estava na escuridão total.

Naquele momento, uma curiosa ideia entrou em sua mente. Viu-se no fundo de um poço, e de cima descia um dilúvio, descendo pela coluna para engoli-lo. A impressão era tão forte que chegou a imaginar que ouvia uma trovoada abafada, o rugido da catarata. Estranhamente abalado, ligou a luz, olhando ao redor com presteza. O ressoar, é claro, era o pulsar de seu próprio sangue, tornado audível no silêncio completo – um fenômeno familiar. Mas, se o lugar era tão quieto – 

O pensamento saltou em sua mente, como se subitamente empurrado em sua consciência. Este seria um lugar ideal para trabalhar. Poderia puxar uma fiação elétrica, descer uma mesa e uma cadeira, usar um ventilador elétrico se necessário – embora o odor úmido que notou a princípio houvesse desaparecido por completo. Moveu-se pela boca do túnel, e ao sair do aposento sentiu uma inexplicável sensação de relaxamento dos músculos, embora não houvesse percebido antes que estavam contraídos. Atribuiu o fato ao seu nervosismo, e subiu as escadas para fazer um pouco de café preto e escrever a seu senhorio em Boston sobre a descoberta.



O visitante fitou curioso o corredor, assim que Carson abriu a porta, balançando a cabeça consigo mesmo, como se satisfeito. Era uma figura alta e magra, com sobrancelhas de cinza férreo sobre olhos igualmente cinzentos, e aguçados. Seu rosto, embora esquálido e cheio de marcas, não mostrava rugas.

“É sobre o Quarto da Bruxa, eu presumo?” Carson falou sem muitos modos. Seu senhorio havia sido indiscreto, e durante a última semana ele for forçado a entreter antiquários e ocultistas ansiosos em dar uma olhada na câmara secreta onde Abbie Prinn murmurava seus feitiços. O incômodo de Carson cresceu, e ele considerou mudar-se para um lugar mais quieto; mas sua teimosia inerente o fez permanecer, determinado a terminar seu romance a despeito das interrupções. E agora, observando friamente seu convidado, disse, “Desculpe, mas não está mais em exposição.”

O outro pareceu atônito, mas quase imediatamente, um raio de compreensão luziu em seus olhos. Tirou um cartão e ofereceu-o a Carson.

“Michael Leigh... ocultista, é?” Repetiu Carson. Suspirou fundo. Os ocultistas, ele havia descoberto, eram os piores, com suas alusões sombrias a coisas inomináveis e seu profundo interesse no padrão do mosaico no chão do Quarto da Bruxa. “Desculpe, sr. Leigh, mas – eu realmente estou bastante ocupado. Há de perdoar.”

Sem modos, voltou-se para a porta.

“Só um momento,” Leigh falou com rapidez.

Antes que Carson pudesse protestar, o homem pegou o escritor pelos ombros e fitou profundamente seus olhos. Atarantado, Carson recuou, mas não antes de perceber uma extraordinária expressão de apreensão e satisfação misturadas no rosto magro de Leigh. Era como se o ocultista houvesse visto algo desagradável, mas não inesperado.

“Qual é o caso?” Carson perguntou com rudeza. “Não estou acostumado – ”

“Desculpe-me, por favor,” disse Leigh. Sua voz era profunda e agradável. “Devo pedir perdão. Pensei – bem, mais uma vez peço perdão. Estava bastante empolgado, sabe. Vim de San Francisco para ver esse seu Quarto da Bruxa. Será que se importaria de me deixar vê-lo? Eu ficaria feliz em pagar qualquer soma – ”

Carson fez um gesto depreciador.

“Não,” ele disse, sentindo uma apreciação perversa pelo homem crescer dentro de si – sua voz bem modulada e agradável, seu rosto poderoso, sua personalidade magnética. “Não, eu só quero um pouco de paz – o senhor não tem ideia do quanto eu fui incomodado,” continuou, vagamente surpreso de achar-se falando em tom de desculpas. “É um aborrecimento assustador. Quisera eu nunca ter encontrado o quarto.”

Leigh avançou ansioso. “Será que eu poderia vê-lo? Significa muito para mim – tenho um interesse vital nesse tipo de coisa. Prometo não tomar mais de dez minutos do seu tempo.”

Carson hesitou e então assentiu. Levando seu convidado ao porão, achou-se contando as circunstâncias de sua descoberta do Quarto da Bruxa. Leigh ouviu com atenção, de vez em quando interrompendo com perguntas.

“O rato – o senhor sabe o que aconteceu com ele depois?” perguntou.

Carson olhou o homem com ironia. “Não, não... acho que deve ter se escondido na toca. Por quê?”

“Nunca se sabe,” disse Leigh enigmático, ao entrarem no Quarto da Bruxa.


Carson ligou a luz. Havia instalado uma extensão elétrica, e havia agora ali umas cadeiras e uma mesa, mas fora isso, o aposento estava intocado. Carson observou o rosto do ocultista, e com surpresa viu que o rosto entristecer e ficar quase raivoso.

Leigh andou até o centro do aposento, fitando a cadeira que ficava no círculo de pedra negro.

“O senhor está trabalhando aqui?” perguntou com vagar.

“Sim. É silencioso – descobri que não conseguia trabalhar lá em cima. Barulho demais. Mas aqui é ideal – de alguma forma, eu descobri que é bem fácil escrever aqui. Minha mente sente-se...” hesitou, “livre; isto é, desassociada de outras coisas. É uma sensação bem incomum.”

Leigh assentiu, como se as palavras de Carson houvessem confirmado alguma ideia em sua própria mente. Voltou-se para a alcova e seu disco de metal no chão. Carson seguiu o homem. O ocultista moveu-se perto da parede, traçando os símbolos gastos com um indicador longo. Resmungou algo ao respirar – palavras que pareceram sem sentido para Carson.

“Nyogtha... k'yarnak...”

Virou-se então, seu rosto amargo e pálido. “Já vi o suficiente,” disse com delicadeza. “Podemos ir, então?” Surpreso, Carson assentiu e o levou de volta ao porão.

Subindo as escadas, Leigh hesitou, como se achasse difícil abordar algum assunto. Finalmente perguntou, “Sr. Carson – importaria-se de me dizer se teve algum sonho peculiar, recentemente?”

Carson fitou-o de volta, a ironia dançando nos olhos. “Sonhos?” repetiu. “Ah – entendo. Bem, sr. Leigh, posso adiantar que o senhor não vai conseguir me assustar. Seus compatriotas – os outros ocultistas com quem lidei – já tentaram isso.”

Leigh levantou as sobrancelhas espessas. “Sim? Eles quiseram saber o que o senhor anda sonhando?”

“Vários perguntaram – então, sim.”

“E o senhor contou a eles?”

“Não.” E então, quando Leigh voltou a sentar em sua cadeira, uma expressão confusa no rosto, Carson hesitou, “Embora, na verdade, eu não tenha tanta certeza.”

“O que o senhor quer dizer?”

“Acho – tenho uma vaga impressão – de que andei sonhando ultimamente. Mas não tenho certeza. Não consigo lembrar nada do sonho, sabe. E – oh, com toda certeza seus irmãos ocultistas colocaram a ideia em minha cabeça!”

“Talvez,” disse Leigh, sem comprometer-se, levantando. Hesitou. “Sr. Carson, farei ao senhor uma pergunta um tanto presunçosa. É necessário mesmo que o senhor more nesta casa?”


Carson suspirou resignado. “Quando me perguntaram isso da primeira vez, expliquei que queria um lugar quieto onde escrever um romance, e que qualquer lugar quieto seria suficiente. Mas não é algo fácil de achar. Agora que tenho este Quarto da Bruxa, meu trabalho está saindo tão facilmente, que não vejo razão pela qual sairia daqui, talvez prejudicando meu cronograma. Eu sairei desta casa quando terminar o romance, e então vocês ocultistas podem vir e transformá-la num museu ou algo parecido. Não me importo. Mas até que o romance esteja terminado, tenciono permanecer aqui.”

Leigh segurou o próprio queixo. “De fato. Posso compreender seu ponto de vista. Mas – há outro lugar na casa onde o senhor possa trabalhar?” 

Observou o rosto de Carson por um momento, e então rapidamente prosseguiu falando.

“Não espero que acredite em mim. O senhor é um materialista. A maioria das pessoas é materialista. Mas alguns poucos de nós sabem que acima e além do que os homens chamam de ciência, há uma ciência superna, construída sobre leis e princípios os quais o homem comum acharia quase incompreensíveis. Se o senhor já leu Machen, lembrará que ele fala de um abismo entre o mundo da consciência e o mundo da matéria. É possível sobrepujar esse abismo. O Quarto da Bruxa é uma maneira de fazê-lo, uma ponte! O senhor sabe o que é um Ouvido de Dionísio?”

“Hum?” disse Carson, fitando o homem. “Mas não há – ”

“Uma analogia – apenas uma analogia. Um homem pode sussurrar uma palavra numa galeria – ou caverna – e se o senhor estiver num certo ponto a trinta metros de distância, irá ouvir esse sussurro, embora alguém a três metros não consiga. É um simples truque de acústica – trazer o som a um ponto focal. E este princípio pode ser aplicado a outras coisas além do som. A qualquer impulso emitido através de ondas – e até mesmo ao pensamento!”

Carson tentou interromper, mas Leigh continuou falando.

“Aquela pedra negra no centro de seu Quarto da Bruxa é um desses pontos focais. Os padrões no chão – quando o senhor senta no círculo negro, fica anormalmente sensível a certas vibrações – certos comandos mentais – perigosamente sensível! Como acha que sua mente fica tão clara quando está trabalhando aqui? É uma armadilha, uma falsa sensação de lucidez – já que o senhor não passa de um instrumento, um microfone, sintonizado de modo a captar certas vibrações malignas, cuja natureza o senhor não pode compreender!”

O rosto de Carson era uma demonstração de surpresa e incredulidade. “Mas – você não acredita mesmo nessas – ”

Leigh recuou, a intensidade de seus olhos morrendo, deixando-os tristonhos e frios. “Muito bem. Mas eu estudei a história da sua Abigail Prinn. Ela também compreendia a superciência da qual estou falando. Ela a utilizava para propósitos malignos – a arte sombria, é como é chamada. O senhor – ” Levantou-se, mordendo a ponta dos lábios. “O senhor pelo menos irá me permitir que eu venha amanhã?”

Quase que involuntariamente, Carson assentiu. “Mas temo que o senhor esteja perdendo seu tempo. Não creio – isto é, não tenho como – “ Gaguejou, sem conseguir concatenar as palavras.

“Apenas quero assegurar-me que o senhor – oh, outra coisa. Se o senhor sonhar esta noite, por gentileza poderia tentar recordar-se do sonho? Se o senhor tentar lembrar logo que desperte, muitas vezes é possível recordar.”

“Tudo bem. Se eu sonhar – ”


Naquela noite, Carson sonhou. Despertou logo após o amanhecer, seu coração batendo furioso, sentindo uma inusitada inquietude. Dentro das paredes, e abaixo do chão, podia ouvir os ruídos furtivos dos ratos. Levantou da cama com rapidez, tremendo na luz cinzenta do começo de manhã. Uma lua minguante ainda brilhava tênue no céu pálido.

Lembrou-se então das palavras de Leigh. Havia sonhado – sem dúvida, havia sonhado. Mas o conteúdo do sonho – este estava bloqueado. Absolutamente não conseguia trazer o sonho à mente, por mais que tentasse, embora houvesse uma impressão bastante vaga de corrida frenética na escuridão.

Vestiu-se rapidamente, e já que a quietude da quase madrugada dentro da casa velha dava-lhe nos nervos, saiu para comprar um jornal. Era cedo demais para que houvessem bancas abertas, contudo, e buscando um dos garotos jornaleiros, dirigiu-se para oeste, virando na primeira esquina. Conforme andava, veio uma sensação curiosa e inexplicável tomar conta dele: uma sensação de – familiaridade! Ele havia andado ali antes, e havia uma vaga e perturbadora familiaridade quanto às formas das casas, os contornos dos telhados. Mas – e esta era a parte fantástica da coisa – que ele soubesse, nunca havia estado naquela rua antes. Havia passado pouco tempo andando naquela região de Salem, pois era preguiçoso por natureza; ainda assim havia aquela extraordinária sensação de recordação, que ficava cada vez mais vívida conforme andava.

Chegou a uma esquina, e virou decidido para a esquerda. A estranha sensação aumentou de intensidade. Caminhou lentamente, ponderando.

Sem dúvida, havia andado por aquela via antes – e muito provavelmente estava bastante pensativo na ocasião, de modo a não prestar atenção consciente à sua rota. Sem dúvida, esta deveria ser a explicação. Ainda assim, quando Carson virou para a Rua Charter, sentiu uma inquietude inominável tomar conta de si. Salem estava começando a despertar; com a luz do dia, impassivos operários polandeses começavam a marchar em direção às fábricas, passando direto por ele. Um automóvel ou outro passava de vez em quando.

Mais à frente uma multidão reunia-se numa calçada. Carson apressou o passo, consciente da sensação de calamidade iminente. Num choque extraordinário, viu que estava passando pelo Cemitério da Rua Charter, o antigo e malignamente famoso “Ponto Tumular.” Com pressa, empurrou as pessoas até chegar à multidão.

Chegavam comentários num tom abafado, e costas troncudas, num uniforme azul, impediram sua passagem. Ele olhou por cima do ombro do policial e engasgou, apavorado.

Um homem curvado sobre o corrimão que cercava o velho cemitério. Vestia um terno barato e espalhafatoso, e segurava as barras enferrujadas com tanta força que fazia seus músculos ficarem visíveis nos sulcos das costas cabeludas de suas mãos. Estava morto, e em seu rosto, fitando o céu num ângulo insano, via-se congelada uma exmpressão do mais abissal e completamente chocante horror. Seus olhos, onde viam-se apenas o branco, estavam arregalados de maneira hedionda; sua boca era um ricto distorcido e amargo.

Um homem, do lado de Carson, virou o rsto branco para seu lado. “Dá impressão de que foi assustado até a morte,” disse com a voz um tanto rouca. “Odiaria ter visto o que ele viu. Ugh – olha só esse rosto!”

Mecanicamente, Carson recuou alguns passos, sentindo um hálito gelado de coisas sem nome tomar conta de si. Esfregou os olhos, mas ainda via aquela face morta e contorcida insistindo em flutuar em seu campo de visão. Começou a refazer seus passos, trêmulo e abalado. Involuntariamente, seu olhar moveu-se para o lado, descansando nas tumbas e monumentos que pontuavam o velho cemitério. Ninguém fora enterrado ali por mais de um século, e as lápides manchadas de líquen, com suas caveiras aladas, querubins rechonchudos e urnas funerárias, pareciam exalar um miasma indefinível de antiguidade. O que havia assustado aquele homem até a morte?

Carson respirou fundo. Certo, o cadáver fora um espetáculo aterrador, mas ele não deveria permitir que a visão abalasse seus nervos. Não poderia permitir – seu romance sofreria com isso. Além disso, argumentou amargamente consigo mesmo, a questão era óbvia o suficiente, em sua explicação. O homem morto era aparentemente polonês, pertencente a um grupo de imigrantes que habitam próximo ao Porto de Salem. Passando pelo cemitério à noite, lugar onde lendas do sobrenatural ainda sobrevivem por quase três séculos, seus olhos bêbados devem ter dado realidade a fantasmas vagos de sua mente supersticiosa. Aqueles poloneses eram notoriamente instáveis em seu emocional, suscetíveis a histeria em massa e imaginações loucas. O grande Pânico dos Imigrantes de 1853, no qual três casas de bruxas foram queimadas até o chão, nasceu da declaração confusa e histérica de uma mulher que disse haver visto um misterioso estrangeiro, vestido de branco, “retirar o próprio rosto.” O que mais poderia se esperar de tais pessoas, pensou Carson?

Mesmo assim, permaneceu num estado de nervosismo, e não voltou para casa até a tardinha. Ao chegar, encontrou Leigh, o ocultista, esperando, e ficou grato em ver o homem, convidando-o cordialmente para entrar.

Leigh parecia bastante sério. “Ouviu falar de sua amiga Abigail Prinn?” ele perguntou sem maiores preâmbulos, e Carson o fitou, pausando no ato de pôr água filtrada num copo. Após um longo momento, apertou a alavanca, deixando que o líquido chiasse e espumasse no uísque. Passou a Leigh o drinque e preparou um para si – uísque puro – antes de responder à pergunta.

“Não sei do que você está falando. Ela – o que ela tem feito ultimamente?” perguntou, num ar de leviandade forçada.

“Andei checando os registros,” disse Leigh, “e descobri que Abigain Prinn foi enterrada em 14 de dezembro de 1690, no Cemitério da Rua Charter – com uma estaca trespassando seu coração. E imagine só?”

“Não consigo.” Carson falou sem entonação. “E daí?”

“Daí que – bem, a sua tumba foi aberta e roubada, só isso. A estaca foi encontrada perto, e haviam muitas pegadas em volta. Pegadas de tênis. Você sonhou na última noite, Carson?” Leigh encaixou a pergunta, com os olhos cinzentos e duros.

“Não sei,” disse Carson confuso, esfregando a testa. “Não consigo lembrar. Estava no cemitério da Rua Charter esta manhã.”

“Oh. Então você deve ter ouvido falar sobre o homem que – ”

“Eu o vi,” interrompeu Carson, enquanto sentia um calafrio. “Fiquei abalado com aquilo.”

Engoliu o uísque num só gole.

Leigh ficou observando. “Bem,” disse então, “ainda está determinado a permanecer nesta casa?”

Carson colocou o copo na mesa e endireitou-se.

“Por que não?” descontrolou-se. “Há alguma razão pela qual eu não deva permanecer? Hein?” 

“Depois do que aconteceu na noite passada – ”

“Depois de ter acontecido o quê? Uma tumba foi roubada. Um polonês supersticioso viu os ladrões e morreu de medo. E daí?”

“Está tentando convencer a si mesmo,” disse Leigh com calma. “Em seu coração, o senhor sabe – o senhor deve saber da verdade. Tornou-se uma ferramenta nas mãos de forças terríveis, Carson. Por três séculos, Abbie Prinn esteve em sua cova – morta-viva – esperando que alguém caísse em sua armadilha – o Quarto da Bruxa. Talvez ela tenha previsto o futuro quando o construiu, pervisto que alguém algum dia encontraria aquela câmara infernal e seria pego na armadilha do padrão de mosaico. Armadilha que te pegou, Carson – e permitiu que aquele horror morto-vivo sobrepujasse o abismo entre consciência e matéria, entrando em contato com você. Hipnotismo é brincadeira de criança para um ser com os poderes assustadores de Abigail Prinn. Ela poderia muito bem forçar você a ir até aquela cova e retirar a estaca que a mantinha cativa, e então apagar a memória desse ato de sua mente, de modo que você não conseguisse lembrar disso, sequer como um sonho!”

Carson havia levantado, os olhos queimando com uma luz estranha. “Em nome de Deus, homem, você sabe de que diabos está falando?”


Leigh riu de maneira rude. “Nome de Deus! O nome do diabo, pode dizer – o diabo que ameaça Salem agora; pois Salem corre perigo, correr um terrível perigo. Os homens e mulheres e crianças da cidade que Abbie Prinn amaldiçoou quando foi presa à estaca – e descobriram que ela não podia ser queimada! Estava checando arquivos secretos esta manhã, e vim pedir a você, pela última vez, que deixe esta casa.”

“Terminou?” Carson perguntou com frieza. “Muito bem. Vou permanecer aqui. Você está insano, ou bêbado, e não conseguirá me impressionar com essa conversa fiada.”

“Deixaria a casa se eu oferecesse mil dólares?” perguntou Leigh. “Ou mais que isso, então – dez mil? Tenho bastante dinheiro em minhas reservas.

“Não, que coisa!” Carson descontrolou-se num surto repentino de raiva. “Tudo que eu quero é ser deixado em paz, sozinho, para terminar meu romance. Não consigo trabalhar em nenhum outro lugar – não quero trabalhar em outro lugar e não irei – ”

“Já esperava isso,” disse Leigh, a voz subitamente quieta, e numa estranha nota de simpatia. “Cara, você não consegue fugir! Está preso na armadilha, e é tarde demais para que você consiga se safar, enquanto Abbie Prinn controlar seu cérebro através do Quarto da Bruxa. E a pior parte do caso é que ela só pode manifestar-se com sua ajuda – ela drena sua forças vitais, Carson, alimenta-se de você como faria um vampiro.”

“Você está maluco,” disse Carson de maneira embotada.

“Eu estou é com medo. O disco de ferro no Quarto da Bruxa – estou com medo daquilo, e do que está debaixo daquilo. Abbie Prinn servia a estranhos deuses, Carson – e eu li algo naquela parede que me deu uma pista. Já ouviu falar de Nyogtha?”

Carson balançou a cabeça, impaciente. Leigh procurou num dos bolsos, e tirou um pedaço de papel. Copiei isto de um livro na Biblioteca Kester,” disse, “um livro chamado Necronomicon, escrito por um homem que esteve tão imerso nos segredos proibidos que era chamado de louco. Leia isto.”

As sobrancelhas de Carson foram unindo-se conforme ele lia o trecho:


Os homens o conhecem como o Habitante das Trevas, aquele irmão dos Antigos chamado Nyogtha, a Coisa que não deveria existir. Ele pode ser invocado à superfície da terra através de certas cavernas e fissuras secretas, e feiticeiros já o avistaram na Síria e abaixo da torre negra de Leng; do Grotão de Thang, na Tartária, ele veio frenético para trazer o terror e a destruição entre os pavilhões do grande Khan. Apenas através da cruz de voltas, do encantamento Vach-Viraj, e do elixir Tikkoun, Nyoghta pode ser expulso para as cavernas noturnas de asquerosidade oculta onde habita."


Leigh encontrou com calma o olhar confuso de Carson. “Pode compreender agora?”

“Encantamentos e elixires!” disse Carson, devolvendo o papel. “Mas que baboseira!”


“Longe disso. Esse encantamento e o elixir foram conhecidos de ocultistas e adeptos por milhares de anos. Tive oportunidade de usá-los no passado, em certas – ocasiões. E se estou certo quanto a essa coisa – ” Virou-se para a porta, os lábios compressos numa linha pálida. “Essas manifestações já foram derrotadas antes, mas a dificuldade está em obter o elixir – é muito difícil de conseguir. Mas eu tenho esperanças de que... Eu retornarei depois. Será que consegue manter-se fora do Quarto da Bruxa até que eu volte?”

“Não vou prometer nada,” disse Carson. Sentiu uma vaga dor de cabeça, que viera lentamente crescendo até que penetrasse totalmente em sua consciência, e ele sentiu-se um tanto nauseado. “Adeus.”

Conduziu Leigh até a porta e esperou nos degraus, estranhamente relutante em retornar à casa. Ao observar a figura alta do ocultista apressado pela rua, foi interrompido por uma mulher que saíra da casa ao lado. Ela viu Carson, e seus grandes seios inclinaram-se para a frente. Soltou então um berro raivoso e estridente.

Carson voltou-se para ela, fitando-a com olhos surpresos. Sua cabeça latejava dolorosamente. A mulher aproximou-se, balançando um punho gordo de maneira ameaçadora.

“Por que você assustou minha Sarah?” gritou a mulher, seu rosto moreno corado de raiva. “Por que a assustou com seus truques idiotas, hein?”

Carson umedeceu os lábios.

“Desculpe,” respondeu com bastante vagar. “Desculpe mesmo. Eu não assustei a sua Sarah. Estive em casa o dia todo. O que a assustou?”

“A coisa marrom – ela correu para sua casa, Sarah disse – ”

A mulher pausou então, e seu queixo caiu. Os olhos se arregalaram. Ela fez um sinal peculiar com a mão direita – apontando o indicador e o mindinho para Carson, com o polegar cruzado sobre os outros dedos. “A bruxa velha!”

Retirou-se com rapidez, murmurando em polonês, numa voz assustadiça.

Carson voltou-se e entrou na casa. Jogou algum uísque num copo, considerando o que havia acabado de acontecer, e então colocou o copo de lado, sem beber. Começou a vagar pela casa, de vez em quando esfregando a testa com dedos que pareciam secos e quentes. Pensamentos vagos e confusos passavam por sua mente. A cabeça latejava e parecia febril.

Finalmente, acabou descendo para o Quarto da Bruxa. Ficou ali, embora sem trabalhar; pois a dor de cabeça não era tão opressiva na quietude morta da câmara subterrânea. Depois de um tempo, acabou cochilando.

Quanto tempo passou dormindo, não conseguiu precisar. Sonhou com Salem, e com uma coisa negra e gelatinosa, que mal conseguia visualizar, e que varria as ruas com assustadora velocidade, uma coisa similar a uma ameba gigante e tão negra como o ônix, que perseguia e engolfava homens e mulheres que gritavam e tentavam fugir inutilmente. Sonhou com um rosto cadavérico observando o interior de sua mente, um semblante encanecido e murcho onde apenas os olhos pareciam vivos, brilhando com uma luz infernal e maligna.

Finalmente despertou, levantando-se num átimo. Sentia muito frio.


O silêncio era total. À luz do bulbo elétrico, o mosaico verde e púrpura parecia contorcer-se e contrair em sua direção, ilusão que desaparecia conforme a névoa do sono deixava de afetar sua visão. Deu uma olhadela no relógio de pulso. Duas da manhã. Havia dormido à tarde e acordado de madrugada.

Sentia-se estranhamente fraco, numa lassidão que o deixava imóvel na cadeira. Parecia que haviam drenado suas forças. O frio penetrante parecia atingir seu próprio cérebro, mas a dor de cabeça havia ido embora. Sua mente estava bastante clara – e era como se estivesse aguardando algo, na expectativa. Um movimento próximo chamou sua atenção.

Uma laje de pedra na parede estava se movendo. Ouviu um suave ruído de arrastamento, e lentamente, uma cavidade negra passou de estreito retângulo a um quadrado. Havia algo agachado ali, na escuridão. Um horror cego e evidente atingiu Carson, enquanto a coisa movia-se e arrastava-se para fora, na direção da luz.

Parecia uma múmia. Por um segundo que pareceu toda uma era intolerável, o pensamento atingiu, assustador, o cérebro de Carson: parecia uma múmia! Era um cadáver magro como um esqueleto, da cor marrom de pergaminho, parecia mesmo como se um esqueleto estivesse usando a pele de algum enorme lagarto, esticada sobre os ossos. A coisa estremeceu, rastejou para frente, e suas unhas longas roçaram de modo plenamente audível contra a pedra. Rastejou em direção ao Quarto da Bruxa, seu rosto sem emoções impiedosamente revelado na luz branca, seus olhos brilhando com a vida do além-túmulo. O escritor podia enxergar o espinhaço serrilhado que destacava-se das costas amarronzadas e encarquilhadas da coisa...

Carson ficou ali, imóvel. Um horror abissal havia roubado a capacidade de movimento. Parecia preso nos grilhões de uma paralisia de sono, na qual o cérebro, espectador indolente, não conseguia ou não queria transmitir os impulsos nervosos aos músculos. Tentou dizer a si mesmo, freneticamente, que estava sonhando, que precisava acordar.

O horror encarquilhado ergueu-se. Ficou de pé, magro como um esqueleto, e passou para a alcova onde o disco de ferro estava incrustado no chão. Dando as costas a Carson, a coisa parou, e um sussurro seco e raspado farfalhou por sobre o silêncio morto. Ao ouvir aquele som, Carson teria gritado, mas não conseguia. E assim continuou o macabro sussurro, numa linguagem que Carson sabia não pertencer à Terra, e como se reagindo àquele chamado, um tremor quase imperceptível agitou o disco de ferro.


O disco tremeu e começou a levantar-se, muito lentamente, e como se triunfante, o horror emaciado levantou seus braços, que eram esqueléticos como os tubos de uma gaita de foles. O disco havia se erguido quase trinta centímetros, mas continou a elevar-se acima do nível do chão, fazendo com que um odor insidioso começasse a penetrar o aposento. Era um odor vagamente reptiliano, almiscarado e nauseante. O disco erguia-se inexorável, e um pequeno dedo de negrume rastejou por debaixo dele. Carson lembrou-se abruptamente da criatura negra e gelatinosa, que varria as ruas de Salem. Tentou em vão quebrar os grilhões da paralisia que o mantia imóvel. A câmara estava ficando cada vez mais sombria, e uma vertigem negra ameaçava tomar o escritor. O aposento pareceu balançar. E ainda assim o disco de ferro erguia-se; e ainda assim o horror encarquilhado continuava com seus braços esqueléticos erguidos numa bênção blasfema; ainda assim o negrume vazava, num movimento lento de pseudópode.

E então um som quebrou a continuidade do sussurro raspante da múmia, o rápido tamborilar de passos que corriam. No canto periférico de sua visão, Carson viu um homem correndo em direção ao Quarto da Bruxa. Era Leigh, o ocultista, e seus olhos brilhavam em seu rosto de palidez mortal. Passou direto por Carson, para a alcova onde o horror negro assomava à vista.

A coisa encarquilhada virou-se com uma lentidão ameaçadora. Leigh carregava consigo algum implemento na mão esquerda, percebeu Carter, uma cruz ansata de ouro e marfim. Sua mão direita era apertada contra o torso. Haviam pequenas bolhas de suor em seu rosto branco.

"Ya na kadishtu nil gh'ri... stell'bsna kn'aa Nyogtha.... k'yarnak phlegethor..."

As sílabas fantásticas e alienígenas trovejaram, ecoando nas paredes da cripta. Leigh avançava com lentidão, erguendo alto a cruz ansata. E debaixo do disco de ferro, um horror negro espumou para fora!

O disco se levantou, foi jogado longe, e uma grande onda de negrume iridescente, nem líquido nem sólido, uma horrenda massa gelatinosa, começou a vazar na direção de Leigh. Sem pausar o avanço, ele fez um gesto rápido com a mão direita, e um pequeno tubo de vidro foi lançado contra a coisa negra, e engolido.

O horror disforme pausou. Hesitava, com um horrível ar de indecisão, e então rapidamente retrocedeu. Um fedor sufocante de corrupção cáustica começou a invadir o ar, e Carson viu que grandes pedaços da coisa negra se destacavam, desfazendo-se como se fossem sendo destruídos por um ácido corrosivo. A coisa fugia num espasmo liquescente, deixando para trás fragmentos de uma carne negra e macabra.

Um pseudópode de negrume alongou-se a partir da massa central e como um grande tentáculo, agarrou o ser cadavérico, arrastando-o para o poço para onde retornava e batendo-o nas bordas. Outro tentáculo agarrou o disco de ferro, puxou-o sem esforços pelo chão, e enquanto o horror desaparecia das vistas, o disco recolocava-se num estrondo trovejante.

O quarto rodava à volta de Carson, e uma náusea aterrorizante tomou conta do escritor. Fez um esforço tremendo para levantar-se, e então a luz se apagou com rapidez. A escuridão o possuiu.


O romance de Carson jamais foi terminado. Ele o queimou, mas continuou a escrever, embora nenhuma de suas obras recentes jamais tenha sido publicada. Os editores balançavam a cabeça e ficavam imaginando como um escritor tão brilhante de ficção popular havia tão subitamente se embrenhado no bizarro e no macabro.

“É bastante poderoso,” um deles disse a Carson, devolvendo seu romance, O Deus Negro da Loucura. “Notável à sua própria maneira, mas é mórbido e horrível. Ninguém o compraria. Carson, por que você não volta a escrever o tipo de romance que costumava, do tipo que o fez famoso?”

Foi então que Carson quebrou o voto de nunca mencionar o Quarto da Bruxa, e desabafou a história inteira, esperando compreensão e crença da parte do interlocutor. Mas ao terminar, seu coração afundou quando viu o rosto do outro, simpático mas cético.

“Você sonhou com tudo isso, não foi?” o homem perguntou, e Carson riu amargamente.

“Foi – eu sonhei tudo isso.”

“Deve ter gerado uma impressão terrivelmente vívida em sua mente. Alguns sonhos são assim. Mas você esquecerá isso quando for a hora,” preveu, ao que Carson assentiu.

Percebendo que isso apenas levantaria dúvidas quanto à sua sanidade, o escritor não mencionou a coisa que queimava, indelével, em seu cérebro, o horror que presenciara no Quarto da Bruxa ao despertar de seu desmaio. Antes que ele e Leigh saíssem com pressa da câmara, rostos pálidos e trêmulos, Carson deu uma olhada rápida para trás. Os fragmentos corroídos e encarquilhados que havia visto destacando-se daquele ser de blasfêmia insana haviam de fato desaparecido, embora tenham deixado manchas negras nas pedras. Abbie Prinn talvez houvesse retornado ao inferno que servia, e seu deus inumano retornara a abismos ocultos além da compreensão da humanidade, expulso pelas poderosas forças da magia ancestral que o ocultista dominava. Mas a bruxa havia deixado uma lembrança para trás, uma coisa horrenda que Carson, naquela última olhadela, viu saindo das bordas do disco de ferro, como se erguida numa saudação irônica – aquela mão atrofiada, como se fosse uma garra!









Originalmente publicado em maio de 1937 na revista WEIRD TALES.
Baixe aqui: http://pt.scribd.com/doc/102255847/O-Horror-de-Salem-Kuttner-Traducao-Arthur-Ferreira-Jr