Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.
À meia noite, o último ônibus para Brichester já havia partido, e
estava chovendo pesadamente. Kevin Gillson considerou amargamente
ficar sob a marquise do cinema próximo até o raiar da manhã, mas o
vento forte impelia a chuva de tal forma que a marquise não fornecia
abrigo algum. Ele virou a gola de seu casaco para cima, tão logo a
água começou a descer por seu pescoço, e lentamente subiu pela
colina, distanciando-se do ponto de ônibus.
As ruas estavam virtualmente desertas; uns poucos carros que passavam
não reagiam aos sinais que ele fazia. Muito poucas das casas pelas
quais ele passava sequer chegavam a ter luzes acesas; causava-lhe
depressão andar pelo asfalto úmido e negro, que refletia imagens
trêmulas das luzes dos postes. Encontrou apenas uma pessoa na rua –
uma figura silenciosa, curvada à sombra de umbrais. Apenas o brilho
avermelhado de um cigarro convencera Gillson de que havia de fato
alguém ali.
Na esquina das ruas Gaunt e Ferrey, notou um veículo aproximando-se.
Um tanto atordoado pelos reflexos dos faróis, percebeu que era um
táxi, passando pelas ruas em busca do último passageiro da noite.
Kevin acenou com o esfrangalhado Camside Observer que
estava carregando, e o táxi estacionou ao seu lado.
"Ainda está pegando passageiros?” gritou pela divisória.
"Eu estava indo pra casa,” respondeu o motorista. "Mas –
se você ainda vai andar muito – eu não o deixaria andando pelas
ruas numa noite como esta. Para onde vai?”
Gillson pediu que fossem para Brichester, e fez menção de entrar.
Porém, naquele momento, ouviu uma voz próxima chamando; e ao
voltar-se viu uma figura correndo pela chuva, em direção ao táxi.
Pelo cigarro entre seus dedos e pela direção de onde havia vindo,
Gillson imaginou que tratava-se do homem que havia notado nos
umbrais.
"Espere – por favor, espere!" gritava o homem. Batia os
pés no chão até chegar no táxi, molhando Gillson no processo. "Se
importaria se compartilhássemos seu táxi? Se estiver com pressa,
deixa pra lá – mas se eu for desviá-lo do caminho, pago a
diferença. Não sei como é que eu poderia ir pra casa se não
pegando táxi, embora eu não more muito longe daqui."
"E onde você mora, mesmo?" perguntou Gillson, cauteloso.
"Não estou com pressa, mas..."
"Na Rota Tudor," respondeu rapidamente o homem.
"Ah, esse lugar é a caminho de Brichester, não?" disse
Gillson, aliviado. "Claro, pode entrar – vamos acabar pegando
pneumonia se ficarmos em pé aqui por mais tempo."
Uma vez no táxi, Gillson deu
orientações ao motorista e sentou-se na parte de trás. Não sentia
vontade de conversar, tendo decidido ler um livro, esperando que o
outro não puxasse conversa. Pegou a cópia do Bruxaria nos
Dias de Hoje que havia comprado
numa banca, e ficou folheando as páginas.
Estava começando um capítulo quando uma voz o interrompeu. "Você
acredita nessas coisas?"
"Nisto aqui?" Gillson inquiriu de maneira resignada,
batendo na capa do livro. "De certa forma, sim – suponho que
essas pessoas acreditavam que dançar nus e cuspir em crucifixos os
faria bem. Um tanto infantil, porém – eram todos psicopatas,
claro."
"Digno de um livro sensacionalista como esse, eu diria,"
concordou o outro.
Houve um silêncio de uns poucos minutos, e Gillson considerou voltar
ao livro. Abriu-o novamente e leu a extravagante sinopse de orelha, e
então o pôs de lado de jeito irritado, quando um fio de água
desceu de sua manga para a página aberta. Limpou a mancha, e então
sentiu-se irritado demais para ler o livro.
"Mas você sabe o que estava
por trás desses cultos de bruxas?"
"O que quer dizer?" perguntou Gillson, deixando o livro de
lado.
"Você conhece os verdadeiros
cultos?" continuou a voz.
"Não os servos medievais de Satã – mas aqueles que veneram
deuses existentes?"
"Depende do que você quer dizer com 'deuses existentes',"
respondeu Gillson.
O homem pareceu não ter notado esse comentário. "Eles formavam
esses cultos porque estavam buscando alguma coisa. Talvez você tenha
lido alguns de seus livros – você não os encontrará nas bancas,
como aconteceu com esse aí, mas estão preservados em certos
museus."
"Bem, uma vez estive em Londres, e dei uma olhada no que eles
tinham no Museu Britânico."
"O Necronomicon,
suponho." O homem parecia quase divertido. "E o que achou
dele?"
"Achei um tanto perturbador,"
confessou Gillson, "mas não tão horripilante quando haviam me
levado a esperar. Porém, não pude compreender tudo que havia ali."
"Pessoalmente, eu penso que ele
é ridículo," disse o outro, "tão vago... Mas, é claro,
se o livro tivesse descrito aquilo do qual dá pistas, nenhum museu
teria contato com ele. Suponho que seja melhor que apenas uns poucos
saibam da verdade... Desculpe-me, você deve estar me achando
esquisito. E olha só, você nem me conhece. Sou Henry Fisher, e
suponho que possa descrever-me como um ocultista."
"Não, por favor, continue,"
disse Gillson, "O que você está contando me interessa."
"Não exatamente, embora eu
tenha um tipo de convicção persistente, desde que era criança.
Nada incômodo, na verdade – só uma espécie de ideia de que nada
é realmente como enxergamos: se houvesse outra forma de enxergar as
coisas sem usar seus olhos, tudo pareceria bem diferente. Esquisito,
não é?”
Quando não veio resposta, ele se
virou. Havia uma expressão estranha nos olhos de Henry Fisher; um
olhar de triunfo surpreso. Notando o desconcertamento de Gillson,
pareceu controlar-se e comentou:
"É fantástico que você tenha
dito isto. Já tive essa ideia por muito tempo, e muitas vezes estive
a ponto de encontrar uma maneira de prová-la. Sabe, há uma maneira
de enxergar o mundo sem utilizar os olhos, mesmo que você esteja na
verdade com eles abertos – mas não só isto pode ser perigoso,
como requer duas pessoas. Poderia ser interessante nós dois
tentarmos... ah, mas é aqui que eu desço.”
Haviam estacionado diante de um
flat. Por trás das árvores que gotejavam, um caminho de concreto
corria até onde janelas pintadas de amarelo e preto amontoavam-se
umas sobre as outras. "O meu é no térreo,” comentou Fisher
ao sair e pagar o motorista.
Gillson abaixou a janela. "Espere
só um minuto,” disse. "Você estava falando sério – o que
foi que disse sobre ver as coisas como elas realmente são?”
"Está interessado?” Fisher
abaixou-se e olhou para dentro do táxi. "Lembre-se que eu falei
que poderia ser perigoso.”
"Não me importo,” respondeu
Gillson, abrindo a porta e saindo. Fez sinal para que o motorista
fosse embora, e somente quando estavam já observando as luzes
traseiras diminuirem com a distância é que ele lembrou que havia
deixado seu livro no assento.
Embora as árvores ainda estivessem
gotejando, a chuva havia parado. Os dois homens andaram pelo caminho
de concreto, e o vento turbilhionou por volta deles, parecendo soprar
das estrelas geladas. Kevin Gillson sentiu alívio quando fecharam as
portas de vidro por trás dele e entraram em um hall decorado com
papel de parede florido. As escadas levavam para outros flats, mas
Fisher virou-se para uma porta à esquerda, de azulejos de vidro.
Gillson na verdade não esperava
nada específico, mas o que viu além daquela porta de azulejos de
vidro o fascinou. Era uma sala de estar normal, com mobília
contemporânea, papel de parede moderno, uma lareira elétrica; mas
alguns dos objetos não eram de forma alguma normais. Reproduções
de pinturas de Bosch, Clark Ashton Smith e Dali estabeleciam a
atmosfera anormal, que era aumentada pelos livros esotéricos
ocupando uma estante em um canto. Mas estes, pelo menos, poderiam ser
encontrados em outros lugares; algumas das coisas ali, ele jamais
havia visto antes. Não conseguia definir o objeto em formato de ovo
que estava na mesa no centro do aposento, emitindo um estranho e
intermitente assobio. Nem reconheceu os contornos de algo que estava
num pedestal num canto, coberto por uma lona.
"Talvez eu devesse tê-lo
avisado,” interrompeu Fisher. "Acho que não é exatamente o
que você esperaria a partir da fachada do prédio. De qualquer
forma, sente aí, e vou pegar um pouco de café enquanto explico
alguns detalhes. E vamos ligar o gravador – quero que ele esteja
funcionando mais tarde, de modo que eu possa registrar nosso
experimento.”
Foi até a cozinha, e Gillson ouviu
o bater de panelas. Por sobre o barulho, Fisher falava:
"Eu fui um garoto bem peculiar,
sabe – bastante sensível, mas dotado de um estranho sangue frio.
Depois de ter visto um gárgula uma vez na igreja, tive sonhos nos
quais ele me perseguia, mas uma vez quando um cachorro foi atropelado
diante de nossa casa, os vizinhos todos comentaram o quão avidamente
eu observava a cena. Meus pais uma vez chamaram um médico, e ele
disse que eu era 'muito mórbido, e que deveria ser mantido longe de
qualquer coisa que pudesse me afetar.” Como se eles pudessem!
"Bem, foi na escola de
gramática que eu tive essa ideia – na verdade foi na aula de
física. Estávamos estudando a estrutura do olho, certo dia, e eu
comecei a pensar no caso. Quanto mais olhava para o diagrama das
retinas e humores e lentes, mais ficava convencido de que o que
enxergamos através desse sistema complicado deve estar distorcido,
de alguma forma. É muito simplista dizer que o que se forma na
retina é apenas uma imagem, não mais distorcida do que as que
enxergamos num telescópio. Eu quase me levantei e disse ao professor
o que pensava, mas sabia que se o fizesse, eles ririam de mim.
"Não pensei mais no caso até
chegar na Universidade. Então comecei a conversar com um dos alunos,
um dia – seu nome era Taylor – e antes que eu percebesse, havia
me unido a um culto de bruxos. Não aqueles decadentes pelados do seu
livro, mas aqueles que realmente sabem como canalisar o poder de
elementais. Eu poderia dizer bastante sobre o que realizamos juntos,
mas algumas das coisas levariam tempo demais para serem explicadas.
Hoje eu quero tentar o experimento, mas talvez depois eu conte a você
sobre as coisas que eu sei. Coisas como a parte do cérebro que não
é utilizada e como ela pode de fato ser posta em uso, e sobre o que
está enterrado num cemitério não muito longe daqui...
"De qualquer forma, depois de
algum tempo após minha iniciação, o culto foi exposto, e todos
foram expulsos. Tive sorte, já que não estava na reunião que foi
delatada, então permaneci na Universidade. Melhor ainda, alguns
deles haviam decidido abandonar totalmente a feitiçaria; e eu
persuadi um deles a me doar todos os seus livros. Entre eles estava o
Revelações de Glaaki,
e foi nele que li sobre o processo que quero tentar esta noite. Li
sobre isto.”
Fischer entrou na sala de estar,
carregando uma bandeja onde estavam duas canecas e um bule de café.
Cruzou então a sala até onde estava o objeto velado num pedastal, e
enquanto Gillson se aproximava, puxou a lona.
Kevin Gillson pôde apenas olhar
fixamente. O objeto não era amorfo, mas era tão complexo, que os
olhos não conseguiam reconhecer forma alguma descritível. Haviam
hemisférios e metal reluzente, acoplados por longos bastões de
plástico. Os bastões eram de uma cor cinzenta e plana, de modo que
ele não conseguia perceber quais deles estavam mamis próximos que
os outros; mesclavam-se numa massa plana, a partir da qual saiam como
protusões os cilindros individuais. Ao observar a coisa, teve uma
curiosa sensação de que olhos brilhavam por entre os bastões; mas
de onde quer que fitasse o construto, enxergava apenas os espaços
entre eles. A parte mais estranha era que ele sentia como se aquela
fosse a imagem de algo vivo –
algo de uma dimensão onde tal exemplo de geometria anormal poderia
viver. Ao virar-se para falar com Fisher, enxergou, pelo canto do
olho, que a coisa havia se expandido e ocupado quase toda aquela
metade da sala – mas quando girou de volta, a imagem, é claro,
estava do mesmo tamanho que antes. Pelo menos ele pensava que sim –
mas Gillson não tinha nem mesmo certeza de quão alta ela estava
antes.
"Está tendo ilusões de
tamanho, então?” Fisher notou seu embaraço. "Isto porque é
apenas uma extensão tridimensional da coisa real – é claro que,
em sua própria dimensão, não se parece dessa forma.”
"Mas o que é isso?”
perguntou Gillson com impaciência.
"Isso,” disse Fisher, "é
uma imagem de Daoloth – o Dilacerador dos Véus.
Ele foi até a mesa onde havia
colocado a bandeja. Servindo o café, passou a caneca para Gillson,
que então comentou:
"Você terá de me explicar
sobre isso já já, mas antes, pensei em algo enquanto você estava
na cozinha. Eu o teria mencionado antes, mas é que não gosto de
conversar através de aposentos diferentes. É bastante conveniente
dizermos que o que enxergamos está distorcido – digamos que esta
mesa não é retangular, nem plana. Mas quando eu a toco, sinto uma
superfície retangular e plana – como você explica isto?”
"Uma simples alucinação
tátil,” explicou Fisher. "E é por isto que eu disse que
poderia ser perigoso. Sabe, você não está sentindo de fato nenhuma
superfície plana e retangular – mas já que a enxerga dessa forma,
sua mente o ilude de modo a pensar que está sentindo a contraparte
de sua visão. Apenas de vez em quando, eu penso – por que a mente
iria estabelecer esse sistema de ilusão? Será que se nos
enxergarmos como nós realmente somos,
seria demais para nós?”
"Olha só, você quer enxergar
as coisas sem distorção,” disse Gillson, "e eu também. Não
tente me fazer voltar atrás agora, pelo amor de Deus, logo agora que
você conseguiu me deixar interessado. Você chamou isso de
Daoloth – o que significa?”
"Bem, vou ter que sair pelo que
pode parecer tangencial”, Fisher pediu desculpas. "Você
estava observando aquela coisa em formato de ovo ali, repetidas
vezes, desde que entrou – é que leu sobre elas no Necronomicon.
Lembra-se daquelas referências aos cristalizadores de Sonho? Este é
um deles – o aparelho que nos projeta enquanto estamos adormecidos,
para outras dimensões. Leva um certo tempo pra nos acostumarmos a
ele, mas com o passar de alguns anos, tenho conseguido entrar em
quase todas as dimensões, e a um nível tão alto quanto a
vigésima-quinta dimensão. Se pelo menos eu pudesse transmitir em
palavras as sensações desse último plano, onde é o espaço que
existe, e a matéria não pode ter existência! Não me pergunte onde
achei o cristalizador, por falar nisso – até que eu tenha certeza
de que seu guardião não me seguirá, jamais devo falar disso. Mas
deixemos isso de lado.
"Depois de ter lido nas
Revelações de Glaaki sobre
como posso provar esta minha ideia, determinei ver por mim mesmo o
que eu deveria invocar. Aconteceu por tentativa e erro; mas
finalmente, certa noite, encontrei-me materializado num lugar que
nunca estive antes. Haviam paredes e colunas tão altas que eu não
conseguia enxergar onde elas terminavam, e no meio do chão havia uma
grande fissura que corria de parede a parede, irregular, como se
resultado de um terremoto. Conforme eu a observava, os contornos da
rachadura pareciam dissolver-se e ficar imprecisos, e algo dela saiu.
Eu disse a você que a imagem parece bastante diferente em sua
própria dimensão – bem, eu vi sua contraparte viva, e você vai
entender se eu não tiver de descrevê-la. Ficou ali vibrando por um
momento, e então começou a expandir. Teria me engolido em poucos
minutos, mas eu não esperei por isso. Corri por entre as colunas.
"Não fui muito longe, até que
um grupo de homens ficou diante de mim. Estavam vestidos em robes e
capuzes metálicos, e carregavam pequenas imagens daquilo que eu
havia visto, de modo que percebi que eram seus sacerdotes. O primeiro
perguntou-me a razão pela qual eu havia entrado em seu mundo, e eu
expliquei que esperava poder convocar o auxílio de Daoloth para
enxergar além dos véus. Eles olharam um para o outro, e então um
deles me passou a imagem que estava carregando. "Você irá
precisar disso,” ele me falou. "Vai servir como uma ligação,
e você não vai conseguir encontrar nenhum igual em seu mundo.” E
então a cena inteira desapareceu, e achei-me deitado na cama – mas
estava segurando essa imagem que você vê aí.”
"Mas você não chegou a me
dizer – ” implorou Gillson.
"Já vou chegar nesse ponto.
Você sabe agora como eu consegui essa imagem. Porém, está
imaginando o que isso tem a ver com o experimento de hoje, e o que
diabos seria Daoloth?
"Daoloth é uma divindade –
uma divindade alienígena. Foi venerado na Atlântida, onde era o
deus dos astrólogos. Presumo que foi lá que seu modo de veneração
foi estabelecido: ele jamais deve ser visto, pois o olho tenta seguir
as convoluções de sua forma, e isto provoca insanidade. É por isto
que não deve haver luz quando ele é invocado – quando o
chamarmos, mais tarde, teremos de apagar todas as luzes. Mesmo aquilo
ali é uma réplica deliberadamente imprecisa da entidade; tem de ser
assim.
"Quanto a razão pela qual
invocaremos Daoloth, em Yuggoth e Tond, ele é conhecido como o
Dilacerador dos Véus, e este título tem bastante significado. Lá,
seus sacerdotes podem enxergar não só o passado e o futuro – eles
podem enxergar como os objetos prolongam-se até a última dimensão.
É por isto que se o invocarmos e o contermos no Pentáculo dos
Planos, poderemos ter o auxílio dele para eliminar a distorção. E
isto é tudo que posso explicar agora. Já são quase 2:30 e devemos
estar prontos às 2:45, que é quando as aberturas entrarão em
alinhamento... É claro, se você acha que não está pronto, por
favor me diga agora. Mas não quero ter que arrumar tudo pra nada.”
"Eu vou ficar,” disse-lhe
Gillson, mas ao olhar de relance para a imagem de Daoloth, sentiu-se
um tanto hesitante.
"Tudo bem. Me ajude aqui, sim?”
Fisher abriu um armário próximo à
estante. Gillson enxergou várias caixas grandes, colocadas em ordem
definida e marcadas com símbolos pintados. Ele ergueu uma enquanto
Fisher puxava a que estava logo abaixo. Ao fechar a porta, Gillson
ouviu o outro levantando a tampa; e quando virou-se Fisher já estava
colocando o conteúdo da caixa pelo chão. Um conjunto de superfícies
de plástico veio à luz, sendo organizadas como um pentagrama
semissólido; e foram seguidas por duas velas negras de formatos
vagamente obscenos, um bastão de metal com um ícone na ponta, e uma
caveira. Essa caveira perturbou Gillson; haviam buracos no crânio
para segurar as velas, mas mesmo assim ele podia perceber, a partir
de seu formato e falta de boca, que aquilo não havia sido humano.
Fisher começou então a arranjar os
objetos. Primeiro empurrou as cadeiras e mesas para junto das
paredes, e então jogou o pentagrama no centro do chão. Conforme
colocava a caveira, agora segurando as velas, dentro do pentagrama, e
as acendia, Gillson perguntou por trás dele:
"Pensei que você disse que não
poderíamos ter luzes – e quanto a essas aí?”
"Não se preocupe – elas não
irão iluminar nada,” explicou Fisher. "Quando Daoloth vier,
ele sugará a luz delas – isto torna o alinhamento das aberturas
mais fácil.”
Ao se levantar para desligar a luz
no interruptor, fez um comentário por sobre o ombro de Gillson: "Ele
vai aparecer no pentáculo, e sua materialização sólida e
tridimensional permanecerá lá o tempo todo. Porém, ele vai varrer
a sala com prolongamentos bidimensionais, e você poderá senti-las –
mas não fique com medo. Veja só, ele vai tirar um pouco de sangue
de nós dois.” Sua mão ficou mais próxima do interruptor.
"O quê? Você nunca disse nada
sobre – ”
"Está tudo bem,” assegurou
Fisher. "Ele tira sangue de qualquer um que o chamar; parece que
é sua forma de testar intenções. Mas não será muito. Ele tirará
mais de mim, porque sou o sacerdote – você só está aqui para que
eu possa utilizar sua vitalidade para abrir o caminho para ele.
Certamente, não irá doer.” E sem esperar mais protestos, desligou
as luzes.
Havia um pouco de luz do símbolo em
neon na garagem fora da janela, mas muito pouco passava pelas
cortinas. As velas negras eram também muito fracas, e Gillson não
conseguia enxergar nada além do pentagrama, a partir de onde estava
perto da estante. Ficou estarrecido quando seu anfitrião bateu o
bastão com o ícone na ponta e começou a gritar histericamente.
"Uthgos plam'f Daoloth asgu'i – venha, Tu que varres os véus
da visão para longe, e exibe as realidades além.” Houve muito
mais que isso, mas Gillson não conseguiu prestar atenção a nada
específico. Estava observando a névoa luminosa que apareceu,
arqueando-se sobre ele e Fisher, para entrar no crânio deformado da
caveira no pentáculo. No fim do encantamento, havia uma aura
definida entre os dois homens e a caveira. Ele observava tudo com
fascínio; foi então que Fisher parou de falar.
Por um minuto, nada aconteceu. Então
os arcos de névoa sumiram, e havia então apenas as luzes das velas;
mas estas brilhavam mais forte agora, e uma aura nebulosa as cercava.
Conforme Gillson as observava, as chamas gêmeas começaram a
diminuir, e de súbito desapareceram. Por um segundo, uma chama negra
pareceu substituí-las – uma
espécie de fogo negativo – mas tão rapidamente quanto apareceu,
foi embora. No mesmo instante, Gillson percebeu que ele e Fisher não
estavam mais sozinhos naquela sala.
Ouviu um farfalhar vindo do
pentáculo, e sentiu que uma forma movimentava-se ali. Rapidamente,
sentiu-se cercado. Coisas secas, impossivelmente leves, tocavam seu
rosto, e algo escorregou por entre seus lábios. Nenhum ponto em seu
corpo foi tocado por tempo suficiente para que pudesse agarrar aquilo
que nele sentia; passaram tão céleres que ele lembrava-se, em vez
de sentir, aquelas antenas que o tocavam. Mas quando o farfalhar
retornou para o centro do do aposento, havia um gosto salgado em sua
boca – e ele sabia que a antena que havia entrado em sua boca havia
drenado seu sangue.
Por sobre o farfalhar, declamou
Fisher: "Agora que Tu já provaste nosso sangue, Tu sabes nossas
intenções. O Pentagrama dos Planos Te conterá até que Tu realizes
nosso desejo – dilacera o véu da crença e mostra as realidades da
existência desvelada. Tu nos mostrará, assim libertado-Te?”
O farfalhar aumentou. Gillson
desejou que o ritual terminasse; seus olhos estavam começando a
acostumar-se com o brilho do símbolo da garagem, e naquele momento
começava quase a ver algo tênue se contorcendo na escuridão dentro
da figura.
Subitamente, soou uma irrupção
discordante de metal raspando contra metal, e o edifício inteiro
tremeu. O som passou a zumbido, e depois ao silêncio, e Gillson
sabia que o ocupante do pentáculo havia ido embora. O aposento ainda
estava escuro; as luzes das velas não haviam retornado, e sua visão
ainda não conseguia penetrar as trevas.
Fisher disse de onde estava, perto
da porta: "Bem, ele se foi – e aquela figura está construída
de forma que ele não poderia voltar sem fazer o que lhe foi pedido.
De modo que quando eu ligar a luz, você enxergará tudo como
realmente é. Mas se
mudou de ideia, encontrará uma máscara para os olhos em cima da
estante. Coloque-as e não conseguirá enxergar nada – isto é, se
você não quiser continuar com o experimento. Então eu vou ligar a
luz e poderei enxergar tudo que eu quiser, e então usarei o ícone
para anular o efeito. Você prefere fazer as coisas desta forma?”
"Eu vim até este ponto com
você,” lembrou Gillson, "e não foi pra ficar apavorado no
último momento.”
"Quer enxergar agora? Você
sabe que, uma vez que tenha visto, as ilusões táteis não vão mais
funcionar direito – tem certeza de que vai querer viver com isso?”
"Pelo amor de Deus, sim!” a
resposta de Gillson era quase inaudível.
"Tudo bem. Vou ligar a luz –
agora!”
Quando a polícia chegou nos flats
da Rua Tudor, para onde haviam sido chamadas por um morador
histérico, encontraram uma cena que horrorizou até o menos
suscetível deles. O morador, tendo voltado de uma festa tardia,
havia enxergado apenas o cadáver de Kevin Gillson jogado no tapete,
esfaqueado até a morte. Os policiais não ficaram nauseados com
isto, porém, mas pelo que encontraram no jardim, sob a janela da
frente, que estava quebrada: Henry Fisher havia morrido ali, com sua
garganta dilacerada pelos estilhaços de vidro da janela.
Parecia tudo muito extraordinário,
e o gravador não ajudava muito. Tudo que foi dito de fato era que
algum tipo de ritual de magia negra fora praticado naquela noite, e
eles deduziram que Gillson havia sido morto com a ponta afiada do
ícone do bastão. O resto da fita estava cheia de referências
esotéricas, e no final, a coisa ficava totalmente incoerente. A
parte após o clique do interruptor da luz na gravação era o que
deixava os ouvintes mais estupefatos; até então ninguém encontrou
qualquer razão para que Fisher tenha assassinado seu hóspede.
Quando detetives curiosos rodam a
fita, a voz de Fisher sempre soa assim: "Aqui – mas que
diabos, não posso enxergar direito depois de tanta escuridão. E
agora, o que...
"Meu Deus, onde é que eu
estou? E onde é que está você? Gillson, onde está você – onde
está você? Não, sai daqui – Gillson, pelo amor de Deus, mexa seu
braço. Eu posso enxergar algo se movendo em tudo isso – mas Deus,
esse não pode ser você – por que é que eu não consigo escutá-lo
– mas isso é suficiente pra deixar qualquer um surdo... Agora
chegue perto – meu Deus, essa coisa é você – está se
expandindo – contraindo – a geleia primal, formando, mudando –
e a cor... Sai daqui! Não chegue mais perto – você tá maluco? Se
ousar me tocar, vai provar a ponta deste ícone – pode parecer
molhado e esponjoso e olhe – que horrível – mas eu farei por
você! Não me toque – eu não posso suportar sentir isso – "
E então vem um grito e o barulho de
uma queda. Um surto de gritos insanos é cortado pelo som de vidros
quebrando, e um terrível ruído de alguém sufocando logo é
reduzido ao nada.
É incrível pensar que dois homens
foram aparentemente iludidos a pensar que haviam mudado fisicamente;
mas este é o caso, pois os dois cadáveres estavam intactos, exceto
pelas mutilações. Nada neste caso pode ser explicado quanto à
insanidade dos dois homens. Pelo menos, há uma anomalia; mas o chefe
da polícia de Camside está certo de que é apenas uma falha na fita
que faz com que o gravador emita, em certos pontos, um som alto e
seco, um farfalhar.