sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O JARDIM E A TUMBA

Clark Ashton Smith
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.




Sei de um jardim de flores -- flores amáveis e maravilhosas e multiformes como as orquídeas de mundos longínquos e exóticos -- como as flores de pétalas mil, cujas cores mudam como se por encanto na alteração dos sóis triplos; flores como os lírios-tigres do jardim de Satã; como os muito pálidos lírios do Paraíso, ou amarantes em cuja beleza perfeita e imortal os serafins tanto ponderam; flores ardorosas e esplêndidas como as flores rubras ou douradas do fogo; flores luminosas e frias como as flores de cristal da neve; flores onde não há nenhuma igual, em nenhum mundo de sol algum; que não possuem símbolo, no céus ou no inferno.


Infelizmente, no coração do jardim há uma tumba -- uma tumba tão revolta e coberta de vinhas e brotos, que a luz do sol não revela o macabro brilho de seu mármore a uma inspeção menos cuidadosa ou incúria. Porém, à noite, quando as flores estão imóveis, e seus perfumes são tão suaves como a respiração das crianças que dormem -- então, e só então, as serpentes que nascem da corrupção rastejam da tumba, e deixam trilhas do fedor e fosforecência de sua habitação, de um lado ao outro do jardim.

9 de junho de 1915.


quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A LITANIA DOS SETE BEIJOS

Clark Ashton Smith
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.



I
Beijo tuas mãos -- tuas mãos, cujos dedos são delicados e pálidos como as pétalas da lótus branca.

II
Beijo teu cabelo, que tem o lustre das joias negras, e que é mais escuro que o Rio Lethe, fluindo à meia-noite através do sono sem luar de terras perfumadas por papoulas.

III
Beijo tua testa, que lembra uma lua nascendo num vale de cedros.


IV
Beijo tuas bochechas, onde permanece um leve enrubescer, como o reflexo de uma rosa sobre uma urna de alabastro.

V
Beijo tuas pálpebras, e as comparo às flores de veias púrpuras, que fecham-se sob a opressão de uma noite tropical, numa terra onde os ocasos são tão luminosos quanto as chamas do âmbar flamejante.

VI
Beijo tua garganta, cuja palidez ardente é a palidez do mármore aquecido pelo sol de outono.

VII
Beijo tua boca, que tem o sabor e perfume da fruta molhada do orvalho de uma fonte mágica, no paraíso secreto que apenas nós dois encontraremos; um paraíso de onde jamais partiremos, pois as águas que nele vadeiam são as do Lethe, e a fruta é a fruta da Árvore da Vida.



13 de abril de 1921.


segunda-feira, 26 de setembro de 2011

AO DEMÔNIO

Clark Ashton Smith
Tradução de Arthur Ferreira Jr.'.




Conte-me muitas histórias, ó demônio benigno e maleficente, mas não conte nenhuma que já tenha escutado, ou jamais sonhado, conte-me do obscuro e infrequente. Não, não conte sobre nada que jaz entre as fronteiras do tempo ou os limites do espaço; pois estou um tanto esgotado de tantos anos registrados e terras mapeadas; e as ilhas a oeste de Catai, e os reinos iluminados de Ind, não são remotos o suficiente para serem a base de minhas concepções; e a Atlântida é sobremaneira recente, para que meus pensamentos até lá viajem, e Mu fitou o sol em eras demasiado recentes.


Conte-me muitas histórias, mas que sejam histórias de coisas de um passado além das lendas, e das quais não existam mitos em nosso mundo, ou qualquer dos mundos próximos. Conte-me, se preferir, dos anos em que a lua era nova, com mares perturbados pelas sereias, e montanhas circundadas de flores, desde a base até o pico; conte-me de planetas cinzentos de antiguidade, dos mundos que nenhum astrônomo mortal jamais contemplou, e cujos horizontes e céus místicos chocam os visionários. Conte-me das mais vastas florações, em cujos cálices convidativos uma mulher poderia dormir; dos mares de fogo que batem ondas sobre praias de gelo eternamente duradouro; de perfumes que de um único hausto causam o sono eterno; de titãs sem olhos, que habitam Urano, e seres que vagueiam na luz verde dos sóis gêmeos, um azul-celeste e o outro laranja. Conte-me histórias de medo inconcebível e amor inimaginável, em orbes de onde nosso sol é visto como uma estrela sem nome, ou mesmo uma onde seus raios jamais alcançaram.



domingo, 25 de setembro de 2011

OS GATOS DE ULTHAR



H. P. Lovecraft
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.






É dito que em Ulthar, que repousa além do rio Skai, ninguém pode matar gatos; e isto posso crer ao observar aquele que se senta, ronronando, diante do fogo. Pois o gato é enigmático, e íntimo de coisas que os homens não conseguem enxergar. Ele é a alma do antigo Egito, e portador de histórias das cidades esquecidas em Meroe e Ophir. Ele é parente dos senhores da selva, e herdeiro dos segredos da África antiga e sinistra. A Esfinge é sua prima, e o gato fala seu idioma; mas ele é mais antigo que a Esfinge, e recorda tudo que ela já esqueceu.


Em Ulthar, muito antes que os habitantes proibissem o assassinato dos gatos, ali habitava um velho caseiro e sua esposa, que extraíam prazer da captura e morte dos gatos de seus vizinhos. Porque eles faziam isso, eu não sei; salvo que muitos odiavam a voz noturna dos gatos, e aborreciam-se com os gatos correndo furtivamente nas chácaras e jardins, durante o crepúsculo. Porém, qualquer que fosse a razão, estes velhos sentiam prazer em capturar e matar todos os gatos que chegavam perto de sua cabana; e deduzindo a partir dos sons que ouviam após o escurecer, muitos aldeões imaginavam que o modo de assassinato era excessivamente peculiar. Mas os aldeões não discutiam essas coisas com o velho e sua esposa; tanto por causa da expressão habitual nos rostos encarquilhados dos dois, quanto porque sua cabana era tão pequena e sombriamente oculta sob os carvalhos que se espalhavam nos fundos de uma chácara abandonada. Na verdade, por mais que os donos de gatos odiassem essas estranhas pessoas, as temiam muito mais; e ao invés de acusá-los como assassinos brutais, apenas cuidavam para que nenhum bichano querido chegasse perto da remota cabana sob as árvores sombrias. Quando, devido a algum deslize inevitável, um gato sumia, e sons eram ouvidos após o escurecer, aquele que perdera o gato lamentaria impotente; ou consolar-se-ia agradecendo ao Destino por não ter sido uma de suas crianças a desaparecer. Pois o povo de Ulthar era simples, e não sabia da origem dos gatos.


Um dia, uma caravana de estranhos andarilhos do Sul entrou pelas ruas estreitas e calcetadas de Ulthar. Eram viandantes de pele escura, e não pareciam com outros povos andarilhos que passavam pela vila duas vezes por ano. Na praça do mercado, liam a sorte em troca de prata, e compravam contas enfeitadas dos mercadores. Qual a terra natal desses viandantes, ninguém sabia dizer; mas parecia que eram dados a estranhas rezas, e que haviam pintado nos lados de seus vagões, estranhas figuras de corpos humanos e cabeça de gatos, falcões, carneiros e leões. E o líder da caravana usava um toucado com dois chifres e um curioso disco entre eles.


Havia nesta singular caravana um garotinho, sem pai nem mãe e apenas um minúsculo gatinho preto para cuidar. A praga não havia sido bondosa com ele, mas o deixara aquela coisinha felpuda para mitigar-lhe a tristeza; e quando se é muito jovem, encontra-se muito alívio nos brinquedos agitados de um gatinho preto. Assim o garoto, que o povo escuro chamava de Menes, mais sorria que chorava, quando sentava a brincar com seu gracioso gatinho, na entrada de um vagão de estranha pintura.



Na terceira manhã da estadia dos viandantes em Ulthar, Menes não conseguiu achar o gatinho; e chorou alto na praça do mercado, até que certos aldeões contaram-no sobre o velho e sua esposa, e sobre os sons ouvidos na noite. E quando o garoto ouviu estas coisas, seu choro deu lugar à meditação, e finalmente às rezas. Ele esticou seus braços em direção ao sol e rezou numa língua que aldeão algum poderia compreender; embora na verdade não se esforçassem muito para isto, já que sua atenção estava mais tomada pelo céu e pelas esquisitas formas assumidas pelas nuvens. Era algo bastante peculiar, mas conforme o garotinho declamava seu pedido, parecia que formavam-se acima figuras sombrias e nebulosas de coisas exóticas; criaturas exóticas coroadas de discos ladeados por chifres. A natureza é tão cheia dessas ilusões que impressionam os imaginativos.


Naquela noite os viandantes deixaram Ulthar e jamais foram vistos novamente. E os residentes ficaram perturbados, quando notaram que em toda a aldeia, não havia um só gato a ser encontrado. De cada lar, o gato familiar havia sumido; gatos grandes e pequenos, negros, cinzas, listrados, amarelos e brancos. O velho burgomestre Kranon jurava que o povo escuro havia roubado os gatos, por vingança da morte do gatinho de Menes; e amaldiçoava a caravana e o garotinho. Mas Nith, o tabelião magro, declarou que o velho caseiro e sua esposa eram pessoas mais suspeitas; porque seu ódio a gatos era notório e cada vez mais ousado. Ainda assim, ninguém ousou reclamar com o sinistro casal; mesmo quando o pequeno Atal, filho do estalajadeiro, jurou que vira no crepúsculo todos os gatos de Ulthar naquela execrável chácara sob as árvores, caminhando lenta e solenemente num círculo ao redor da cabana, aos pares, como se numa performance de algum desconhecido rito de feras. Os aldeões não souberam muito o que acreditar de um garoto tão pequeno; e muito embora temessem que o casal de velhos houvesse encantado os gatos para matá-los, preferiam não repreender o velho caseiro até que este fosse encontrado fora de sua chácara sombria e repelente.


Foi então que Ulthar foi dormir sentindo uma raiva impotente; e quando o povo acordou de manhãzinha – olha só! Todos os gatos de volta a seus lares de costume! Grandes e pequenos, negros, cinzas, listrados, amarelos e brancos, nenhum deles estava faltando. Pareciam muito gordos e luzidios os gatos, e sonoros em seu contentamento ronronante. Os cidadãos debateram sobre a questão, muito espantados. O velho Kranon insistiu mais uma vez que o povo escuro os havia levado, já que os gatos não voltam vivos da cabana do ancião e sua esposa. Mas todos concordaram numa coisa: a recusa dos gatos em comer suas porções de carne e beber seus pratos de leite era excessivamente curiosa. E por dois dias inteiros, os reluzentes e preguiçosos gatos de Uthar não tocaram a comida, apenas deitando perto do fogo ou sob o sol.


Passou quase uma semana até que os aldeões notassem que não surgia luz à noite, vinda das janelas da cabana sob as árvores. Então o magro Nith comentou que ninguém havia visto o velho e sua esposa, desde a noite do sumiço dos gatos. Passada mais uma semana, o burgomestre decidiu superar seus medos e bateu à porta daquela habitação estranhamente silenciosa, cumprindo seu dever, embora ao fazê-lo tivesse o cuidado de trazer Shang, o ferreiro, e Thul, o cortador de pedras, como testemunhas. E quando derrubaram a frágil porta, encontraram apenas isto: dois esqueletos humanos de ossos limpos no chão de terra batida, e muitos besouros esquisitos rastejando pelos cantos escuros.


Depois disso houve muita conversa entre os habitantes de Ulthar. Zath, o juiz, debateu longamente com Nith, o tabelião magro; e Kranon e Shang e Thul foram enchidos de perguntas. Até mesmo o pequeno Atal, filho do estalajadeiro, foi bastante questionado e recebia balas como recompensa. Falavam do velho caseiro e sua esposa, da caravana de viandantes escuros, do pequeno Menes e seu gatinho preto, da reza de Menes e do céu durante essa reza, das proezas dos gatos na noite em que a caravana se retirou, e do que mais tarde fora encontrado na cabana sob as árvores sombrias da repelente chácara.


E no final, os habitantes aprovaram aquela notável lei, que é comentada por comerciantes de Hatheg e discutida por viajantes em Nir; aquela lei que dizia que em Ulthar, ninguém pode matar gatos.




HPL e um de seus gatos

sábado, 24 de setembro de 2011

UM SONHO NO LETHE

De Clark Ashton Smith
Tradução de Arthur Ferreira Jr.'.







Procurando aquela que perdi, cheguei a tempo às costas do Lethe, sob a abóbada de um céu imenso, vazio e ébano, a partir do qual todas as estrelas sumiam, uma por uma.  Vinda não sei de onde, uma luz pálida e fugidia, como a da lua minguante, ou a fosforescência fantasmagórica de um sol morto, caiu tênue e sem lustre sobre a torrente obsidiana, e sobre os prados negros e sem flor alguma.  Sob esta luz, enxerguei muitas almas errantes, de homens e mulheres, que vinham, hesitantes ou sôfregas, beber das lentas águas que nunca murmuram.  Porém entre todas essas, nenhuma partia sôfrega, e muitos que permaneciam contemplavam, com olhos que não enxergavam, o movimento calmo e sem ondas da torrente.  À distância, na forma graciosa e alta como um lírio, e no rosto imóvel e altivo de uma mulher que permanecia separada do resto, enxerguei aquela a quem buscava; e, correndo para estar ao seu lado, com um coração onde antigas memórias cantavam como um ninho de rouxinóis, fui ávido em tomar da sua mão.  Porém nos olhos pálidos e imutáveis, e nos lábios imóveis e descorados, que achegaram-se aos meus, não enxerguei luz alguma de memórias, nenhum tremor de reconhecimento.  E sabendo agora que ela havia esquecido, fugi desesperado, e encontrei o rio diante de mim, de súbito senti minha antiga sede por suas águas, uma sede que um dia pensei satisfazer em muitas e diversas fontes, mas em vão.  Abaixando-me apressado, bebi, e levantando mais uma vez, percebi que a luz havia morrido ou desaparecido, e que toda a terra era como a terra de um sono sem sonhos, onde eu não conseguia mais distinguir os rostos de meus companheiros.  Nem nunca mais conseguiria lembrar jamais por quê eu desejei beber das águas do esquecimento.


Clark Ashton Smith

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

VINDOS DAS CRIPTAS DA MEMÓRIA

por Clark Ashton Smith
em 1917
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'. em 2011


Texto retirado de "Ébano e Cristal" ("Ebony and Crystal")




Eras e eras atrás, numa época cujos mundos maravilhosos já haviam ruído, e cujos poderosos sóis eram menos que sombra, habitava eu uma estrela cujo curso, já sem retorno, em sua decadência vinda dos altos céus do passado, estava cada vez mais aproximando-se de um abismo onde, diziam os astrônomos, seu ciclo imemorial encontraria um fim sombrio e desastroso.

    Ah, era estranha aquela estrela esquecida em seu golfo – quão mais estranha que qualquer sonho dos sonhadores nas esferas do hoje, ou que qualquer visão que já assomou os visionários, em sua retrospectiva do passado sideral! Ali, através de ciclos de história cujos registros empilhados, escritos em bronze, não podiam mais ser enumerados, os mortos vieram a superar, em definitivo, os vivos. E, construídas de uma pedra indestrutível, salvo na fornalha dos sóis, suas cidades cresciam ao lado das dos vivos, como as metrópoles prodigiosas dos Titãs, com muralhas que conjuravam sombras sobre as vilas próximas. E sobre tudo aquilo, havia a cripta fúnebre e sombria dos enigmáticos céus – um domo de sombras infinitas, onde o triste sol, suspenso como uma lâmpada enorme e solitária, não conseguia iluminar, e extinguindo suas chamas em face do inevitável, enviava um raio confuso e desesperador sobre os remotos e vagos horizontes, e as vistas ocultas eram ilimitadas, naquela terra visionária.



Éramos um povo sombrio, secreto e muito tristonho – nós, que habitávamos sob o céu do crepúsculo eterno, penetrado por altíssimas torres e obeliscos do passado. Em nosso sangue, sentia-se o calafrio da antiga noite do tempo; e nossos pulsos enfraqueciam com a insidiosa presciência do langor do Lethe. Sobre nossas cortes e campos, como vampiros invisíveis e letárgicos, nascidos dos mausoléus, ascendiam e flutuavam as horas negras, com asas que destilavam uma languidez maléfica, nascida do lamento sombrio e do desespero dos ciclos encerrados. Os próprios céus eram carregados de opressão, e respirávamos sobre eles como se num sepulcro, para sempre selado, com todas as estagnações da corrupção e da lenta decomposição, e da escuridão impenetrável, a não ser aos vermes que roem.

    Vivíamos de forma vaga, e amávamos como se ama nos sonhos – os tênues e místicos sonhos que flutuam sobre o limiar do sono inescrutável. Sentíamos por nossas mulheres, com sua beleza pálida e espectral, o mesmo desejo que os mortos podiam sentir pelos lírios fantasmagóricos dos campos do Hades. Nossos dias se passavam num vagar por entre as ruínas das cidades solitárias e imemoriais, cujos palácios de cobre corroído, e ruas que corriam entre linhas de obeliscos gravados a ouro, repousavam frágeis e macabros àquela luz mortiça, ou eram afogados para todo o sempre, em meio aos mares da sombra estagnante; cidades cujas igrejas vastas e construídas com o ferro preservavam sua aura de mistério e fascínio primordial, a partir da qual os simulacros de deuses esquecidos há séculos buscavam, com olhos inalteráveis, nos céus desesperançosos, a noite pressagiada, o esquecimento definitivo. Languidamente, cultivávamos nosso jardins, cujos lírios cinzentos ocultavam um perfume necromântico, que tinha o poder de evocar-nos para os sonhos mortos e espectrais do passado. Ou, errando pelos campos cinzas do outono perene, buscávamos as raras e místicas margaridas imortais, cujas folhas sombrias e pétalas pálidas, que floresciam debaixo de salgueiros de folhagem lívida e velada; ou cobertas por um orvalho doce e narcótico, pelo silêncio fluente das águas aquerônticas.

    E um por um, morremos, e nos perdemos na poeira do tempo acumulado. Percebemos os anos como um passar de sombras, e conhecemos a própria morte como o render-se do crepúsculo à noite.






Leia o original em inglês em:
http://en.wikisource.org/wiki/From_the_Crypts_of_Memory

ALÉM DAS MURALHAS DO SONO

H.P. LOVECRAFT
Tradução: Arthur Ferreira Jr.'.
Titulo Original: Beyond the Wall of Sleep





Tenho muitas vezes imaginado se a maioria da humanidade chega alguma vez a refletir sobre a muitas vezes titânica relevância dos sonhos, e sobre o obscuro mundo onde eles pertencem. Embora a maior parte de nossas visões noturnas talvez não passe de reflexos tênues e fantásticos de nossas experiências despertas – por mais que Freud acene com seu simbolismo pueril – existe ainda uma certa memória, cujo caráter não-mundano e etéreo não permite uma interpretação normal, e cujo efeito vago, excitante e inquietante sugere possíveis vislumbres temporários de uma esfera da existência mental não menos importante que a vida física, embora separada desta por uma barreira quase impassável. A partir de minha experiência, não posso duvidar que o homem, quando perdido para a consciência terrestre, está de fato jornadeando até uma outra vida incorpórea, de uma natureza bastante diferente daquela que conhecemos, e da qual somente as mais frágeis e indistintas lembranças sobrevivem, após o despertar. A partir destas lembranças borradas e fragmentárias, podemos inferir muito, porém nada provar. Podemos adivinhar que, nos sonhos, a vida, a matéria e a vitalidade, como a terra as reconhece, não são necessariamente constantes; e que o tempo e o espaço não existem como nossos egos despertos os compreendem. Às vezes creio que esta vida menos material é nossa vida mais verdadeira, e que nossa vã presença no globo terráqueo é em si um fenômeno secundário, ou apenas virtual.

Foi de uma epifania juvenil, cheia de especulações deste tipo, que emergi uma tarde no inverno de 1900-1901, quando foi trazido para a instituição psiquiátrica estatal na qual eu servia como interno um homem cujo caso até então tem me assombrado sem cessar. Seu nome, conforme dizem os registros, era Joe Slater, ou Slaader, e sua aparência era a de um habitante típico da região das Montanhas Catskill; um dos herdeiros repelentes e estranhos de um extrato camponês colonial e primitivo, cujo isolamento de quase três séculos, acastelados nas colinas de um interior pouco frequentado, os fez cair numa espécie de degeneração barbárica, ao invés de avançar junto a seus parentes mais em posição mais afortunada nos distritos mais densamente colonizados. Entre este povo estranho, que correspondia exatamente ao elemento decadente do “lixo branco” do Sul, a lei e a moral eram não-existentes; e seu estado mental geral está provavelmente abaixo de qualquer outra seção do povo americano.

Joe Slater, que veio à instituição sob a custódia vigilante de quatro policiais estaduais, e que foi descrito como uma figura bastante perigosa, certamente não apresentava evidência alguma de dita disposição quando o observei pela primeira vez. Embora muito acima da estatura média, e de composição um tanto grosseira, ele passava uma impressão absurda de estupidez inofensiva, através do azul sonolento e pálido de seus olhos pequenos e molhados, o desleixo de sua barba amarelada, negligenciada e nunca aparada, e derrubar apático de seu lábio inferior. Sua idade era desconhecida, já que entre o seus, não haviam registros familiares, nem laços familiares permanentes; mas baseado na calvície da frente de sua cabeça, e da condição decaída de seus dentes, o cirurgião cerebral escreveu que tratava-se de um homem de mais ou menos quarenta anos.

A partir dos documentos médicos e legais, aprendemos tudo que podia ser coletado quanto a seu caso: este homem, um vagabundo, caçador de carnes e peles, sempre foi um estranho aos olhos de seus primitivos associados. Ele tinha hábito de dormir à noite por muito além do tempo normal, e ao acordar falava de coisas desconhecidas, de um modo tão bizarro que inspirava medo nos corações do populacho sem imaginação. Não que sua forma de linguagem fosse de fato incomum, pois ele nunca falava em outra língua que não o patuá degenerado de seu ambiente; mas o tom e teor de seus pronunciamentos eram de tal selvageria misteriosa, que ninguém conseguia ouvir sem apreensão. Ele próprio geralmente ficava tão aterrorizado e confuso quanto seus ouvintes, e depois de uma hora após o despertar, esquecia tudo que havia dito, ou pelo menos tudo que o havia feito dizer o que havia dito; voltando a uma normalidade bovina e quase amistosa como a de outros moradores das colinas.

Conforme Slater envelhecia, parecia que suas aberrações matutinas gradualmente aumentavam em frequência e agressividade; até que mais ou menos um mês antes de sua chegada na instituição, ocorreu a chocante tragédia que causou sua prisão pelas autoridades. Uma ocasião, perto do meio-dia, depois de um profundo sono começado numa farra de uísque mais ou menos às cinco horas da tarde anterior, o homem despertou muito subitamente, com ululações tão terríveis e alienígenas, que vários vizinhos vieram à sua cabina – uma pocilga nojenta onde ele vivia com uma família tão indescritível quanto ele mesmo. Investindo pela neve, ele abria os braços e começava uma série de saltos diretamente para cima, no ar; enquanto gritava sua determinação em alcançar alguma “cabana enorme, imensa, de telhado e paredes e chão reluzentes, e a estranha e alta música lá longe”. Assim que dois homens de tamanho moderado buscaram contê-lo, ele lutou com força e fúria maníaca, gritando de seu desejo e necessidade de encontrar e matar uma certa “coisa que brilha e tremula e ri”. Após ter temporariamente derrubado um de seus captores com um golpe repentino, jogou-se sobre o outro num êxtase demoníaco de sede de sangue, berrando de modo atroz, que ele “pularia alto no ar e queimaria sua trilha através de qualquer um que o tentasse parar”.

Família e vizinhos agora fugiam em pânico, e quando o mais corajoso deles retornou, Slater havia sumido, deixando para trás uma mingau irreconhecível que antes havia sido um homem vivo, um hora antes. Nenhum dos montanhistas ousou persegui-lo, e é provável que eles receberiam bem sua morte por hipotermia; mas quando várias manhãs depois, ouviram seus gritos vindos de uma distante ravina, perceberam que ele de alguma forma conseguira sobreviver, e que sua remoção, de um modo ou de outro, seria necessária. Então foi formada um grupo de busca armado, cujo propósito (qualquer que tenha sido a princípio) tornou-se o mesmo de uma equipe do xerife, após um dos pouco populares policiais militares estaduais ter, por acidente, observado e então questionado, e finalmente se juntado aos perseguidores.

No terceiro dia, Slater foi encontrado inconsciente no oco de uma árvore, e levado à cadeia mais próxima, onde os alienistas de Albany o examinaram tão logo da volta de seus sentidos. Para eles, Slater contou uma história simples. Ele havia, disse, ido dormir numa tarde, por volta do pôr do sol, após beber muito. Ele despertou, achando-se de pé, com as mãos sangrentas, na neve atrás de sua cabina, tendo o cadáver mutilado de seu vizinho Peter aos seus pés. Horrorizado, adentrou os bosques, num vago esforço de escapar da cena daquilo que deveria ter sido seu crime. Além destas coisas, ele não parecia saber mais nada, nem o questionamento perito de seus interrogadores trouxe mais um único fato sequer.

Naquela noite, Slater dormiu quieto, e na manhã seguinte, acordou sem anormalidades, salvo uma certa alteração da expressão. O doutor Barnard, que havia observado o paciente, pensou que notara nos olhos azul-pálido um certo brilho de qualidade peculiar, e nos lábios flácidos, um endurecimento quase imperceptível, como se numa determinação inteligente. Porém quando questionado, Slater caiu na vaguidade habitual de montanhista, e limitou-se a reiterar o que disse no dia anterior.

Na terceira manhã, ocorreu o primeiro dos ataques mentais do homem. Após alguma mostra de inquietude durante o sono, ele explodiu num frenesi tão poderoso que os esforços combinados de quatro homens foram necessários para prendê-lo a uma camisa de força. Os alienistas escutaram com atenção fervorosa suas palavras, já que sua curiosidade havia sido levada a um alto grau, pelas histórias sugestivas, embora bastante conflitantes, de sua família e vizinhos. Slater algaraviou por mais de quinze minutos, balbuciando em seu dialeto florestal, falando de edifícios verdes de luz, oceanos de espaço, música estranha, e montanhas e vales sombrios. Porém na maior parte do tempo, ele se detinha em alguma entidade misteriosa e flamejante que tremulava e ria e zombava dele. Esta personalidade vasta e vaga parecia ter feito a ele um terrível mal, e matá-la numa vingança triunfante era seu desejo principal. Para alcançá-la, dizia Slater, ele voaria pelos abismos do vazio, queimando cada obstáculo em seu caminho. Assim correu seu discurso, até que muito de repente, parou. O fogo da loucura morreu em seus olhos, e em fascínio embrutecido, ele perguntou a seus questionadores por que estava preso. O dr. Barnard desfez as presilhas de couro e não as restaurou até a noite, quando conseguiu persuadir Slater a vesti-las por vontade própria, para seu próprio bem. O homem agora já admitia que às vezes falava estranho, embora não soubesse o porquê.

Dentro de uma semana, mais dois ataques se sucederam, mas deles, os médicos pouco aprenderam. Quanto à fonte das visões de Slater, muito foi especulado, já que ele não podia nem ler nem escrever, e aparentemente jamais ouvira uma única lenda ou conto de fadas, fazendo com que sua imagética extravagante fosse muito pouco explicável. O fato de que não vinha de qualquer mito ou romance conhecido, tornava-se demasiado claro pelo fato do infeliz lunático expressar-se apenas de sua própria maneira simples. Ele algaraviava sobre coisas que não compreendia e nem podia interpretar; coisas que ele clamava ter experimentado, mas que ele não poderia ter aprendido através de nenhuma narração normal ou conexa. Os alienistas logo concordaram que sonhos anormais eram a fundação do problema: sonhos cuja vividez poderia por um tempo dominar de todo a mente desperta deste homem basicamente inferior. Com a devida formalidade, Slater foi julgado por assassinato, inocentado pela alegação de insanidade, e enviado à instituição onde eu mantinha uma posição bastante humilde.

Já disse que sou um especulador constante quanto à vida onírica, e a partir disto, vocês podem julgar a avidez com que eu me aplicava ao estudo do novo paciente, tão logo avaliara de todo os fatos de seu caso. Ele parecia sentir uma certa amizade em mim, nascida sem dúvida do interesse que eu não conseguia ocultar, e da maneira gentil com que eu o questionava. Não que ele jamais me reconhecesse durante seus ataques, quando eu ficava sem fôlego com seus retratos verbais cósmicos tão caóticos; mas ele me reconhecia em suas horas quietas, quando ele sentava ao lado de sua janela com grades, fiando cestos de palha e salgueiro, e talvez com nostalgia da liberdade montanhista que jamais poderia de novo desfrutar. Sua família jamais buscou vê-lo; provavelmente ela descobriu outro chefe de família temporário, à maneira do povo decadente das montanhas.

Com o passar do tempo, comecei a sentir um enorme fascínio pelas concepções loucas e fantásticas de Joe Slater. O próprio homem era tristemente inferior, tanto em mentalidade quanto em linguagem; mas suas visões brilhantes e titânicas, embora descritas num jargão bárbaro e desconexo, certamente falavam de coisas que somente um cérebro superior, ou mesmo excepcional, poderia descrever. Como poderia, muitas vezes me perguntava, a imaginação imperturbável de um degenerado das Catskill conjurar tais vislumbres cuja própria posse demonstrava uma centelha de gênio à espreita? Como algum estúpido da floresta poderia ter conseguido alguma ideia assim dos reinos brilhantes de radiância e espaço supernos dos quais algaraviava Slater em seu delírio furioso? Cada vez mais, inclinava-me à crença de que sob a lamentável personalidade que se encolhia perante mim, estava o núcleo desordenado de alguém além da minha compreensão; algo infinitamente além da compreensão dos meus colegas médicos e científicos mais experientes, embora menos imaginativos.

E ainda assim, não conseguira extrair nada definitivo do homem. A soma de toda a minha investigação foi de que, num tipo de vida onírica semicorpórea, Slater vagava ou flutuava por vales, prados, jardins, cidades e palácios de luz resplandecentes e prodigiosos, numa região sem limites, desconhecida do homem; que ele não era nenhum camponês ou degenerado, mas uma criatura de importância e vividez, movendo-se orgulhosa e dominantemente, detida apenas por um certo inimigo mortal, que parecia um ser de estrutura visível, embora etérea, e que não parecia ter forma humana, já que Slater jamais referia-se a ele como um homem, mas apenas como uma coisa. A tal coisa causara a Slater algum horrendo mal sem nome, que o maníaco (se é que era um maníaco) buscava vingar.

Pela maneira com que Slater aludia a estes encontros, julguei que ele e a coisa luminosa encontravam-se em termos iguais; que em sua existência onírica, o homem era ele mesmo uma coisa luminosa da mesma raça de seu inimigo. Esta impressão foi sustentada por suas frequentes referências a voar pelo espaço e queimar tudo que impedia seu progresso. Ainda assim, estas concepções eram formuladas em palavras rústicas, totalmente inadequadas à sua transmissão, uma circunstância que me levou à conclusão de que se de fato existia um mundo onírico, a linguagem oral não era o seu meio de transmissão de pensamento. Poderia ser que a alma onírica que habitava este corpo inferior estava desesperadamente lutando para falar coisas que a língua simples e restrita da estupidez não conseguia pronunciar? Poderia ser o caso que eu estivesse a ponto de encontrar emanações intelectuais que explicariam o mistério, se apenas pudesse conseguir como descobri-las e lê-las? Não contei aos médicos mais velhos sobre estas coisas, já que a meia-idade é cínica, cética e sem inclinações a aceitar novas ideias. Além disso, o chefe da instituição havia há pouco me advertido, à sua maneira paternal, que eu estava trabalhando demais; que minha mente precisava de um descanso.

Há muito tempo, creio que o pensamento humano consiste basicamente de movimento atômico ou molecular, convertível em ondas ou energia radiante, como o calor, a luz e a eletricidade. Esta crença desde já me havia levado a contemplar a possibilidade da telepatia ou da comunicação mental, através de um aparato adequado, e em meus dias de faculdade preparei um conjunto de instrumentos de transmissão e recepção de certo modo similares aos aparelhos complicados empregados na telegrafia sem fio, naquele período rudimentar anterior ao rádio. Testei aqueles aparelhos com um colega estudante, mas sem alcançar resultado algum, logo os empacotei junto com outros obstáculos e finalidades científicas para possível uso futuro.

Agora, em meu intenso desejo de sondar a vida onírica de Joe Slater, busquei mais uma vez esses instrumentos, e passei vários dias reparando-os para a ação. Quando estiveram mais uma vez completos, não perdi a oportunidade de testes. A cada surto de violência de Slater, ajustaria o transmissor à sua testa e o receptor à minha, constantemente fazendo arranjos para vários comprimentos de onda hipotéticos de energia intelectual. Tinha uma parca noção de como as impressões de pensamento, caso transmitidas com sucesso, despertariam uma reação inteligente em meu cérebro, mas tinha certeza de que poderia as detectar e interpretar. Portanto, continuei meus experimentos, embora sem informar a ninguém sobre sua natureza.

Foi no dia 21 de fevereiro de 1901 que a coisa aconteceu. Quando olho para trás, com o passar dos anos, percebo o quão irreal a coisa parece, e às vezes imagino se o velho doutor Fenton não estava certo quando creditou tudo à minha imaginação empolgada. Lembro que ele ouviu com grande gentileza e paciência ao que eu lhe dizia, mas depois me receitou uma medicação para os nervos e fez os preparativos para férias de um semestre, as quais comecei a gozar a partir da semana seguinte.

Naquela noite fatídica, eu estava altamente agitado e perturbado, porque apesar do excelente cuidado que recebia, Joe Slater sem dúvida estava morrendo. Talvez porque tinha saudade de sua liberdade de montanhista, ou talvez o tumulto em seu cérebro houvesse chegado a um ponto prejudicial em seu físico um tanto inerte; mas em todo caso, a chama da vitalidade começava a diminuir naquela corpo decadente. Ele sentia-se sonolento perto do fim, e conforme a escuridão caía, ele entrava num sono conturbado.

Eu não afixei a camisa de força, como era costume quando ele dormia, já que via que o paciente estava muito frágil para ser perigoso, mesmo que acordasse em desordem mental mais uma vez, antes de falecer. Porém pus em sua cabeça e na minha as duas extremidades de meu “rádio” cósmico, esperando, contra todas as probabilidades, que a primeira e última mensagem do mundo onírico viesse, no breve tempo que restava. Conosco na cela estava uma enfermeira, companheira medíocre que não compreendia o propósito do aparato, ou sequer pensava em perguntar do que se tratava. Conforme as horas escoavam, eu via sua cabeça escorregar pateticamente no sono, mas não o perturbei. Eu mesmo, embalado pela respiração rítmica do homem saudável embora moribundo, devo ter cabeceado um pouco depois.

Foi o som da bizarra melodia lírica que me despertou. Coros, vibrações e êxtases harmônicos ecoavam passionais, a todo momento, enquanto em minha visão fascinada explodia o estupendo espetáculo da beleza definitiva. Muralhas, colunas, e arquitraves de fogo vivo ardiam refulgentes ao redor do ponto onde eu parecia flutuar no ar, estendendo-se para cima até um domo abobadado infinitamente alto, de esplendor indescritível. Misturando-se a esta demonstração de magnificência palaciana, ou na verdade às vezes suplantando-o na rotação caleidoscópica, mostravam-se vislumbres de planícies amplas e vales graciosos, montanhas altas e grutas convidativos, cobertas de cada atributo amável do cenário que meus olhos deslumbrados poderiam conceber, embora formados totalmente de alguma entidade plástica, etérea e brilhante, que compartilhava da consistência tanto do espírito quanto da matéria. Conforme eu me transfixava, percebia que meu próprio cérebro tinha a chave para estas metamorfoses encantadoras; pois que cada visão que aparecia perante mim era aquela que minha mente mutável mais queria contemplar. Em meio a este reino elísio, eu não vagava como estranho, pois cada visão e som eram a mim familiares; da mesma forma que havia sido por incontáveis éons de eternidade antes, haveria de ser pelas eternidades por vir.

Então a aura resplandecente de meu irmão de luz se aproximou e começou o colóquio comigo, de alma para alma, num intercâmbio silencioso e perfeito de pensamentos. Era a hora do triunfo se aproximando, pois meu ser companheiro não estava escapando por fim de uma prisão periódica; estava escapando para sempre, e preparando-se para seguir o opressor amaldiçoado até os mais longínquos campos de éter, onde sobre ele seria imposta uma vingança cósmica flamejante, capaz de estremecer as esferas? Flutuamos assim por pouco tempo, quando percebi uma leve distorção e desvanecimento dos objetos ao nosso redor, como se alguma força me estivesse chamando da terra – onde eu menos desejava ir. A forma próximo de mim pareceu também sentir uma mudança, e ela mesmo preparou-se para encerrar a cena, sumindo de meu campo de visão numa rapidez um tanto maior que a dos outros objetos. Conforme mais uns poucos pensamentos foram trocados, soube que o ser luminoso e eu estávamos sendo chamados à prisão, embora para meu irmão de luz fosse a última vez. A lamentável casca planetária estaria em breve desgastada de uma vez todas, e em menos de uma hora, meu companheiro estaria livre para perseguir seu opressor pela Via Láctea e além das mais distantes estrelas, até os últimos confins do infinito.

Um choque bem definido separa minha impressão final da cena de luz fugaz de meu súbito e um tanto envergonhado despertar, e me ajeitei na cadeira quando vi que a figura moribunda no sofá movia-se com hesitação. Joe Slater estava de fato despertando, embora provavelmente pela última vez. Conforme o observava mais de perto, enxerguei em seu rosto macilento o brilho de pontos de cor que jamais havia estado presentes anteriormente. Também os lábios pareciam incomuns, comprimidos com força, como se por força de um caráter mais forte do que o normal de Slater. Toda a face finalmente começava a ficar tensa, e a cabeça virava-se inquieta, com os olhos fechados.

Não acordei a enfermeira adormecida, mas reajustei a faixa um tanto desarranjada de meu “rádio” telepático, tentando capturar qualquer mensagem de adeus que o sonhador estava querendo transmitir. E de súbito a cabeça voltou-se direto para mim e os olhos se abriram, fazendo-me fitar em fascínio vazio ao que presenciava. O homem que havia sido Joe Slater, o decadente das Catskill, estava me observava com um par de olhos luminosos e expandidos, cujo azul parecia ter se aprofundado sutilmente. Nem a mania, nem a degeneração eram visíveis neste olhar, e senti, além de toda dúvida, que estava contemplando um rosto sob o qual estava uma mente ativa da mais alta ordem.

Nesta junção, meu cérebro ficou ciente de uma influência externa operando sobre ele. Fechei meus olhos para concentrar meus pensamentos com mais profundidade, e fui recompensado com o conhecimento positivo de que minha mensagem mental, há muito buscada, finalmente havia chegado. Cada ideia transmitida era formada com rapidez na mente, e embora nenhuma linguagem atual fosse empregada, minha associação habitual de concepção e hábito era tão grande que parecia receber a mensagem em inglês normal.

“Joe Slater está morto,” veio a voz, capaz de petrificar a alma, de alguém além das muralhas do sono. Meus olhos abertos buscaram o tom da dor, em curioso horror, porém os olhos azuis ainda estavam observando com calma, o semblante ainda estava animado por inteligência. “É melhor que ele esteja morto, pois não era adequado para suportar o intelecto ativo da entidade cósmica. Seu corpo grosseiro não podia aguentar os ajustes necessários entre a vida etérea e a vida planetária. Ele era demasiado animal, e pouco homem; ainda assim, através da deficiência dele, você veio a me descobrir, pois as almas cósmicas e planetárias na verdade jamais deveriam se encontrar. Ele foi meu tormento e prisão diurna por quarenta e dois de seus anos terrestres.

“Eu sou uma entidade como aquela que você mesmo se torna na liberdade do sono sem sonhos. Sou seu irmão de luz, e já flutuei contigo em vales refulgentes. Não me é permitido falar a seu eu desperto da terra sobre seu eu real, mas somos todos errantes dos vastos espaços e viajantes em muitas eras. No ano seguinte, posso estar habitando o Egito que você chama antigo, ou no império cruel de Tsan Chan, que deverá vir daqui a três mil anos. Você e eu já vagamos pelos mundos que rolam ao redor da Arcturus vermelha, e habitamos os corpos de insetos filósofos que rastejam orgulhosos sobre a quarta lua de Júpiter. Quão pouco este eu terráqueo conhece a vida e sua extensão! Quão pouco, de fato, embora seja para sua própria tranquilidade!

“Quanto ao opressor, não posso dizer nada. Vocês na terra, com certeza, já sentiram sua presença distante – vocês que, sem saber, deram merecidamente ao facho pulsante o nome de Algol, a Estrela Demônio. É para encontrar e conquistar o opressor que tenho lutado em vão por éons, aprisionado pelos fardos corpóreos. Hoje, irei como nêmesis, impondo a justa, ardente e cataclísmica vingança. Observe-me no céu próximo à Estrela Demônio.

“Não posso mais falar, pois o corpo de Joe Slater fica cada vez mais frio e rígido, e o cérebro rude cessa de vibrar como eu gostaria. Você foi meu único amigo neste planeta – a única alma que pôde sentir e buscar por mim dentro da forma repelente que jaz neste sofá. Nos encontraremos novamente – talvez nas brumas brilhantes da Espada de Orion, talvez num platô macabro da Ásia pré-histórica, talvez em sonhos desta noite que você não conseguirá lembrar, talvez em outra forma daqui a um éon, quando o sistema solar já terá sido varrido para longe.”

Neste ponto as ondas de pensamento cessaram abruptamente, os olhos pálidos do sonhador – ou devo dizer do cadáver? – começaram a ficar vítreos, aquosos. Em meio a um quase estupor, fui até o sofá e avaliei o pulso, mas o achei frio, rígido, sem ritmo. O rosto macilento ficava mais pálido, e os lábios grossos caíam abertos, mostrando as presas repulsivamente podres do degenerado Joe Slater. Senti um calafrio, puxei um cobertor sobre a face horrenda, e acordei a enfermeira. Então deixei a cela e fui em silêncio até minha sala. Senti um ímpeto instantâneo e inexplicável de dormir, num sono cujos sonhos não conseguiria lembrar.

O clímax? Que história plana da ciência pode exibir tal efeito retórico? Eu apenas registrei certas coisas que me pareceram fatos, permitindo a vocês construí-los como desejar. Como já admiti, meu superior, o velho doutor Fenton, nega a realidade de tudo que relatei. Ele jura que eu fui alquebrado pelo estresse nervoso, e que estava muito necessitado de férias longas, totalmente remuneradas, que ele, generoso, me concedeu. Ele me assegura, por sua honra profissional, que Joe Slater não passava de um paranoico de baixo grau, cujas noções fantásticas deviam provir de histórias folclóricas rudimentares e hereditárias, que circulam até nas mais decadentes das comunidades. Tudo isto ele me disse – embora eu não possa esquecer o que vi na noite depois da morte de Slater. Antes que pensem que sou uma testemunha tendenciosa, outra caneta deve terminar este testemunho final, talvez proporcionando o clímax que esperam. Citarei o seguinte registro da estrela Nova Persei, exatamente como está nas páginas daquela eminente autoridade astronômica, o professor Garrett P. Serviss:

“Em 22 de fevereiro de 1901, uma nova e maravilhosa estrela foi descoberta pelo doutor Anderson, de Edinburgo, não muito longe de Algol. Nenhuma estrela era visível ali, até aquele dia. Dentro de vinte e quatro horas, a estrela estranha brilhou tão forte que superou Capela. Numa semana ou duas, havia visivelmente diminuído, e no decorrer de uns poucos meses mal era discernível a olho nu.”

A FLOR-DEMÔNIO

CLARK ASHTON SMITH
Título Original: The Flower-Devil
Tradução: Arthur Ferreira Jr.'.





       Numa pia de alabastro, no alto de um pilar de serpentina, a coisa existe desde um templo primevo, no jardim dos reis que governam um reino equatorial no planeta Saturno.  Com folhagem negra, fina e intricada como a teia de alguma enorme aranha; com pétalas de um rosa lívido, e púrpuras como o púrpura de carne putrefata; e um caule ascendente, como o pulso peludo e escuro de um bulbo tão antigo, tão incrustrado com o crescimento dos séculos, que lembra uma urna de pedra, a flor monstruosa mantém domínio sobre todo o jardim.  Nesta flor, desde os anos das mais antigas lendas, um demônio maligno habita -- um demônio cujo nome e natividade são conhecidos pelos magistas superiores, e pelos misteriarcas do reino, embora uma icógnita a todos os outros.  Sobre as flores quase-animadas, as orquídeas ofídeas que se enroscam e ferroam, os lírios quirópteros que à noite abrem suas pétalas arcadas como costelas, e com minúsculos dentes amarelados, banqueteiam-se com os corpos das libélulas adormecidas; os cactos carnívoros que bocejam com lábios esverdeados, abaixo de suas barbas de espinhos amarelados e venenosos; as plantas que palpitam como corações, os brotos que suspiram com um hálito de perfume peçonhento -- acima de todas essas plantas, a Flor-Diabo reina suprema, em sua imortalidade maligna, e inteligência maldosa e perversa -- incitando-as a uma estranha maleficência, a um capricho fantástico, até mesmo a atos de rebelião contra os jardineiros, que continuam com suas tarefas com cautela e tremor, já que mais de um deles já fora mordido, sendo mesmo levado à morte, por alguma flor raivosa e envenenada.  Em alguns pontos, o jardim tornou-se selvagem, devido à falta de cuidados dos jardineiros temerosos, e tornou-se um emaranhado monstruoso de rastejantes serpentinos, e de plantas com cabeças de hidra, convoluto e retorcido em si mesmo de tanto ódio letal ou amor venenoso, e tão horrível como uma multidão de víboras e pítons ocupados em lutar.


       E, como fizeram seus inúmeros ancestrais, antes dele, o rei não ousa destruir a Flor, por medo de que o diabo, expulso de seu refúgio, possa buscar uma nova residência, e entrar no cérebro ou corpo de um dos súditos do rei -- ou mesmo no coração de sua tão bela, gentil e amada rainha!





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