sábado, 23 de junho de 2012

O RETORNO DE HASTUR - Partes I e II

August Derleth
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.




NA VERDADE, COMEÇOU há muito tempo: há quanto tempo, não ousaria dizer, mas no que diz respeito à minha conexão com o caso que arruinou minha carreira e trouxe dúvidas aos médicos quanto à minha sanidade, começou com a morte de Amos Tuttle. Foi numa noite de fins de inverno, com o vento sul soprando a vinda da primavera. Estava eu na antiga Arkham, assombrada pelas lendas, naquele dia; ele soube da minha presença pelo dr. Ephraim Sprague, que o atendia, e fez com que o médico chamasse a Lewiston House e trouxesse-me àquela propriedade lúgubre na Estrada Aylesbury, próxima a Innsmouth Turnpike. Não seria um lugar onde eu gostaria de estar, mas o velho pagava-me o suficiente para que eu tolerasse seu jeito tristonho e sua excentricidade, e Sprague havia deixado claro que ele estava moribundo: suas horas estavam contadas.


E de fato era o caso. O velho mal teve forças para fazer com que Sprague saísse do aposento e então falar comigo, embora sua voz estivesse clara o suficiente, saindo com pouca dificuldade.


“Você conhece minha vontade testamentária,” disse ele. “Cumpra-a ao pé da letra.”


Essa havia sido uma questão polêmica entre nós, devido a seu desejo de que, antes que seu herdeiro e único sobrinho sobrevivente, Paul Tuttle, pudesse clamar a propriedade, a casa devesse ser destruída – não derrubada, mas destruída, junto com certos livros designados pelo número de prateleira, em suas instruções finais. Seu leito de morte não era lugar para debater novamente aquela ideia de destruição gratuita; assenti, e aceitei a ordem. Teria sido melhor sorte se eu tivesse obedecido sem questionar!


“Veja só,” continuou, “há um livro lá embaixo, que você deve devolver à biblioteca da Universidade Miskatonic.”


Falou-me do título. Naquele momento não significava nada para mim; mas a partir daí tornara-se para mim, mais do que eu possa descrever – símbolo de um horror ancilário, de coisas enlouquecedoras além do véu da vida cotidiana e prosaica – a tradução latina do abominável Necronomicon, de autoria do árabe louco Abdul Alhazred.


Encontrei o livro com facilidade. Pelas últimas décadas de sua vida, Amos Tuttle havia vivido em reclusão cada vez maior, entre livros coletados em toda parte do globo; textos antigos, roídos pelas traças, com títulos que apavorariam um homem menos rijo – o sinistro De Vermis Mysteriis, de Ludwig Prinn, o terrível Culte de Ghoules do Comte d'Erlette, o condenável  Unaussprechlichen Kulten de von Juntz. Não sabia então o quão raros eram esses livros, nem compreendia a raridade sem preço de certas peças fragmentárias: o aterrorizante Livro de Eibon, os Manuscritos Pnakóticos, cheios de passagens horrorosas, e o temível Texto de R'lyeh; pois estes, descobrir ao examinar os balancetes, depois da morte de Amos, haviam sido comprados por somas fabulosas. Mas em parte alguma eu encontraria um número tão alto quanto aquele pago pelo Texto de R'lyeh, que havia chegado a ele de alguma parte do interior sombrio da Ásia; de acordo com os arquivos, ele havia pago não menos que cem mil dólares pelo livro; mas além disso, no registro do manuscrito amarelado, havia uma notação que me confundiu na época, mas que me dá ânsia pressagiosa em relembrar – depois da menção da soma, Amos Tuttle havia escrito, com sua caligrafia de teia de aranha: além do cumprimento da promessa.


Estes fatos não aconteceram até que Paul Tuttle tomasse posse, mas antes disso, várias ocorrências estranhas aconteceram, coisas que deveriam ter levantado minhas suspeitas quanto às lendas interioranas que falam de poderosas influências sobrenaturais ligadas à casa antiga. A primeira dessas ocorrências foi de pouca consequência, comparada às outras; aconteceu apenas que, ao devolver o Necronomicon à biblioteca da Universidade Miskatonic, em Arkham, encontrei-me levado por uma bibliotecária de lábios franzidos, direto ao escritório do diretor, Dr. Llanfer, que pediu-me diretamente para que eu explicasse a razão pela qual o livro estava em minhas mãos. Sem hesitação em responder, descobri que o raro volume jamais recebera permissão para sair da biblioteca e que, na verdade, Amos Tuttle o havia subtraído em uma de suas raras visitas, após ter falhado em persuadir o Doutor Llanfer a emprestá-lo. E Amos havia sido astuto o suficiente ao preparar de antemão uma imitação maravilhosamente razoável do livro, com a encadernação quase idêntica, e a reprodução do título e de suas páginas iniciais reproduzidas de memória; na ocasião de seu furto do livro do árabe louco, Amos havia substituído a imitação pelo original e saído com uma das duas únicas cópias disponíveis desta obra temida no continente norte-americano e uma das cinco conhecidas no mundo.


A segunda das ocorrências foi um pouco mais alarmante, embora tenha a aparência de sair das histórias mais convencionais de casas assombradas. Tanto Paul Tuttle quanto eu ouvimos na casa, em momentos estranhos da noite, particularmente enquanto o cadáver de seu tio estava ainda lá, o som de passos acolchoados, mas com algo esquisito neles: não era como se os passos fossem dentro da casa, mas passos de alguma criatura de tamanho quase além da concepção do homem, andando uma boa distância nos subterrâneos, de modo que o som na verdade vibrava na casa, a partir das profundezas da terra abaixo desta. E quando faço referência a passos, é apenas por falta de uma melhor palavra para descrever os sons, pois não eram passos limpos mas sons esponjosos, gelatinosos, chapinhantes, feitos com a força de tanto peso, que o consequente tremor de terra naquele lugar não era mais que isso. Mas agora o barulho se foi, coincidentemente logo após termos despachado o cadáver de Amos Tuttle, 48 horas antes do planejado. Os sons, classificamos como apenas os assentamentos da terra ao longo da costa distante, não só porque não demos muito importância a eles, mas devido à coisa final que aconteceu antes de Paul Tuttle tomar posse oficial da velha casa na Estrada Aylesbury.


A última coisa foi a mais chocante de todas, e dos três que a presenciaram, apenas eu permaneço vivo hoje, já que o doutor Sprague faz um mês de morto hoje, mas na época fora ele que observou e disse, “Enterre-o logo!” E assim o fizemos, pois as mudanças no corpo de Amos Tuttle eram macabras além da compreensão, especialmente horríveis no que sugeriam, e assim porque o corpo não estava caindo em decadência visível, mas mudando sutilmente para outra coisa, infundindo-se de uma iridescência esquisita, que escurecia até o ponto de parecer quase ébano, e a aparência da carne de suas mãos inchadas e de seu rosto mostrava o crescimento de pequenas escamas. Da mesma forma haviam mudanças no formato de sua cabeça; parecia alongar-se, assumir uma forma curiosa e pisciana, acompanhada de uma leve emanação de cheiro de peixe, saindo do caixão; e o fato dessas mudanças não serem mera imaginação foi chocantemente comprovado quando o corpo foi depois encontrado no lugar para onde seu maligno sucessor havia levado, e lá, finalmente apodrecendo, outros viram comigo as terríveis e sugestivas mudanças que haviam ocorrido, embora devam dar graças que não tenham conhecimento do que aconteceu antes. Mas no período em que Amos Tuttle estava na casa velha, não haviam pistas do que estava para acontecer, e fomos rápidos em fechar o caixão e mais rápidos ainda em levá-lo até o mausoléu dos Tuttle, coberto de hera, no cemitério de Arkham.


Naquela época, Paul Tuttle estava no final da casa dos quarenta anos, mas como muitos homens de sua geração, tinha o rosto e a constituição de um jovem de vinte. De fato, a única pista de sua idade estava nos leves toques de cinza no cabelo de seu bigode e têmperas. Ele era um homem alto e de cabelos escuros, um tanto acima do peso, com olhos azuis e francos, que anos de pesquisa erudita não haviam reduzido à necessidade de óculos. Ele não ignorava os termos da lei, pois rapidamente nos fez saber que se eu, como executor testamentário de seu tio, não estivesse disposto a ignorar a cláusula que ordenava a destruição da casa na Estrada Aylesbury, contestaria em juízo com base na insanidade de Amos Tuttle. Apontei a ele que ele estaria sozinho contra mim e o dr. Sprague, mas ao mesmo tempo não estava cego ao fato de que a irrazoabilidade da ordem poderia muito bem nos trazer uma derrota jurídica; e além disso, eu mesmo considerava a cláusula, nesse sentido, esquisitamente gratuita e sem sentido nesse apelo à destruição, e não estava preparado para lutar no tribunal por uma questão tão menor. Ainda assim, se tivesse previsto o que viria depois, teria atendido ao último pedido de Amos Tuttle, não importando qualquer decisão da corte. Contudo, tal capacidade de previsão não me ocorreu.


Eu e Tuttle fomos ver o juiz Wilton, e expomos o caso a ele. O juiz concordou conosco que a destruição da casa parecia desnecessária, e mais de uma vez fez sutil menção de concordar com a crença de Paul Tuttle na insanidade de seu falecido tio.


“O velho parecia alienado, sempre o conheci assim,” disse secamente. “Quanto a você, Haddon, poderia levantar-se no tribunal e jurar que ele era absolutamente são?”


Lembrando, com certo desconforto, o roubo do Necronomicon na Universidade Miskatonic, tive de confessar que não poderia fazê-lo.


De modo que Paul Tuttle tomou posse da propriedade na Estrada Aylesbury, e eu retornei a meu escritório advocatício em Boston, não exatamente descontente com a resolução das coisas, mas ainda assim sentindo um desconforto oculto, difícil de ser definido, uma sensação insidiosa de tragédia iminente, com certeza também alimentada por minha memória do que havia visto no caixão de Amos Tuttle, antes que este fosse selado e trancado no secular mausoléu do cemitério de Arkham.




II


Não muito tempo depois, mais uma vez fui ter com os telhados de duas águas e balaustradas georgianas da cidade de Arkham, amaldiçoada pelas bruxas, e estava então lá a serviço de um cliente que desejava assegurar que sua propriedade na antiga Innsmouth fosse protegida dos agentes governamentais e policiais que haviam tomado posse dessa temida e assombrada aldeia, embora não houvesse passado apenas alguns meses desde as misteriosa dinamitação dos blocos de prédios da orla, e de parte daquele terror – o Recife do Diabo, erguido no mar logo além – mistério que fora cuidadosamente guardado e oculto desde então, embora eu houvesse lido um artigo que se propunha a revelar os verdadeiros fatos do horror de Innsmouth, um manuscrito publicado privadamente, escrito por um autor de Providence. Seria impossível, naquele momento, ir até Innsmouth, porque o Serviço Secreto havia fechado todas as estradas que levavam até lá; contudo, redigi representações para as pessoas apropriadas e recebi uma confirmação de que a propriedade de meu cliente seria totalmente protegida, já que estava longe da orla; de modo que procedi a lidar com outras pequenas questões em Arkham.


Fui almoçar, naquele dia, num pequeno restaurante próximo à Universidade Miskatonic, e enquanto ali, fui abordado por uma voz familiar. Olhei e vi o dr. Llanfer, diretor da biblioteca da universidade. Ele parecia um tanto irritado, e suas feições traíam claramente seu estado. Convidei-o a partilhar de minha mesa, mas ele recusou; contudo, sentou-se, por assim dizer, na ponta da cadeira.


“Você tem visto Paul Tuttle?” perguntou abruptamente.


“Pensei em visitá-lo esta tarde,” repliquei. “Aconteceu algo errado?”


Ele ruborizou, com um ar um tanto culpado. “Não posso dizer com certeza,” respondeu firme. “Mas correm alguns rumores medonhos em Arkham. E o Necronomicon sumiu novamente.


“Bom Deus! Certamente não está acusando Paul Tuttle de tê-lo roubado?” Exclamei, numa mescla de surpresa e incômodo. “Não consigo imaginar que uso ele poderia dar a esse livro.”


“Ainda assim – está nas mãos dele,” persistiu o dr. Llanfer. “Mas não penso que ele o roubou, e gostaria que não pense que eu disse isso. É da minha opinião que um de nossos atendentes passou o livro para ele, e agora está relutante em confessar a enormidade de seu erro. Mas qualquer que seja a verdade, o livro ainda não reapareceu, e temo que teremos de ir atrás dele.”


“Eu poderia perguntar a Paul sobre o livro,” disse.


“Se fizer isso, ficarei grato,” respondeu o dr. Llanfer, com uma certa avidez. “Imagino que não ouviu nada dos rumores que andam por aqui?”


Balancei a cabeça negativamente.


“Muito provavelmente, apenas o resultado de alguma mente imaginativa,” continuou, mas seu ar sugeria que ele não estava disposto ou apto a aceitar uma explicação tão prosaica. “Parece que os passantes da Estrada Aylesbury ouvem estranhos ruídos à noite avançada, todos aparentemente emanando da casa Tuttle.”


“Que ruídos?” Perguntei, e não sem uma apreensão imediata.


“Aparentemente, ruídos de passadas; ainda assim, sei que ninguém pôde precisar a natureza desses ruídos, salvo um jovem que os caracterizou como esponjosos, e que disse que soaram como se fossem de algo grande, andando no lodo e água próximos.”


Os estranhos ruídos que Paul Tuttle e eu ouvimos na noite seguinte à morte de Amos Tuttle passaram em minha mente, mas nesta menção de passadas, feita pelo dr. Llanfer, a memória de tudo que havia ouvido voltou. Temi ter demonstrado isso de alguma forma, pois o dr. Llanfer percebeu meu súbito interesse; felizmente ele escolheu interpretá-lo como evidência de que eu havia escutado alguma coisa dos tais rumores, mesmo que eu tivesse dito o contrário. Preferi não corrigi-lo nesse sentido, e ao mesmo tempo experimentei um repentino desejo de não ouvir mais nada sobre o assunto; de modo que não pressionei-o em busca de detalhes adicionais, e quando ele levantou para retornar a seus deveres, deixou-me com a promessa de perguntar a Paul Tuttle sobre o livro perdido.


Sua história, por mais rasa que fosse, ainda assim soava uma nota de alarme dentro de mim; não consegui evitar lembrar as várias coisinhas que mantinha na memória – os passos que ouvimos, a estranha cláusula do testamento de Amos Tuttle, a horrenda metamorfose de seu cadáver. Já havia uma leve suspeita em minha mente, de que alguma sinistra cadeia de eventos estava manifestando-se ali; minha curiosidade natural atiçou-me, não sem uma certa sensação de desagrado, desejo consciente de evitar o caso, e a recorrência daquela estranha e insidiosa convicção de tragédia iminente. Mas estava determinado a ver Paul Tuttle o mais cedo possível.


Meu trabalho em Arkham consumiu toda a tarde, e somente no crepúsculo consegui estar diante da massiva porta de carvalho da velha casa Tuttle, na Estrada Aylesbury. Minha batida um tanto hesitante foi atendida pelo próprio Paul, que veio espreitar a noite crescente com sua lâmpada em mãos.


“Haddon!”, exclamou, abrindo mais a porta. “Pode entrar!”


Estava genuinamente grato em ver-me, disso não podia duvidar, pois a nota de entusiasmo em sua voz excluía quaisquer outras suposições. A afabilidade de suas boas-vindas também serviram-me para confirmar minha intenção de não falar dos rumores que ouvira, e proceder as perguntas sobre o Necronomicon no seu devido tempo. Lembrei que logo antes da morte de seu tio, Tuttle estava trabalhando num tratado filosófico ligado ao desenvolvimento do idioma indígena Sac, e passei a perguntar sobre o artigo, como se não houvesse nada mais importante.


“Já jantou, imagino,” disse Tuttle, levando-me pelo corredor para a biblioteca.


Respondi que já havia comido em Arkham.


Ele colocou a lâmpada sobre uma mesa cheia de livros, empurrando alguns papéis para o lado, ao fazê-lo. Convidando-me a sentar, ele voltou à cadeira que ele havia evidentemente deixado para atender à porta. Percebi nesse momento que ele estava um tanto desgrenhado, e que havia permitido que sua barba crescesse. Também havia engordado um pouco, sem dúvida consequência de seus estudos reforçados, que traziam confinamento à casa e falta de exercícios físicos.


“E quanto ao tratado Sac?” Perguntei.


“Coloquei-o de lado,” respondeu rápido. “Pode ser que o retome mais tarde. Mas agora, estou preso a algo bem mais importante – o quão importante, ainda não posso precisar.”


Vi então que os livros nas mesas não era os mesmos tomos eruditos que havia visto em sua mesa de Ipswich, mas com alguma apreensão, notei que eram os mesmos livros condenados pelas explícitas instruções do tio de Tuttle, e uma olhadela na direção dos espaços vazios nas prateleiras proscritas veio a confirmar o fato.


Tuttle voltou-se para mim com avidez e abaixou a voz, como se com medo de ser ouvido. “Na verdade, Haddon, é algo colossal – um gigantesco feito da imaginação, se não fosse por isso: não tenho mais certeza de que é algo imaginado, de fato, não tenho mais certeza. Fiquei imaginando qual seria a razão por trás da cláusula do testamento de meu tio; não podia compreender a razão pela qual a casa deveria ser destruída, e imaginei que a razão deveria estar nas páginas dos livros que ele tão cuidadosamente condenou. E estava certo.” Ele gesticulou em direção ao incunábulo à sua frente. “De modo que os examinei e posso dizer que descobri coisas de tal incrível estranheza, de tal horror bizarro, que às vezes hesito em aprofundar-me no mistério. Francamento, Haddon, a coisa que descobri é tão alienígena, e devo dizer que envolveu considerável pesquisa da minha parte, além de ler os livros coletados pelo Tio Amos.”


“Certo,” disse secamente. “E ouso dizer que você viajou bastante para tal?”


Abanou a cabeça negativamente. “De forma alguma, exceto uma viagem à Biblioteca da Universidade Miskatonic. O fato é que descobri poder conseguir o que queria através de carta. Lembra-se dos documentos de meu tio? Bem, descobri entre eles que Tio Amos pagou cem mil por um certo manuscrito encadernado – encadernado em pele humana, aliás – junto a uma linha enigmática: além do cumprimento da promessa. Comecei a perguntar-me que promessa Tio Amos poderia ter feito e a quem; se ao homem ou mulher que o vendera o Texto de R'lyeh, ou outra pessoa. Procedi portanto procurando o nome do homem que a ele vendera o livro, e cheguei a seu endereço: é um certo sacerdote chinês, do Tibete interior, e escrevi para ele. Sua resposta chegou há cerca de uma semana.”


Curvou-se e remexeu rapidamente nos papéis da mesa, até que encontrou o que buscava e passou-me.


“Escrevi em nome de meu tio, não confiando totalmente na transação, e mais ainda, escrevi como se tivesse esquecido ou tivesse esperança de evitar a promessa,” ele continuou. “Sua resposta é tão enigmática quanto a notação de meu tio.


De fato assim era, pois o papel amarrotado que me foi passado exibia, numa estranha caligrafia forçada, uma única linha, sem assinatura nem data: Oferecer um refúgio Àquele que Não Deve Ser Nomeado.


Ouso dizer que fitei Tuttle com uma estupefação que era espelhada claramente nos olhos dele, já que sorriu antes de responder.


“Não significa nada para você, certo? Nem significava nada para mim, quando li pela primeira vez. Mas não por muito tempo. Para compreender o que se segue, deve conhecer pelo menos um breve esboço da mitologia – se de fato trata-se de mitologia – na qual o mistério se enraíza. Meu Tio Amos aparentemente sabia dela e nela acreditava, pois as várias notas espalhadas nas margens dos livros proscritos aludem a um conhecimento muito além do meu. Aparentemente, a mitologia advém de uma fonte em comum de nossa Gênese lendária, mas com apenas umas poucas similaridades; às vezes sou tentado a dizer que esta mitologia é mais antiga que qualquer outra – certamente em suas implicações vai muito além das outras, sendo cósmica e imemorial, pois seus seres são de duas naturezas distintas: os Antigos, ou Deuses Anciões, simbolizando o bem cósmico, e aquelas entidades de mal cósmico, exibindo muitos nomes e categorizando-se em diferentes grupos, como se associados com os elementos e ao mesmo tempo transcendendo-os: pois existem os Seres da Água, ocultos nas profundezas; aqueles do Ar, que são os espreitadores primais de além do tempo; aqueles da Terra, horríveis sobreviventes animados de eras distantes. Há muito e muito tempo, os Anciões baniram dos lugares cósmicos os Malignos, aprisionando-os em muitos locais; mas com o tempo esses Malignos geraram lacaios infernais, que começaram a prepará-los para seu retorno à grandeza. Os Anciões não têm nomes, mas seu poder e vontade aparentemente sempre será maior, o suficiente para deter o poder dos outros.


“Agora, entre os Malignos aparentemente muitas vezes há conflito, bem como entre os seres inferiores. Os Seres da Água opõem-se aos do Ar; os Seres do Fogo opõem-se aos Seres da Terra, porém mesmo assim juntos odeiam e temem os Deuses Anciões e esperam sempre derrotá-los em algum tempo futuro. Entre os papéis de meu Tio Amos, aparecem muitos nomes temíveis, escritos em sua caligrafia difícil: Grande Cthulhu, Lago de Hali, Tsathoggua, Yog-Sothoth, Nyarlathotep, Azathoth, Hastur o Indizível, Yuggoth, Aldones, Thale, Aldebaran, as Híades, Carcosa, e outros nomes; e é possível dividir alguns desses nomes em classes vagamente sugestivas, a partir dessas notas que são a mim inteligíveis – embora muitas apresentem mistérios insolúveis, que não posso esperar penetrar algum dia; e muitas estão também escritas em idioma que não conheço, junto a símbolos e sinais enigmáticos e estranhamente assustadores. Mas através do que aprendi, é possível saber que o Grande Cthulhu é um dos Seres da Água, enquanto Hastur é um dos Seres que espreitam os espaços estelares; e é possível inferir, a partir dessas pistas vagas nesses livros proibidos, onde estão alguns desses seres. De modo que posso crer que, nesta mitologia, o Grande Cthulhu foi banido para um lugar sob os mares da Terra, enquanto Hastur foi lançado ao espaço exterior, aquele lugar onde as estrelas negras encontram-se, indicado como Aldebarã da Híades, que é o lugar mencionado por Chambers, que estava por sua vez repetindo a Carcosa de Bierce.


“À luz dessas coisas, da comunicação do sacerdote tibetano, posso certamente tornar claro um fato: Haddon, certamente, além de qualquer sombra de dúvida, Aquele Que Não Deve Ser Nomeado não pode ser outro senão Hastur, o Indizível!”


O súbito cessar de sua voz perturbou-me; havia algo hipnótico em seus ávidos sussurros, e algo que também me enchia de uma convicção muito além do poder das palavras de Paul Tuttle. Em algum lugar lá no fundo, nos recessos de minha mente, uma corda havia sido tangida, uma conexão mnemônica que não conseguia descartar, e que deixou-me com uma sensação de antiguidade ilimitada, uma ponte cósmica para outro lugar e outro tempo.


“Parece lógico,” Disse por fim, com cautela.


“Lógico, Haddon, é decerto lógico; deve ser lógico!” exclamou ele.


“Considerando que seja isso mesmo,” Eu disse, “Que deduz daí?”


“Veja só, considerando que seja isso mesmo,” ele prosseguiu com ânsia, “sabemos que meu Tio Amos prometeu oferecer um refúgio em preparo para o retorno de Hastur, vindo de qualquer seja a região do espaço exterior que agora o aprisiona. Onde seja isto, ou que tipo de lugar seja, até então não me preocupei em saber, embora possa talvez cogitar. Este não é tempo de cogitações, e ainda assim parece, a partir de certas outras evidências à mão, que podem haver outras deduções permissíveis a serem feitas. A primeira e mais importante delas é de natureza dupla – ergo, algo imprevisto impediu o retorno de Hastur, durante a vida de meu tio, e ainda assim, algum outro ser tornou-se manifesto.” Neste ponto ele fitou-me com franqueza incomum e não pouco nervoso. “Quanto à evidência desta manifestação, seria de bom alvitre não falar dela agora. É suficiente dizer que acredito ter tal evidência ao alcance. Retornemos então à minha premissa original.


“Entre as poucas anotações marginais feitas por meu tio, existem duas ou três especificamente notáveis no Texto de R'lyeh; de fato, à luz do que é conhecido, ou que pode justificadamente ser inferido, são notas sinistras e agourentas.”


Assim falando, abriu o antigo manuscrito e passou para um ponto bem próximo ao começo da narrativa.


“E agora preste atenção, Haddon,” disse ele, e eu levantei e curvei-me sobre ele para observar a caligrafia aracnídea e quase ilegível que eu sabia ser de Amos Tuttle. “Observe a linha de texto que está sublinhada: Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’ nagl fhtagn, e o que se segue foi escrito, sem qualquer dúvida, pela mão de meu tio: Seus lacaios preparando sua vinda, e ele não mais está sonhando? (WT: 2/28) e numa data mais recente, a julgar pela mão trêmula que aqui escreveu, uma única abreviação: Inns! Fica óbvio que isto não significa nada, sem uma tradução do texto. Sem isso, quando vi pela primeira vez a nota, voltei minha atenção à notação em parênteses, e em pouco tempo resolvi seu significado como sendo uma referência a uma revista popular, a Weird Tales, exemplar de fevereiro de 1928. Aqui a tem.”


Ele abriu a revista junto ao texto sem sentido, ocultando parcialmente as linhas que começaram a assumir uma inaudita atmosfera de idade sobrenatural perante meus olhos, e logo abaixo da mão de Paul Tuttle estava a primeira página de uma história que obviamente pertencia a essa inacreditável mitologia diante da qual eu não conseguia reprimir um começo de atordoamento. O título, apenas parcialmente coberto pela mão dele, era O Chamado de Cthulhu, de H.P. Lovecraft. Mas Tuttle não se deteve na primeira página; foi bem ao cerna da história, antes de pausar e apresentar a meus olhos a linha, idêntica e ilegível, que estava abaixo da escrita difícil de Amos Tuttle, no incrivelmente raro Texto de R'lyeh, sobre o qual repousava a revista. E ali, apenas um parágrafo abaixo, aparecia o que se passava por uma tradução de um idioma totalmente desconhecido do Texto: em sua casa de R'lyeh, o morto Cthulhu espera sonhando.


“E aqui está,” continuou Tuttle com certa satisfação, “Cthulhu também aguarda pelo tempo de seu ressurgimento – quantas eras, ninguém saberá dizer; mas meu tio questionou se Cthulhu ainda continuava sonhando, e seguindo isto, escreveu e sublinhou duas vezes uma abreviação que só pode significar Innsmouth! Isto, junto com as coisas macabras mal descritas nesta história reveladora, que passa por obra de ficção, abre uma visão de um horror jamais sonhado, um horror maléfico e ancilário.”


“Bom Deus!” Exclamei involuntariamente. “Certamente você não acha que esta fantasia ganhou vida?”


Tuttle voltou-se e me ofereceu um olhar estranhamente distante. “O que eu acho, não importa, Haddon,” replicou de maneira grave. “Mas há uma coisa que eu gostaria bastante que você soubesse – o que aconteceu em Innsmouth? O que aconteceu ali, por décadas, que fez as pessoas evitarem o lugarejo? Por qual razão este antes próspero porto caiu no esquecimento, com metade de suas casas vazias, suas propriedades praticamente sem valor? E por qual razão foi necessário que homens do governo explodissem rua após rua de armazéns e residências de sua orla? E por fim, por qual razão, diacho, enviaram um submarino para torpedear os espaços marinhos além do Recife do Diabo, ali perto de Innsmouth?"


“Não sei nada sobre isso,” repliquei. Mas ele não prestou atenção; levantou a voz um pouco, incerta e trêmula, dizendo, “Posso dizer a razão, Haddon. É como meu Tio Amos escreveu: o Grande Cthulhu despertou novamente!”


Por um momento senti um tremor; e então disse, “Mas é Hastur que ele estava esperando.”


“Precisamente,” concordou Tuttle numa voz direta e profissional. “Então gostaria de saber quem, ou o quê, caminha pela terra, nas horas sombrias em que Fomalhaut ascende e as Híades estão no leste!”






(continua...)

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