domingo, 19 de maio de 2013

O DILACERADOR DOS VÉUS

Ramsey Campbell 
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.





À meia noite, o último ônibus para Brichester já havia partido, e estava chovendo pesadamente. Kevin Gillson considerou amargamente ficar sob a marquise do cinema próximo até o raiar da manhã, mas o vento forte impelia a chuva de tal forma que a marquise não fornecia abrigo algum. Ele virou a gola de seu casaco para cima, tão logo a água começou a descer por seu pescoço, e lentamente subiu pela colina, distanciando-se do ponto de ônibus.
As ruas estavam virtualmente desertas; uns poucos carros que passavam não reagiam aos sinais que ele fazia. Muito poucas das casas pelas quais ele passava sequer chegavam a ter luzes acesas; causava-lhe depressão andar pelo asfalto úmido e negro, que refletia imagens trêmulas das luzes dos postes. Encontrou apenas uma pessoa na rua – uma figura silenciosa, curvada à sombra de umbrais. Apenas o brilho avermelhado de um cigarro convencera Gillson de que havia de fato alguém ali.
Na esquina das ruas Gaunt e Ferrey, notou um veículo aproximando-se. Um tanto atordoado pelos reflexos dos faróis, percebeu que era um táxi, passando pelas ruas em busca do último passageiro da noite. Kevin acenou com o esfrangalhado Camside Observer que estava carregando, e o táxi estacionou ao seu lado.
"Ainda está pegando passageiros?” gritou pela divisória.
"Eu estava indo pra casa,” respondeu o motorista. "Mas – se você ainda vai andar muito – eu não o deixaria andando pelas ruas numa noite como esta. Para onde vai?”
Gillson pediu que fossem para Brichester, e fez menção de entrar. Porém, naquele momento, ouviu uma voz próxima chamando; e ao voltar-se viu uma figura correndo pela chuva, em direção ao táxi. Pelo cigarro entre seus dedos e pela direção de onde havia vindo, Gillson imaginou que tratava-se do homem que havia notado nos umbrais.
"Espere – por favor, espere!" gritava o homem. Batia os pés no chão até chegar no táxi, molhando Gillson no processo. "Se importaria se compartilhássemos seu táxi? Se estiver com pressa, deixa pra lá – mas se eu for desviá-lo do caminho, pago a diferença. Não sei como é que eu poderia ir pra casa se não pegando táxi, embora eu não more muito longe daqui."
"E onde você mora, mesmo?" perguntou Gillson, cauteloso. "Não estou com pressa, mas..."
"Na Rota Tudor," respondeu rapidamente o homem.
"Ah, esse lugar é a caminho de Brichester, não?" disse Gillson, aliviado. "Claro, pode entrar – vamos acabar pegando pneumonia se ficarmos em pé aqui por mais tempo."
Uma vez no táxi, Gillson deu orientações ao motorista e sentou-se na parte de trás. Não sentia vontade de conversar, tendo decidido ler um livro, esperando que o outro não puxasse conversa. Pegou a cópia do Bruxaria nos Dias de Hoje que havia comprado numa banca, e ficou folheando as páginas.
Estava começando um capítulo quando uma voz o interrompeu. "Você acredita nessas coisas?"
"Nisto aqui?" Gillson inquiriu de maneira resignada, batendo na capa do livro. "De certa forma, sim – suponho que essas pessoas acreditavam que dançar nus e cuspir em crucifixos os faria bem. Um tanto infantil, porém – eram todos psicopatas, claro."
"Digno de um livro sensacionalista como esse, eu diria," concordou o outro.
Houve um silêncio de uns poucos minutos, e Gillson considerou voltar ao livro. Abriu-o novamente e leu a extravagante sinopse de orelha, e então o pôs de lado de jeito irritado, quando um fio de água desceu de sua manga para a página aberta. Limpou a mancha, e então sentiu-se irritado demais para ler o livro.
"Mas você sabe o que estava por trás desses cultos de bruxas?"
"O que quer dizer?" perguntou Gillson, deixando o livro de lado.
"Você conhece os verdadeiros cultos?" continuou a voz. "Não os servos medievais de Satã – mas aqueles que veneram deuses existentes?"
"Depende do que você quer dizer com 'deuses existentes'," respondeu Gillson.
O homem pareceu não ter notado esse comentário. "Eles formavam esses cultos porque estavam buscando alguma coisa. Talvez você tenha lido alguns de seus livros – você não os encontrará nas bancas, como aconteceu com esse aí, mas estão preservados em certos museus."
"Bem, uma vez estive em Londres, e dei uma olhada no que eles tinham no Museu Britânico."
"O Necronomicon, suponho." O homem parecia quase divertido. "E o que achou dele?"
"Achei um tanto perturbador," confessou Gillson, "mas não tão horripilante quando haviam me levado a esperar. Porém, não pude compreender tudo que havia ali."
"Pessoalmente, eu penso que ele é ridículo," disse o outro, "tão vago... Mas, é claro, se o livro tivesse descrito aquilo do qual dá pistas, nenhum museu teria contato com ele. Suponho que seja melhor que apenas uns poucos saibam da verdade... Desculpe-me, você deve estar me achando esquisito. E olha só, você nem me conhece. Sou Henry Fisher, e suponho que possa descrever-me como um ocultista."
"Não, por favor, continue," disse Gillson, "O que você está contando me interessa."
"Bem, interessado em pessoas buscando coisas? Por que razão, estaria você procurando alguma coisa?”
"Não exatamente, embora eu tenha um tipo de convicção persistente, desde que era criança. Nada incômodo, na verdade – só uma espécie de ideia de que nada é realmente como enxergamos: se houvesse outra forma de enxergar as coisas sem usar seus olhos, tudo pareceria bem diferente. Esquisito, não é?”
Quando não veio resposta, ele se virou. Havia uma expressão estranha nos olhos de Henry Fisher; um olhar de triunfo surpreso. Notando o desconcertamento de Gillson, pareceu controlar-se e comentou:
"É fantástico que você tenha dito isto. Já tive essa ideia por muito tempo, e muitas vezes estive a ponto de encontrar uma maneira de prová-la. Sabe, há uma maneira de enxergar o mundo sem utilizar os olhos, mesmo que você esteja na verdade com eles abertos – mas não só isto pode ser perigoso, como requer duas pessoas. Poderia ser interessante nós dois tentarmos... ah, mas é aqui que eu desço.”
Haviam estacionado diante de um flat. Por trás das árvores que gotejavam, um caminho de concreto corria até onde janelas pintadas de amarelo e preto amontoavam-se umas sobre as outras. "O meu é no térreo,” comentou Fisher ao sair e pagar o motorista.
Gillson abaixou a janela. "Espere só um minuto,” disse. "Você estava falando sério – o que foi que disse sobre ver as coisas como elas realmente são?”
"Está interessado?” Fisher abaixou-se e olhou para dentro do táxi. "Lembre-se que eu falei que poderia ser perigoso.”
"Não me importo,” respondeu Gillson, abrindo a porta e saindo. Fez sinal para que o motorista fosse embora, e somente quando estavam já observando as luzes traseiras diminuirem com a distância é que ele lembrou que havia deixado seu livro no assento.
Embora as árvores ainda estivessem gotejando, a chuva havia parado. Os dois homens andaram pelo caminho de concreto, e o vento turbilhionou por volta deles, parecendo soprar das estrelas geladas. Kevin Gillson sentiu alívio quando fecharam as portas de vidro por trás dele e entraram em um hall decorado com papel de parede florido. As escadas levavam para outros flats, mas Fisher virou-se para uma porta à esquerda, de azulejos de vidro.
Gillson na verdade não esperava nada específico, mas o que viu além daquela porta de azulejos de vidro o fascinou. Era uma sala de estar normal, com mobília contemporânea, papel de parede moderno, uma lareira elétrica; mas alguns dos objetos não eram de forma alguma normais. Reproduções de pinturas de Bosch, Clark Ashton Smith e Dali estabeleciam a atmosfera anormal, que era aumentada pelos livros esotéricos ocupando uma estante em um canto. Mas estes, pelo menos, poderiam ser encontrados em outros lugares; algumas das coisas ali, ele jamais havia visto antes. Não conseguia definir o objeto em formato de ovo que estava na mesa no centro do aposento, emitindo um estranho e intermitente assobio. Nem reconheceu os contornos de algo que estava num pedestal num canto, coberto por uma lona.
"Talvez eu devesse tê-lo avisado,” interrompeu Fisher. "Acho que não é exatamente o que você esperaria a partir da fachada do prédio. De qualquer forma, sente aí, e vou pegar um pouco de café enquanto explico alguns detalhes. E vamos ligar o gravador – quero que ele esteja funcionando mais tarde, de modo que eu possa registrar nosso experimento.”
Foi até a cozinha, e Gillson ouviu o bater de panelas. Por sobre o barulho, Fisher falava:
"Eu fui um garoto bem peculiar, sabe – bastante sensível, mas dotado de um estranho sangue frio. Depois de ter visto um gárgula uma vez na igreja, tive sonhos nos quais ele me perseguia, mas uma vez quando um cachorro foi atropelado diante de nossa casa, os vizinhos todos comentaram o quão avidamente eu observava a cena. Meus pais uma vez chamaram um médico, e ele disse que eu era 'muito mórbido, e que deveria ser mantido longe de qualquer coisa que pudesse me afetar.” Como se eles pudessem!
"Bem, foi na escola de gramática que eu tive essa ideia – na verdade foi na aula de física. Estávamos estudando a estrutura do olho, certo dia, e eu comecei a pensar no caso. Quanto mais olhava para o diagrama das retinas e humores e lentes, mais ficava convencido de que o que enxergamos através desse sistema complicado deve estar distorcido, de alguma forma. É muito simplista dizer que o que se forma na retina é apenas uma imagem, não mais distorcida do que as que enxergamos num telescópio. Eu quase me levantei e disse ao professor o que pensava, mas sabia que se o fizesse, eles ririam de mim.
"Não pensei mais no caso até chegar na Universidade. Então comecei a conversar com um dos alunos, um dia – seu nome era Taylor – e antes que eu percebesse, havia me unido a um culto de bruxos. Não aqueles decadentes pelados do seu livro, mas aqueles que realmente sabem como canalisar o poder de elementais. Eu poderia dizer bastante sobre o que realizamos juntos, mas algumas das coisas levariam tempo demais para serem explicadas. Hoje eu quero tentar o experimento, mas talvez depois eu conte a você sobre as coisas que eu sei. Coisas como a parte do cérebro que não é utilizada e como ela pode de fato ser posta em uso, e sobre o que está enterrado num cemitério não muito longe daqui...
"De qualquer forma, depois de algum tempo após minha iniciação, o culto foi exposto, e todos foram expulsos. Tive sorte, já que não estava na reunião que foi delatada, então permaneci na Universidade. Melhor ainda, alguns deles haviam decidido abandonar totalmente a feitiçaria; e eu persuadi um deles a me doar todos os seus livros. Entre eles estava o Revelações de Glaaki, e foi nele que li sobre o processo que quero tentar esta noite. Li sobre isto.”
Fischer entrou na sala de estar, carregando uma bandeja onde estavam duas canecas e um bule de café. Cruzou então a sala até onde estava o objeto velado num pedastal, e enquanto Gillson se aproximava, puxou a lona.
Kevin Gillson pôde apenas olhar fixamente. O objeto não era amorfo, mas era tão complexo, que os olhos não conseguiam reconhecer forma alguma descritível. Haviam hemisférios e metal reluzente, acoplados por longos bastões de plástico. Os bastões eram de uma cor cinzenta e plana, de modo que ele não conseguia perceber quais deles estavam mamis próximos que os outros; mesclavam-se numa massa plana, a partir da qual saiam como protusões os cilindros individuais. Ao observar a coisa, teve uma curiosa sensação de que olhos brilhavam por entre os bastões; mas de onde quer que fitasse o construto, enxergava apenas os espaços entre eles. A parte mais estranha era que ele sentia como se aquela fosse a imagem de algo vivo – algo de uma dimensão onde tal exemplo de geometria anormal poderia viver. Ao virar-se para falar com Fisher, enxergou, pelo canto do olho, que a coisa havia se expandido e ocupado quase toda aquela metade da sala – mas quando girou de volta, a imagem, é claro, estava do mesmo tamanho que antes. Pelo menos ele pensava que sim – mas Gillson não tinha nem mesmo certeza de quão alta ela estava antes.
"Está tendo ilusões de tamanho, então?” Fisher notou seu embaraço. "Isto porque é apenas uma extensão tridimensional da coisa real – é claro que, em sua própria dimensão, não se parece dessa forma.”
"Mas o que é isso?” perguntou Gillson com impaciência.
"Isso,” disse Fisher, "é uma imagem de Daoloth – o Dilacerador dos Véus.
Ele foi até a mesa onde havia colocado a bandeja. Servindo o café, passou a caneca para Gillson, que então comentou:
"Você terá de me explicar sobre isso já já, mas antes, pensei em algo enquanto você estava na cozinha. Eu o teria mencionado antes, mas é que não gosto de conversar através de aposentos diferentes. É bastante conveniente dizermos que o que enxergamos está distorcido – digamos que esta mesa não é retangular, nem plana. Mas quando eu a toco, sinto uma superfície retangular e plana – como você explica isto?”
"Uma simples alucinação tátil,” explicou Fisher. "E é por isto que eu disse que poderia ser perigoso. Sabe, você não está sentindo de fato nenhuma superfície plana e retangular – mas já que a enxerga dessa forma, sua mente o ilude de modo a pensar que está sentindo a contraparte de sua visão. Apenas de vez em quando, eu penso – por que a mente iria estabelecer esse sistema de ilusão? Será que se nos enxergarmos como nós realmente somos, seria demais para nós?”
"Olha só, você quer enxergar as coisas sem distorção,” disse Gillson, "e eu também. Não tente me fazer voltar atrás agora, pelo amor de Deus, logo agora que você conseguiu me deixar interessado. Você chamou isso de Daoloth – o que significa?”
"Bem, vou ter que sair pelo que pode parecer tangencial”, Fisher pediu desculpas. "Você estava observando aquela coisa em formato de ovo ali, repetidas vezes, desde que entrou – é que leu sobre elas no Necronomicon. Lembra-se daquelas referências aos cristalizadores de Sonho? Este é um deles – o aparelho que nos projeta enquanto estamos adormecidos, para outras dimensões. Leva um certo tempo pra nos acostumarmos a ele, mas com o passar de alguns anos, tenho conseguido entrar em quase todas as dimensões, e a um nível tão alto quanto a vigésima-quinta dimensão. Se pelo menos eu pudesse transmitir em palavras as sensações desse último plano, onde é o espaço que existe, e a matéria não pode ter existência! Não me pergunte onde achei o cristalizador, por falar nisso – até que eu tenha certeza de que seu guardião não me seguirá, jamais devo falar disso. Mas deixemos isso de lado.
"Depois de ter lido nas Revelações de Glaaki sobre como posso provar esta minha ideia, determinei ver por mim mesmo o que eu deveria invocar. Aconteceu por tentativa e erro; mas finalmente, certa noite, encontrei-me materializado num lugar que nunca estive antes. Haviam paredes e colunas tão altas que eu não conseguia enxergar onde elas terminavam, e no meio do chão havia uma grande fissura que corria de parede a parede, irregular, como se resultado de um terremoto. Conforme eu a observava, os contornos da rachadura pareciam dissolver-se e ficar imprecisos, e algo dela saiu. Eu disse a você que a imagem parece bastante diferente em sua própria dimensão – bem, eu vi sua contraparte viva, e você vai entender se eu não tiver de descrevê-la. Ficou ali vibrando por um momento, e então começou a expandir. Teria me engolido em poucos minutos, mas eu não esperei por isso. Corri por entre as colunas.
"Não fui muito longe, até que um grupo de homens ficou diante de mim. Estavam vestidos em robes e capuzes metálicos, e carregavam pequenas imagens daquilo que eu havia visto, de modo que percebi que eram seus sacerdotes. O primeiro perguntou-me a razão pela qual eu havia entrado em seu mundo, e eu expliquei que esperava poder convocar o auxílio de Daoloth para enxergar além dos véus. Eles olharam um para o outro, e então um deles me passou a imagem que estava carregando. "Você irá precisar disso,” ele me falou. "Vai servir como uma ligação, e você não vai conseguir encontrar nenhum igual em seu mundo.” E então a cena inteira desapareceu, e achei-me deitado na cama – mas estava segurando essa imagem que você vê aí.”
"Mas você não chegou a me dizer – ” implorou Gillson.
"Já vou chegar nesse ponto. Você sabe agora como eu consegui essa imagem. Porém, está imaginando o que isso tem a ver com o experimento de hoje, e o que diabos seria Daoloth?




"Daoloth é uma divindade – uma divindade alienígena. Foi venerado na Atlântida, onde era o deus dos astrólogos. Presumo que foi lá que seu modo de veneração foi estabelecido: ele jamais deve ser visto, pois o olho tenta seguir as convoluções de sua forma, e isto provoca insanidade. É por isto que não deve haver luz quando ele é invocado – quando o chamarmos, mais tarde, teremos de apagar todas as luzes. Mesmo aquilo ali é uma réplica deliberadamente imprecisa da entidade; tem de ser assim.
"Quanto a razão pela qual invocaremos Daoloth, em Yuggoth e Tond, ele é conhecido como o Dilacerador dos Véus, e este título tem bastante significado. Lá, seus sacerdotes podem enxergar não só o passado e o futuro – eles podem enxergar como os objetos prolongam-se até a última dimensão. É por isto que se o invocarmos e o contermos no Pentáculo dos Planos, poderemos ter o auxílio dele para eliminar a distorção. E isto é tudo que posso explicar agora. Já são quase 2:30 e devemos estar prontos às 2:45, que é quando as aberturas entrarão em alinhamento... É claro, se você acha que não está pronto, por favor me diga agora. Mas não quero ter que arrumar tudo pra nada.”
"Eu vou ficar,” disse-lhe Gillson, mas ao olhar de relance para a imagem de Daoloth, sentiu-se um tanto hesitante.
"Tudo bem. Me ajude aqui, sim?”
Fisher abriu um armário próximo à estante. Gillson enxergou várias caixas grandes, colocadas em ordem definida e marcadas com símbolos pintados. Ele ergueu uma enquanto Fisher puxava a que estava logo abaixo. Ao fechar a porta, Gillson ouviu o outro levantando a tampa; e quando virou-se Fisher já estava colocando o conteúdo da caixa pelo chão. Um conjunto de superfícies de plástico veio à luz, sendo organizadas como um pentagrama semissólido; e foram seguidas por duas velas negras de formatos vagamente obscenos, um bastão de metal com um ícone na ponta, e uma caveira. Essa caveira perturbou Gillson; haviam buracos no crânio para segurar as velas, mas mesmo assim ele podia perceber, a partir de seu formato e falta de boca, que aquilo não havia sido humano.
Fisher começou então a arranjar os objetos. Primeiro empurrou as cadeiras e mesas para junto das paredes, e então jogou o pentagrama no centro do chão. Conforme colocava a caveira, agora segurando as velas, dentro do pentagrama, e as acendia, Gillson perguntou por trás dele:
"Pensei que você disse que não poderíamos ter luzes – e quanto a essas aí?”
"Não se preocupe – elas não irão iluminar nada,” explicou Fisher. "Quando Daoloth vier, ele sugará a luz delas – isto torna o alinhamento das aberturas mais fácil.”
Ao se levantar para desligar a luz no interruptor, fez um comentário por sobre o ombro de Gillson: "Ele vai aparecer no pentáculo, e sua materialização sólida e tridimensional permanecerá lá o tempo todo. Porém, ele vai varrer a sala com prolongamentos bidimensionais, e você poderá senti-las – mas não fique com medo. Veja só, ele vai tirar um pouco de sangue de nós dois.” Sua mão ficou mais próxima do interruptor.
"O quê? Você nunca disse nada sobre – ”
"Está tudo bem,” assegurou Fisher. "Ele tira sangue de qualquer um que o chamar; parece que é sua forma de testar intenções. Mas não será muito. Ele tirará mais de mim, porque sou o sacerdote – você só está aqui para que eu possa utilizar sua vitalidade para abrir o caminho para ele. Certamente, não irá doer.” E sem esperar mais protestos, desligou as luzes.
Havia um pouco de luz do símbolo em neon na garagem fora da janela, mas muito pouco passava pelas cortinas. As velas negras eram também muito fracas, e Gillson não conseguia enxergar nada além do pentagrama, a partir de onde estava perto da estante. Ficou estarrecido quando seu anfitrião bateu o bastão com o ícone na ponta e começou a gritar histericamente. "Uthgos plam'f Daoloth asgu'i – venha, Tu que varres os véus da visão para longe, e exibe as realidades além.” Houve muito mais que isso, mas Gillson não conseguiu prestar atenção a nada específico. Estava observando a névoa luminosa que apareceu, arqueando-se sobre ele e Fisher, para entrar no crânio deformado da caveira no pentáculo. No fim do encantamento, havia uma aura definida entre os dois homens e a caveira. Ele observava tudo com fascínio; foi então que Fisher parou de falar.
Por um minuto, nada aconteceu. Então os arcos de névoa sumiram, e havia então apenas as luzes das velas; mas estas brilhavam mais forte agora, e uma aura nebulosa as cercava. Conforme Gillson as observava, as chamas gêmeas começaram a diminuir, e de súbito desapareceram. Por um segundo, uma chama negra pareceu substituí-las – uma espécie de fogo negativo – mas tão rapidamente quanto apareceu, foi embora. No mesmo instante, Gillson percebeu que ele e Fisher não estavam mais sozinhos naquela sala.
Ouviu um farfalhar vindo do pentáculo, e sentiu que uma forma movimentava-se ali. Rapidamente, sentiu-se cercado. Coisas secas, impossivelmente leves, tocavam seu rosto, e algo escorregou por entre seus lábios. Nenhum ponto em seu corpo foi tocado por tempo suficiente para que pudesse agarrar aquilo que nele sentia; passaram tão céleres que ele lembrava-se, em vez de sentir, aquelas antenas que o tocavam. Mas quando o farfalhar retornou para o centro do do aposento, havia um gosto salgado em sua boca – e ele sabia que a antena que havia entrado em sua boca havia drenado seu sangue.
Por sobre o farfalhar, declamou Fisher: "Agora que Tu já provaste nosso sangue, Tu sabes nossas intenções. O Pentagrama dos Planos Te conterá até que Tu realizes nosso desejo – dilacera o véu da crença e mostra as realidades da existência desvelada. Tu nos mostrará, assim libertado-Te?”
O farfalhar aumentou. Gillson desejou que o ritual terminasse; seus olhos estavam começando a acostumar-se com o brilho do símbolo da garagem, e naquele momento começava quase a ver algo tênue se contorcendo na escuridão dentro da figura.
Subitamente, soou uma irrupção discordante de metal raspando contra metal, e o edifício inteiro tremeu. O som passou a zumbido, e depois ao silêncio, e Gillson sabia que o ocupante do pentáculo havia ido embora. O aposento ainda estava escuro; as luzes das velas não haviam retornado, e sua visão ainda não conseguia penetrar as trevas.
Fisher disse de onde estava, perto da porta: "Bem, ele se foi – e aquela figura está construída de forma que ele não poderia voltar sem fazer o que lhe foi pedido. De modo que quando eu ligar a luz, você enxergará tudo como realmente é. Mas se mudou de ideia, encontrará uma máscara para os olhos em cima da estante. Coloque-as e não conseguirá enxergar nada – isto é, se você não quiser continuar com o experimento. Então eu vou ligar a luz e poderei enxergar tudo que eu quiser, e então usarei o ícone para anular o efeito. Você prefere fazer as coisas desta forma?”
"Eu vim até este ponto com você,” lembrou Gillson, "e não foi pra ficar apavorado no último momento.”
"Quer enxergar agora? Você sabe que, uma vez que tenha visto, as ilusões táteis não vão mais funcionar direito – tem certeza de que vai querer viver com isso?”
"Pelo amor de Deus, sim!” a resposta de Gillson era quase inaudível.
"Tudo bem. Vou ligar a luz – agora!”


Quando a polícia chegou nos flats da Rua Tudor, para onde haviam sido chamadas por um morador histérico, encontraram uma cena que horrorizou até o menos suscetível deles. O morador, tendo voltado de uma festa tardia, havia enxergado apenas o cadáver de Kevin Gillson jogado no tapete, esfaqueado até a morte. Os policiais não ficaram nauseados com isto, porém, mas pelo que encontraram no jardim, sob a janela da frente, que estava quebrada: Henry Fisher havia morrido ali, com sua garganta dilacerada pelos estilhaços de vidro da janela.
Parecia tudo muito extraordinário, e o gravador não ajudava muito. Tudo que foi dito de fato era que algum tipo de ritual de magia negra fora praticado naquela noite, e eles deduziram que Gillson havia sido morto com a ponta afiada do ícone do bastão. O resto da fita estava cheia de referências esotéricas, e no final, a coisa ficava totalmente incoerente. A parte após o clique do interruptor da luz na gravação era o que deixava os ouvintes mais estupefatos; até então ninguém encontrou qualquer razão para que Fisher tenha assassinado seu hóspede.
Quando detetives curiosos rodam a fita, a voz de Fisher sempre soa assim: "Aqui – mas que diabos, não posso enxergar direito depois de tanta escuridão. E agora, o que...
"Meu Deus, onde é que eu estou? E onde é que está você? Gillson, onde está você – onde está você? Não, sai daqui – Gillson, pelo amor de Deus, mexa seu braço. Eu posso enxergar algo se movendo em tudo isso – mas Deus, esse não pode ser você – por que é que eu não consigo escutá-lo – mas isso é suficiente pra deixar qualquer um surdo... Agora chegue perto – meu Deus, essa coisa é você – está se expandindo – contraindo – a geleia primal, formando, mudando – e a cor... Sai daqui! Não chegue mais perto – você tá maluco? Se ousar me tocar, vai provar a ponta deste ícone – pode parecer molhado e esponjoso e olhe – que horrível – mas eu farei por você! Não me toque – eu não posso suportar sentir isso – "
E então vem um grito e o barulho de uma queda. Um surto de gritos insanos é cortado pelo som de vidros quebrando, e um terrível ruído de alguém sufocando logo é reduzido ao nada.
É incrível pensar que dois homens foram aparentemente iludidos a pensar que haviam mudado fisicamente; mas este é o caso, pois os dois cadáveres estavam intactos, exceto pelas mutilações. Nada neste caso pode ser explicado quanto à insanidade dos dois homens. Pelo menos, há uma anomalia; mas o chefe da polícia de Camside está certo de que é apenas uma falha na fita que faz com que o gravador emita, em certos pontos, um som alto e seco, um farfalhar.

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