quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O DESAFIO DO ALÉM - Final

História Colaborativa escrita por C. L. MooreA. MerrittH. P. LovecraftRobert E. Howard e Frank Belknap Long
Traduzida por Arthur Ferreira Jr.'.




Quarta e Quinta Partes:

[Robert E. Howard]




Deste último intervalo sem sentidos, emergiu com total entendimento da situação. Sua mente estava aprisionada no corpo de um aterrador nativo de um planeta alienígena, enquanto, em algum lugar no outro lado do universo, seu próprio corpo hospedava a personalidade do monstro.

Lutou contra um horror irracional. Julgando a partir de uma perspectiva cósmica, por quê sua metamorfose deveria horrificá-lo? A vida e a consciência eram as únicas realidades no universo. A forma não era importante. Seu corpo atual era horrendo apenas de acordo com os padrões terrestres. O medo e a repulsa se afogaram na empolgação da titânica aventura.

O que era seu corpo anterior senão um manto, que de todo modo seria descartado após a morte? Ele não tinha ilusões sentimentais quanto à vida da qual havia sido exilado. E o que esta o dera, senão esforços, pobreza, frustrações e repressões contínuas? Se aquela nova vida diante dele não oferecia mais, pelo menos não oferecia menos. E a intuição o dizia que ofereceria mais – muito mais.

Com a honestidade possível apenas quando a vida é despida até seu fundamento mais cru, percebeu que só lembrava com prazer das delícias físicas de sua vida anterior. Porém, há muito havia exaurido as possibilidades físicas contidas naquele corpo terráqueo. A Terra não mais oferecia emoções novas. Mas, na posse daquele novo corpo alienígena, sentia a promessa de alegrias estranhas e exóticas.

Uma exultação bastarda crescia nele. Era um homem sem mundo, livre de todas as convenções e inibições da Terra, ou deste estranho planeta, livre de todas as restrições artificiais do universo. Ele era uma divindade! Divertia-se macabramente, quando pensava em seu próprio corpo, movendo-se pela sociedade e transações da Terra, enquanto isso um monstro alienígena observava das janelas que eram os olhos de George Campbell, fixos nas pessoas que dele fugiriam, se soubessem a verdade.

Que ele andasse pela terra matando e destruindo como pudesse, a Terra e suas espécies não mais significavam coisa alguma para George Campbell. Ali, ele seria mais uma de bilhões de não-entidades, congeladas por um amontoado acúmulo de convenções, leis e costumes, fadadas a viver e morrer em seus sórdidos nichos. Porém, num único movimento às cegas, ele havia colocado-se além do lugar-comum. Aquilo não era morte, era renascimento – o nascimento de uma mentalidade madura, com uma nova liberdade que fazia pouco da catividade física em Yekub.

Ele começou. Yekub! Era o nome daquele planeta, mas como ele sabia? Então soube, já que sabia o nome daquele corpo que ocupava – Tothe. A memória, **grooved nas profundezas do cérebro de Tothe, estava remexendo-se dentro dele – sombras do conhecimento que tinha Tothe. Gravado lá no fundo dos tecidos físicos do cérebro, falavam tênues, como instintos implantados, na mente de George Campbell; e sua consciência humana os arrebatou e traduziu, para mostrar-lhe não só a segurança e a liberdade, mas o poder que sua alma, reduzida aos mais primitivos impulsos, ansiava. Não como um escravo ele habitaria em Yekub, mas como um rei! Da mesma forma que os antigos bárbaros haviam se sentado nos tronos de impérios arrogantes.



Pela primeira vez, voltou sua atenção ao que o cercava. Ele ainda continuava sobre a coisa parecida com um sofá, no meio daquele aposento fantástico, e o homem centípede diante dele, segurando o objeto de metal polido, e batendo seus espículos do pescoço. Era dessa forma que falava com ele, sabia Campbell, e o que ele dizia podia ser suavemente compreendido, através dos processos mentais implantados de Tothe, da mesma forma que ele sabia que a criatura era Yukth, senhor supremo da ciência.

Mas Campbell não deu atenção a isso, pois havia decidido seu plano desesperado, um plano tão alienígena aos costumes de Yekub, que estava além da compreensão de Yukth, e o pegou totalmente de surpresa. Yukth, como Campbell, viu a lasca de mental de ponta afiada numa mesa próxima, mas para Yukth, era apenas um implemento científico. Nem mesmo sabia que poderia ser usada como uma arma. A mente terrena de Campbell suplementava o conhecimento e a ação que se seguiram, impelindo o corpo de Tothe a fazer movimentos que nenhum homem de Yekub jamais havia feito antes.

Campbell agarrou a lasca afiada e golpeou, rasgando para cima, com selvageria. Yukth ergueu-se e cambaleou, suas entranhas espalhando-se pelo chão. Num só instante, Campbell atingia a porta. Sua velocidade era impressionante, exultante, a primeira realização da promessa de novas sensações físicas.

Conforme corria, totalmente guiado pelo conhecimento instintivo implantado nos reflexos físicos de Tothe, como se estivesse alojando uma consciência separada em suas pernas, o corpo físico de Tothe o estava levando por uma rota que havia sido passada dez mil vezes, quando animado pela mente do alienígena.



Descendo por um corredor espiralado ele correu, subiu uma escada distorcida, passou por uma porta entalhada, e os mesmos instintos que o haviam trazido aqui disseram-no que ele havia encontrado o que procurava. Estava num aposento circular, de teto de domo, que luzia azulado e lívido. Uma bizarra estrutura se erguia no meio do chão da cor do arco-íris, pavimento por pavimento, cada um de uma cor vívida e separada. O último pavimento era um cone púrpura, de cujo ápice uma névoa azul e enfumaçada subia para uma esfera que se erguia em pleno ar – uma esfera que luzia como marfim translúcido.
Aquilo, diziam a Campbell as memórias mais profundamente inculcadas de Tothe, era o deus de Yekub, embora a razão pela qual o povo de Yekub o temia e venerava havia sido esquecida há um milhão de anos. Um verme-sacerdote se impunha entre ele e o altar que nenhuma mão de carne jamais havia tocado. O fato de que ele podia ser tocado era uma blasfêmia que jamais ocorrera a um homem de Yekub. O verme-sacerdote ficou paralisado de horror, até que a lasca de Campbell arrancasse sua vida.

Com suas patas de centípede, Campbell escalou o altar pavimentado, ignorando suas súbitas vibrações, ignorando a mudança que ocorria na esfera flutuante, ignorando a fumaça que agora ondulava em nuvens azuis. Ele estava embriagado com a sensação de poder. Ele não temia as superstições de Yekub não mais do que temia as da Terra. Com aquele globo nas mãos, ele seria o rei de Yekub. Os homens-verme não ousariam negar nada a ele, enquanto ele mantinha seu deus como refém. Ele estendeu a mão para a bola – que agora não mais tinha tons de marfim, e sim era vermelha como sangue …

[Frank Belknap Long]




Saindo da barraca para a pálida noite de agosto, andava o corpo de George Campbell. Movia-se de um jeito lento e vacilante entre os corpos das árvores enormes, caminhando por uma trilha da floresta polvilhada de folhas de pinheiros, de doce odor. O ar estava picante e frio. O céu era uma taça invertida de prata congelada, manchada de poeira estelar, e ao norte longínquo, a aurora boreal derramava fluxos de fogo.

A cabeça do homem que caminhava estava derrubada de modo horrendo, virada para o lado. Dos cantos de sua boca frouxa, escorriam fios espessos de espuma cor de âmbar, que se agitava na brisa noturna. Ele andou ereto antes, como um homem deveria andar, mas gradualmente, conforme se distanciava da barraca, sua postura se alterava. Seu torso começava, quase imperceptivelmente, a inclinar-se, e seus membros, a encolher.

Num mundo muito distante, no espaço exterior, a criatura centípede que era George Campbell segurou em seu seio um deus cujos adornos eram vermelhos como sangue, e correu, tremendo como um inseto, por um salão de cores do arco-íris, passando depois por portais massivos, direto pra a brilho forte dos sóis alienígenas.

Rondando entre as árvores da Terra, numa atitude que sugeria o tropegar bisonho de um licantropo, o corpo de George Campbell cumpria um destino sem mente. Dedos longos, de garras nas pontas, puxavam folhas odoríferas do tapete que cobria a floresta, conforme movia-se em direção a uma ampla expansão de água cintilante.

No mundo distante e extragalático do povo verme, George Campbell movia-se entre blocos ciclópicos de cantaria negra, descendo por longas avenidas, florida de samambaias, erguendo nas patas o deus vermelho e globular.



Foi ouvido um grosseiro berro de animal num arbusto próximo ao lago cintilante da Terra, onde a mente de uma criatura verme habitava um corpo onde o instinto imperava. Os dentes humanos se enfiaram pela suave pelagem animal, rasgaram a negra carne animal. Uma pequena raposa prateada enfiou suas presas num pulso humano e peludo, buscando uma frenética retaliação, e agitava-se aterrorizada com o derramar do sangue. Lentamente, o corpo de George Campbell levantou-se, sua boca suja de sangue fresco. Com os membros superiores gingando de modo esquisito, moveu-se na direção das águas do lago.

Conforme a criatura mutável que era George Campbell rastejava entre os blocos negros de pedra, milhares de formas de vermes prostravam-se na poeira cintilante diante dele. Um poder divino parecia emanar de seu corpo trêmulo, enquanto ele movia-se num ritmo lento e ondulante, em direção ao trono de um império espiritual que transcendia as soberanias da Terra.

Um caçador, rondando esgotado pela densa floresta na Terra, próximo à barraca onde a criatura verme havia habitado o corpo de George Campbell, veio às águas cintilantes do lago, e discerniu algo escuro, flutuando ali. Havia estado perdido na floresta a noite toda, e a fadiga o envolvia como um manto de chumbo sob a luz pálida da manhã.

Porém, aquela forma era um desafio que ele não podia ignorar. Movendo-se até a borda da água, ajoelhou-se no barro mole, e esticou-se até a coisa que flutuava. Lentamente, a puxou até a praia.

Muito distante no espaço experior, a criatura verme empunhando o deus vermelho e brilhante ascendeu a um trono que brlhava como a constelação Cassiopeia, sob uma abóboda alienígena de hipersóis. A poderosa divindade que ele erguia energizava seu corpo de verme, consumindo no fogo branco de uma espiritualidade supramundana, tudo que lhe restava de animal.

Na Terra, o caçador contemplou, num horror impronunciável, a face escurecida e peluda do homem afogado. Era uma face bestial, de feições repulsivamente antropoides, e de sua boca deformada e contorcida, escorria um icor negro.



“Aquele que buscou seu corpo pelos abismos do Tempo ocupará um corpo que não lhe obedecerá,” disse o deus vermelho. “Nenhuma cria de Yekub pode controlar o corpo de um humano.”

“Por toda a Terra, as criaturas vivas rasgam umas às outras, e banqueteiam-se, numa indizível crueldade, de seus próximos e parentes. Nenhuma mente de verme pode controlar um corpo humano bestial, quando este anseia a selvageria. Apenas mentes humanas, instintivamente condicionadas, no decorrer de dezenas de milhares de gerações, podem governar os instintos humanos. Seu corpo irá destruir a si mesmo, na Terra, buscando o sangue de seus parentes animais, buscando a água fria onde podia rolar com prazer. Buscará a inevitável destruição, pois o instinto da morte é mais poderoso nele que os instintos da vida, e destruir-se-á, buscando retornar ao barro de onde proveio.”

Assim falou o globuloso e vermelho deus de Yekub, vindo de um segmento distante do continuum do espaço-tempo, dirigindo-se a George Campbell, enquanto este último, com todos os desejos humanos purgados, sentava-se no trono e governou então um império de vermes, mais sábia, gentil e benevolamente que os homens da Terra podem algum dia governar um império de homens.






terça-feira, 18 de outubro de 2011

O DESAFIO DO ALÉM - Parte III


História Colaborativa escrita por C. L. MooreA. MerrittH. P. LovecraftRobert E. Howard e Frank Belknap Long
Traduzida por Arthur Ferreira Jr.'.



Terceira Parte: 




[H. P. Lovecraft]

Conforme a luz dos sóis safiras, borrada pela névoa, tornava-se cada vez mais intensa, os contornos do globo à frente desfaziam-se e dissolviam-se num caos efervescente. Sua palidez, movimentos e música mesclavam-se com a névoa que engolfava – alvejando-a de uma cor de aço esbranquiçado, pondo-a em movimento ondulante. E também os sóis safiras, derretiam imperceptivelmente, espalhando-se pelo infinito acinzentado daquela pulsação amorfa.

Enquanto isso, a sensação de movimento para frente e para fora tornou-se intolerável, incrível e cosmicamente rápido. Todos os padrões de velocidade conhecidos na Terra pareciam lentos diante daquilo, e Campbell soube que um voo daqueles, na realidade física, significaria morte instantânea para um ser humano. Mesmo naquele estado – naquela estranha e infernal hipnose ou pesadelo – a impressão quase-visual de ricochete quase paralisava sua mente. Embora não houvessem pontos verdadeiros de referência no vácuo cinzento e pulsante, ele sabia que começava a aproximar-se, e a superar, a própria velocidade da luz. Finalmente, sua consciência se apagou – e uma misericordiosa escuridão engoliu a tudo.

Tudo muito súbito, e em meio à mais impenetrável escuridão, pensamentos e ideias mais uma vez vieram a George Campbell. Quantos momentos – ou anos – ou eternidades haviam se passado desde seu voo pelo grande vácuo, não conseguiria estimar. Ele só sabia que parecia estar descansado e sem dor alguma. De fato, a ausência de toda sensação física era a qualidade definidora de sua condição. Fazia com que mesmo a negritude parece menos solidamente negra – sugerindo que ele era agora uma inteligência incorpórea, num estado além dos sentidos físicos, e não um ser corpóreo com sentidos privados de seus objetos de percepção costumeiros. Ele conseguia pensar com agudeza e rapidez – quase sobrenaturais – embora ainda não pudesse apreender de fato a sua situação.

Meio por instinto, percebeu que não estava em sua própria barraca. De fato, poderia ter acordado lá, de um pesadelo, para um mundo igualmente negro, no escuro; mas ele sabia que não se tratava disso. Não havia nenhum colchonete debaixo de si – ele não tinha mãos para sentir os cobertores e lona e lanterna que deveriam estar ao seu redor – não havia sensação alguma de frio no ar – nenhuma porta através da qual pudesse vislumbrar a pálida noite lá fora … algo estava errado, assustadoramente errado.

Ele tentou relembrar o passado, e pensou no cubo fluorescente que o havia hipnotizado – naquele momento, e no que havia se seguido. Ele sabia que sua mente havia se movido para além, e não conseguia retroceder. Naquele último momento, houve um medo, um pânico chocante – um medo subconsciente, além até mesmo daquele causado pela sensação do voo demoníaco. Vinha de algum vago vislumbre, ou lembrança remota – do quê exatamente, não podia dizer de imediato. Em algum lugar, lá no fundo de suas mente, ele pareceu encontrar uma qualidade nebulosamente familiar no cubo – e essa familiaridade vinha repleta de terror. Agora, ele tentava lembrar-se que familiaridade e terror eram esses.

Pouco a pouco, a coisa ficou óbvia. Um dia – há muito tempo, em seu trabalho geológico – havia lido sobre algo como aquele cubo. Tinha a ver com aqueles discutíveis e perturbadores fragmentos de argila chamados de Tabuletas de Eltdown, escavados de uma camada pré-carbonífera, no sul da Inglaterra, trinta anos antes. Seu formato e marcas eram tão estranhos, que uns poucos eruditos clamaram ser artificiais, e fizeram conjeturas loucas sobre elas e suas origens. Vinham claramente de uma era em que nenhum ser humano poderia ter existido no globo – porém seus contornos e figuras eram terrivelmente enigmáticos. Foi assim que conseguiram sua fama.



Não foi, porém, nos escritos de algum cientista sóbrio, que Campbell vira referência a um cristal que envolvia um disco. A fonte era de reputação bem mais fraca, e infinitamente mais vívida. Por volta de 1912, um clérigo de Sussex, profundamente erudito e de inclinações ocultistas – o Reverendo Arthur Brooke Winters-Hall – havia professado identificar nas marcas nas Tabuletas de Eltdown alguns dos assim-chamados “hieróglifos pré-humanos” persistentemente adorados e esotericamente legados por certos círculos místicos, e publicou, às suas próprias custas, o que ele dizia ser uma “tradução” das primais e estarrecedoras “inscrições” – uma “tradução” ainda citada com muita frequência e seriedade por escritores ocultistas. Nesta “tradução” – uma brochura surpreendentemente longa, em vista do limitado número de “tabuletas” existentes – ocorria uma narrativa, supostamente de autoria pré-humana, contendo a dita referência, agora assustadora.

Dizia a história que habitou num mundo – e eventualmente, em incontáveis outros mundos – do espaço exterior, uma poderosa ordem de seres vermiformes, cujas realizações, e cujo controle da natureza superavam qualquer coisa dentro dos limites da imaginação terrestre. Eles haviam dominado a arte da viagem interestelar logo no começo de sua carreira, e haviam populado todos os planetas habitáveis em sua própria galáxia – matando as raças que neles encontravam.

Além dos limites de sua própria galáxia – que não era a nossa – não podiam navegar em pessoa; porém, em sua busca pelo conhecimento de todo o espaço e todo o tempo, descobriram um meio de ultrapassar certos golfos transgaláticos, usando suas mentes. Inventaram certos objetos peculiares – cubos estranhamente energizados, feitos de um cristal curioso, contendo talismãs hipnóticos, e encerrados em envelopes esféricos resistentes ao espaço, consistindo de uma substância desconhecida – objetos que podiam ser forçosamente expelidos além dos limites de seu universo, e que reagiriam somente à atração da matéria sólida e fria.

Esses cubos, dos quais uns poucos necessariamente aterrissariam em vários mundos habitados, nos universos exteriores, formavam as pontes etéricas necessárias para a comunicação mental. A fricção atmosférica incinerava o envelope protetor, deixando o cubo exposto e sujeito à descoberta por mentes inteligentes do mundo onde havia caído. Por sua própria natureza, o cubo atrairia e chamaria a atenção. Isto, em conjunto com a ação da luz, seria suficiente para pôr suas propriedades especiais em funcionamento.

A mente que notasse o cubo seria atraída pelo poder do disco, e seria enviado num rastro de energia obscura para o lugar de onde o disco havia vindo – o remoto mundo dos exploradores espaciais vermiformes, além de estupendos abismos galáticos. Recebida em uma das máquinas a qual o cubo estava sintonizado, a mente capturada permaneceria nela suspensa, sem corpo ou sentidos, até que fosse examinada pela raça dominante. Então, através de um processo obscuro de intercâmbio, seria esvaziada de todo conteúdo. A mente do investigador agora ocuparia a estranha máquina, enquanto a mente cativa ocuparia o corpo vermiforme do interrogador. E então, em outro intercâmbio, a mente do interrogador saltaria pelo espaço sem fim, chegando ao corpo vazio e inconsciente da mente cativa, no mundo transgalático – animando o receptáculo alienígena como melhor conseguisse, e explorando o mundo alienígena, disfarçado de um de seus habitantes.


Quando isto era feito com o propósito exploratório, o aventureiro usaria o cubo e seu disco para realizar o retorno – e às vezes, a mente cativa seria restaurada com segurança a seu próprio mundo remoto. Nem sempre, porém, a raça dominante era tão gentil. Às vezes, quando uma raça potencialmente importante, capaz de viagem espacial, era encontrada, o povo vermiforme empregaria o cubo para capturar e aniquilar mentes aos milhares, e extirparia a raça, por razões diplomáticas – usando as mentes exploradas como agentes da destruição.

Em outros casos, seções do povo vermiforme ocupavam permanentemente um planeta transgalático – destruindo as mentes cativas e executando os habitantes remanescentes, preparando-se para invadir corpos desconhecidos. Porém, nunca a civilização progenitora podia ser totalmente duplicada; já que a novo planeta poderia não conter todos os materiais necessários para as artes da raça vermiforme. Por exemplo, os cubos só podiam ser feitos no planeta natal.

Apenas uns poucos dos inumeráveis cubos enviados chegavam a aterrissar e funcionar num mundo habitado – já que não existia mira naquele processo além da visão e do conhecimento. Apenas três, dizia a história, haviam aterrissado em mundos populados de nosso próprio universo. Um desses havia atingido um planeta próximo aos limites da galáxia, há dois trilhões de anos, enquanto outro havia se alojado, três bilhões de anos atrás, num mundo próximo do centro da galáxia. O terceiro – e o único conhecido por ter invadido o sistema solar – havia alcançado nossa própria terra, há 150 milhões de anos.

Era com esse tipo de coisa que a “tradução” do dr. Winters-Hall lidava, em sua maior parte. Quando o cubo atingiu a Terra, escreveu ele, a espécie terráquea governante era uma enorme raça de formato cônico, que superava todas as outras que vieram antes, em mentalidade e realizações. Esta raça era tão avançada, que na verdade enviava mentes adiante, tanto no espaço quanto no tempo, para explorar o cosmos, reconhecendo portanto algo do que havia acontecido, quando o cubo caíra do céu e certos indivíduos sofreram mudanças mentais, após contemplar o interior do objeto.

Percebendo que os indivíduos modificados representavam mentes invasoras, os líderes da raça ordenaram sua destruição – mesmo ao custo das mentes deslocadas, exiladas no espaço alienígena. Eles já tinham experiências com transições ainda mais bizarras. Quando, através da exploração mental do espaço e do tempo, formaram ideia vaga do que era o cubo, ocultaram cuidadosamente a coisa da luz e da visão dos seres, guardando-o como uma ameaça. Não quiseram destruir uma coisa tão rica de possibilidades experimentais posteriores. Aqui e ali, algum aventureiro audaz e inescrupuloso ganharia acesso furtivo ao cubo e provaria de seus perigosos poderes, apesar das consequências – porém todos os casos eram descobertos e resolvidos de maneira drástica e segura.


Desta interação maligna, o único resultado ruim foi que a raça vermiforme no espaço exterior aprendeu, de seus novos exilados, o que havia acontecido com seus exploradores na terra, e concebeu um violento ódio do planeta e todas as suas formas de vida. Teriam eliminado toda a sua população se fosse possível, e de fato, enviaram cubos adicionais pelo espaço, na insana esperança de que, por acidente, atingisse lugares desguardados – mas esse acidente nunca chegou a acontecer.

Os seres terrestres de formato cônico mantiveram o único cubo existente num santuário especial, como relíquia e base de exploração, até que, depois de eras, o cubo se perdeu em meio ao caos da guerra e da destruição da grande cidade polar onde era guardado. Quando, cinquenta milhões de anos mais tarde, os seres enviaram suas mentes para mais adiante no tempo, para o futuro infinito, para evitar um perigo inominado vindo do subterrâneo, o destino do sinistro cubo vindo do espaço ficou sendo desconhecido.

De acordo com o devotado ocultista, era o que diziam as Tabuletas de Eltdown. O que agora tornava seu relato ainda mais obscuramente aterrorizante a Campbell, era a precisão e as minudências com que o cubo alienígena era descrito. Cada detalhe determinado – dimensões, consistência, disco central hieroglifado, efeitos hipnóticos. Como estava pensando no caso, repetidamente, nas trevas de sua estranha situação, começou a imaginar se, toda a sua experiência com o cubo de cristal – de fato, a própria existência desse cubo – não era um pesadelo, trazido por alguma aberrante memória subconsciente daquela leitura extravagante e charlatã. Mesmo assim, se era o caso, o pesadelo ainda estava em andamento; já que sua presente situação, aparentemente incorpórea, não tinha nada de normal.

Campbell não conseguia estimar o tempo consumido nesse relembrar e refletir. Tudo em seu estado era tão irreal, que as dimensões e medidas normais tornavam-se sem sentido. Parecia que passara uma eternidade, mas talvez não muito houvesse passado, antes que a súbita interrupção ocorresse. O que aconteceu foi tão estranho e inexplicável quanto o negrume em que estava mergulhado até então. Era uma sensação – da mente, e não do corpo – e num ímpeto, Campbell sentiu seus pensamentos atraídos ou sugados, além de seu controle, de modo tumultuoso e caótico.

As memórias surgiam, irresponsáveis e irrelevantes. Tudo que ele sabia – todo o seu histórico pessoal, tradições, experiências, erudição, sonhos, ideias e inspirações – fluíram abruta e simultaneamente, numa velocidade e abundância entontecedoras, que logo o deixou inapto a registrar qualquer conceito separado. A totalidade de seus conteúdos mentais tornou-se uma avalanche, uma cascata, um vórtex. Era tão horrível e vertiginoso quanto seu voo hipnótico pelo espaço, quando o cubo de cristal o puxara. Por fim, aquilo drenou-lhe a consciência, e trouxe o alívio do esquecimento.


Outro branco imensurável – e então um lento gotejar de sensações. Naquele momento, eram sensações físicas, e não mentais. Uma luz safira, e um trovejar baixo de um som distante. Impressões táteis – podia perceber que estava deitado, ao comprido, sobre algo, embora houvesse uma estranheza perturbadora no que sentia quanto à sua postura. Não conseguia reconciliar a pressão da superfície que o apoiava, com seu próprio contorno – ou mesmo com os contornos da forma humana. Tentou mover seus braços, mas não achou reação definida a essa tentativa. Ao invés disso, houveram contorções nervosas mínimas e inefetivas, por toda a área que parecia marcar seu corpo.

Tentou abrir seus olhos direito, mas achou-se incapaz de controlar o mecanismo destes. A luz safira vinha de modo difuso, nebuloso, e não podia ser voluntariamente focada sob definição. Porém, gradualmente, imagens visuais começaram a escorrer, de maneira curiosa e indecisiva. Os limites e qualidades da visão não eram aqueles com que estava acostumado, mas podia correlacionar de jeito vago com as sensações que havia conhecido como visão. Conforme esta sensação adquiria algum grau de estabilidade, Campbell percebeu que ainda devia estar preso ao tal pesadelo.

Parecia estar num aposento de considerável extensão – de altura média, mas com uma área bem maior, proporcionalmente falando. Em cada lado – e ele, ao que parece, podia enxergar todos os quatro lados ao mesmo tempo – viam-se fendas elevadas e estreitas, que pareciam servir como portas e janelas ao mesmo tempo. Haviam mesas ou pedestais individuais, mas nenhuma mobília de natureza e proporções normais. Pelas fendas, fluíam jorros de luz safira, e além destas, podiam ser enxergados, de modo nebuloso, os lados e telhados de prédios fantásticos, similares a cubos aglomerados. Nas paredes – nos painéis verticais entre as fendas – estavam estranhas marcas de caráter estranhamente inquietante. Passou-se algum tempo antes que Campbell compreendesse o porquê dessa inquietação tamanha – ele as havia visto antes, em exemplares repetidos, eram exatamente como os hieróglifos do disco dentro do cubo de cristal.



O verdadeiro elemento digno do pesadelo em que se encontrava, porém, era algo maior que isto. Começou com a coisa viva que começava a entrar através de uma das fendas, avançando deliberadamente na direção dele, trazendo uma caixa de metal, de proporções bizarras e superfícies vítreas, espelhadas. Pois esta coisa não era nada humano – nada terráqueo – não era nada próximo dos mitos e sonhos da humanidade. Era um gigantesco verme ou centípede de cor cinza clara, tão grande como um homem, e de comprimento duas vezes maior, exibindo uma cabeça discoide, aparentemente sem olhos, orlada de cílios cercando um orifício central púrpura. Ela deslizava com auxílio de seus pares traseiros de patas, com a parte anterior levantada na vertical – as patas, ou pelo menos dois pares delas, servindo como braços. Ao longo de sua coluna espinhal, havia uma curiosa crista púrpura, e uma cauda abrindo como um leque, composta de uma membrana cinzenta, terminava aquele corpanzil grotesco. Havia um anel de cravos vermelhos e flexíveis ao redor de seu pescoço, e das contorções destes, vinham sons de cliques fanhosos, formando ritmos métricos e deliberados.

Aqui, de fato, o pesadelo alienígena chegava a seu auge – era uma fantasia caprichosa em seu ápice. Porém mesmo esta visão de delírio não fora o que fez com que George Campbell caísse uma terceira vez na inconsciência. Foi preciso mais uma coisa – aquele toque final e insuportável. Conforme o verme inominado avançava com sua caixa cintilante, o homem reclinado vislumbrou naquela superfície espelhada, aquilo que deveria ser seu próprio corpo. Ainda assim – mesmo verificando suas sensações desordenadas e incomuns – não era seu próprio corpo que via refletido no metal polido. Ao invés disso, via o corpanzil repugnante, pálido e cinzento de um dos grandes centípedes.





CONTINUA ...

E na próxima postagem, Robert E. Howard (Conan) e Frank Belknap Long (Os Cães de Tíndalos) finalizam O Desafio do Além!

O original em inglês pode ser visto aqui:
http://en.wikisource.org/wiki/The_Challenge_from_Beyond


A primeira e segunda partes do conto, em português, podem ser encontradas nesta postagem:
http://dominiopublicano.blogspot.com/2011/10/o-desafio-do-alem-partes-i-e-ii.html

sábado, 15 de outubro de 2011

O DESAFIO DO ALÉM - Partes I e II


História Colaborativa escrita por C. L. MooreA. MerrittH. P. LovecraftRobert E. Howard e Frank Belknap Long
Traduzida por Arthur Ferreira Jr.'.




Primeira e Segunda Partes


[C.L. Moore]


George Campbell abriu seus olhos turvos de sono à escuridão, e achou-se fitando para além da abertura da barraca, contemplando a pálida noite de agosto por alguns minutos, antes de acordar o suficiente para chegar a imaginar o que o havia despertado. Havia algo no ar claro e penetrante daquelas florestas canadenses que era tão potente como soporífero, como qualquer droga do gênero. Campbell ficou quieto por um momento, afundando lentamente de volta às deliciosas fronteiras do sono, consciente de uma exaustão exótica, uma incomum sensação de músculos esgotados, e agora relaxados ao ponto da mais perfeita imobilidade. Afinal de contas, aqueles eram os momentos mais prazerosos das férias – após o trabalho, descansar na clara e doce noite da floresta.


  Luxuriosamente, conforme sua mente afundava de volta ao esquecimento, ele assegurou-se mais uma vez que três longos meses de liberdade estavam à frente – liberdade de cidades e monotonia, liberdade da pedagogia e da Universidade e de estudantes sem qualquer rudimento de interesse na geologia com a qual ele ganhava seu pão diário, onde dava lições que caíam em ouvidos surdos. Liberdade de – 
 
     A sonolência deliciosa desfez-se num colapso abrupto, sobre ele. Em algum lugar lá fora, o som de latas arranhando latas rasgou sua paz. George Campbell sentou-se, tremendo, e procurou a lanterna. Então riu e deixou a lanterna de lado, forçando seus olhos pela escuridão da meia-noite lá fora, onde entre as latas que desabavam de sua pilha de suprimentos, um pequeno, anônimo e escuro animal noturno rondava. Ele esticou um braço e catou entre as pedras perto da abertura da barraca, alguma coisa que jogar no bicho. Seus dedos se fecharam sobre uma grande pedra, e ele puxou sua mão para a atirar.


  Mas nunca chegou a atirar. Era uma coisa tão estranha que ele havia achado no escuro.  Quadrada, de cristal polido, obviamente artificial, de cantos rombudos. A estranheza da superfície rochosa parecia tão notável a seus dedos, que ele buscou mais uma vez a lanterna, e focalizou o facho sobre a coisa que empunhava.

  Toda e qualquer sonolência o abandonou quando ele viu o que havia pego ao tatear despreocupado. Era tão claro como pedra de cristal, aquele cubo tão liso e estranho. Sem dúvida, era quartzo, mas não em sua forma cristalizada hexagonal padrão. De alguma forma – ele não conseguia imaginar através de que método – o quartzo havia sido moldado no formato de um cubo perfeito, cerca de dez centímetros de largura em cada face gasta. Pois a coisa era incrivelmente gasta. O cristal duríssimo havia sido manuseado de tal modo que suas arestas quase haviam sumido, e a coisa começava a assumir os contornos de uma esfera. Eras e eras de desgaste, anos além de qualquer contagem, deveriam ter passado por aquela coisa estranha e límpida.

 
     Porém, o mais curioso de tudo era que aquele formato que ele mal podia vislumbrar, no âmago do cristal. Pois incrustado em seu centro, jazia um pequeno disco de uma substância pálida e inominada, mostrando caracteres gravados bem fundo em sua superfície protegida pelo quartzo. Caracteres em formato de calçadeira, vagamente reminiscentes da escrita cuneiforme.


George Campbell franziu a testa e debruçou-se mais de perto sobre este pequeno enigma em suas mãos, refletindo em vão sobre ele. Como uma coisa como essa poderia estar incrustada num cristal de rocha pura? Uma memória remota flutuou por sua mente, de lendas antigas que chamavam os cristais de quartzo de gelo congelado tão duramente que seria impossível derretê-lo de volta. Gelo – e caracteres cuneiformes – sim, esse tipo de escrita não se originara entre os sumérios, que desceram do norte, nos mais remotos inícios da história, para estabelecer-se no primitivo Vale Mesopotâmico? Então o bom senso retomou o controle sobre Campbell, fazendo-o rir. O quartzo, obviamente, fora formado nos primeiros períodos geológicos da Terra, quando não h avia nada senão calor e pedra em ebulição. O gelo não viria por dezenas de milhões de anos, depois desta coisa poder ter se formado.


E ainda assim – aquela escrita. Feita pelo homem, certamente, embora seus caracteres fossem desconhecidos, exceto por sua vaga ligação com formatos cuneiformes. Ou num mundo paleozoico, poderiam ter existido coisas com uma linguagem escrita, que poderiam ter gravado essas cunhas enigmáticas sobre o disco envolvido pelo quartzo, que ele agora tinha nas mãos? Ou – poderia uma coisa como essa ter caído como meteoro, vinda do espaço, sobre a rocha em formação de um mundo ainda derretido? Poderia – 


Conteve-se com firmeza, podia sentir suas orelhas pegando fogo com a luridez de sua própria imaginação. O silêncio e a solidão e a coisa esquisita em suas mãos estavam conspirando para brincar com seu senso comum. Ele deu de ombros e pôs o cristal na borda de seu colchão de palha, desligando a luz. Talvez a manhã e uma cabeça descansada trariam a ele a resposta às perguntas que agora pareciam insolúveis.


Mas, o sono não veio com tanta facilidade. No mínimo, porque lhe parecera que, assim que ele desligara a luz, o pequeno cubo reluzira por um momento, como se emitisse luz própria sobre a escuridão que o cercava. Ou talvez ele houvesse se enganado quanto a isto. Talvez fossem apenas seus olhos ofuscados, que pareciam ter enxergado luz abandonar com relutância o cristal, brilhando nas profundezas enigmáticas daquela coisa, com uma persistência anômala.


Ele ficou ali, inquieto, por um bom tempo, repassando as perguntas sem resposta, uma a uma, em sua mente. Havia algo naquele cubo de cristal, vindo de um passado imensurável, talvez vindo da aurora da história, que constituía um desafio que não o deixaria dormir.






[A. Merritt]


Ficou ali, pareceu-lhe, por horas a fio. Fora a luz remanescente, a luminescência que parecia tão relutante em apagar, que manteve sua mente desperta. Era como se algo no coração do cubo houvesse acordado, espreguiçado e ficado subitamente alerta… e ciente da presença dele.


  Era pura fantasia, aquilo. Esticou-se impaciente e direcionou um facho de luz sobre o relógio. Perto da uma da madrugada; mais três horas, e viria o nascer do sol. O facho se deslocou e focalizou-se no cubo de cristal, quente. Ele o manteve ali por minutos, desviava o olhar, e então continuava a contemplá-lo.


Não havia mais dúvidas. Conforme seus olhos acostumavam-se à escuridão, ele percebia que o estranho cristal estava brilhando, com minúsculas e fugitivas luzes, lá no fundo dele mesmo, como fios relampejantes de cor de safira. Ficavam lá no centro, e pareciam provir do disco pálido, com suas marcas perturbadoras. E o próprio disco começava a crescer… as marcas, começavam a mudar de forma… o cubo crescia… seria uma ilusão tecida pelos minúsculos relâmpagos…


Ouviu um ruído. Era quase um fantasma de ruído, como espectros das cordas de uma harpa, dedilhados por mãos fantasmagóricas. Debruçou-se para mais perto. O ruído vinha do cubo…

De repente, guinchos no matagal, um borrão de corpos e um berro agonizante, como uma criança moribunda, rapidamente silenciada. Alguma pequena tragédia da natureza, de predadores e presas. Ele apareceu do lado de fora, para ver o que havia provocado aquilo, mas não conseguia enxergar nada. Mais uma vez desligou a lanterna, e olhou na direção da tenda. No chão, um pálido brilho azul. Era o cubo. Ele abaixou-se para pegá-lo; e então, obedecendo a algum aviso obscuro, retirou a mão.


Então mais uma vez, viu o brilho moribundo. Os minúsculos relâmpagos safira, precisos e reluzentes, voltando ao disco de onde se originavam. Nenhum som saía do cubo.


Sentou-se, observando a luminescência crescer e desaparecer, crescer e desaparecer, mas a cada ciclo, ficando mais tênue. Ocorreu-lhe que dois elementos eram necessários para produzir o fenômeno. O raio elétrico em si, e sua própria atenção fixa. Sua mente deveria viajar junto com o raio, fixar-se sobre o coração do cubo, fazer o pulsar desse coração acelerar, até que… até que, o quê?


Sentiu um calafrio no espírito, como se estivesse em contato com alguma coisa alienígena. Era alienígena, tinha certeza; não era desta Terra. Não da vida da Terra. Recuperou a compostura, pegou o cubo e levou-o para dentro da barraca. Não era nem quente, nem frio; exceto pelo peso, não dava sequer para sentir que o segurava. Colocou-o sobre a mesa, mantendo a tocha longe do cubo; então virou-se para a porta da barraca e a fechou.



Voltou à mesa, puxou a cadeira de acampamento, e focou o facho direto no cubo, focando-o o máximo que conseguia, sobre o coração do objeto. Enviou toda a sua vontade, toda a sua concentração, junto com o facho; focando vontade e visão sobre o disco, enviados junto com a luz.


Como se comandados, os relâmpagos safira entraram em ação. Espalhavam-se do disco para o corpo do cubo de cristal, e então retrocediam, banhando o disco e as marcas. Mais uma vez estas começavam a mudar, contorcendo-se, movimentando-se, avançando e retraindo naquele brilho azul. Não eram mais cuneiformes. Eram coisas… objetos.


Ouviu a música murmurante, as cordas da harpa dedilhada. Mais alto, mais alto ficou o som, e agora todo o corpo do cubo vibrava naquele ritmo. A superfície do cristal derretia, tornando-se nebulosa, como se formada por bruma de diamante. E o disco em si, estava crescendo… as formas contorcendo-se, dividindo e multiplicando, como se alguma porta houvesse se aberto, e por ela, pelotões de fantasmas invadissem. E quanto mais brilhantes as formas, mais brilhante ainda ficava a luz pulsante.


Ele sentiu um pânico repentino, tentou retomar o olhar e a vontade, derrubou a lanterna. O cubo já não tinha necessidade do raio de luz… e ele não conseguia virar-se… não conseguia virar-se? Mais que isso, sentia-se sugado para o disco, que agora tornava-se um globo, dentro do qual formas inomináveis dançavam ao ritmo de uma música que banhava o globo numa radiância sólida.


Não havia mais barraca alguma. Havia só uma vasta cortina de bruma cintilante, e atrás dela, brilhando, o globo… Sentiu-se puxado através da bruma, sugado por ela como se por um poderoso túnel de vento, direto para o globo.


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

DISTANCIAMENTO

Clark Ashton Smith
Tradução de Arthur Ferreira Jr.'.




Há dias em que toda a beleza do mundo é tênue e estranha; quando a luz do sol ao meu redor parece cair numa terra mais remota que os polos da lua. As rosas no jardim me surpreendem, como monstruosas orquídeas de cor desconhecida, que brotam nos planetas além de Aldebarã. E estou chocado com as folhas amarelas e púrpuras de Outubro, como se no véu de algum tremendo e horrendo mistério fosse quase levantado, por um momento. Em tais horas, ó coração do meu coração, sinto medo de tocar-te, evito tuas carícias, temendo que tu desapareças como se num sonho diante da aurora, ou que eu reconheça em ti um fantasma, o espectro daquela que morreu e foi esquecida milhares de anos atrás, numa terra distante onde o sol não mais reluz.



O LAGO NEGRO

Clark Ashton Smith
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.



Numa terra onde a bizarria e o mistério aliaram-se fortemente à desolação eterna, o lago se derramava desde uma data inencontrável de eras ancestrais, para preencher algum golfo insondável, lá muito abaixo, entre as sombras das montanhas vulcânicas, que não exibiam neve alguma. Nenhum olho, nem mesmo o olho do sol, quando contemplava verticalmente sobre o algo durante poucas horas ao redor do meio-dia, parecia conseguir adivinhar o que havia nas suas profundezas de escuridão tristonha e silêncio imperturbável. Por esta razão, senti um prazer tão singular em contemplar, com bastante frequência, o estranho lago. Sentado lá, nem sei por quanto tempo, em suas praias basálticas e geladas, onde cresciam apenas umas poucas orquídias rubras e carnosas, curvadas sobre as águas, como bocas ávidas e arreganhadas, eu vislumbrava conjeturas fantásticas e imaginações sombrias, dentro do sedutor mistério de seu golfo desconhecido e inexplorável.

Foi em tal hora da manhã, antes do sol haver ultrapassado o grosseiro e erodido limiar dos cumes, quando cheguei pela primeira vez, e desci pelas sombras que enchiam, como se fossem algum fluido mais sutil, a bacia vulcânica. Visto no fundo da tintura imóvel do ar e da luz fraca, o lago figurava-me uma poça sedimentada de escuridão.



Vislumbrando pela primeira vez, após a descida difícil e profunda, dentro de tão águas plúmbeas e opacas, conseguia perceber muito bem certos brilhos infimos e dispersos de prata, aparentemente muito abaixo da superfície. Era como se fosse o sinal de metal incrustado em alguma misteriosa elevação submersa, ou o reluzir de algum tesouro há muito naufragado. Cheguei mais perto, em minha avidez, e finalmente percebi que o que eu enxergara não passava do reflexo das estrelas, já que embora o dia estivesse se mostrando sobre as montanhas e planícies lá fora, as estrelas ainda eram visíveis nas profundezas e trevas daquele lugar tão sombrio.






Original em inglês em http://en.wikisource.org/wiki/The_Black_Lake

sábado, 1 de outubro de 2011

A VERDADE SOBRE O FALECIDO ARTHUR JERMYN E SUA FAMÍLIA


Do original
Facts Concerning the Late Arthur Jermyn and His Family


H. P. Lovecraft
Tradução: Arthur Ferreira Jr .'.





I
A vida é uma coisa horrenda, e do pano de fundo por trás do que sabemos dela, espreitam pistas demoníacas de verdades tais, que tornam a vida milhares de vezes mais horrenda. A ciência, já opressiva em suas revelações chocantes, talvez seja o exterminador definitivo de nossa espécie humana – se é que somos uma espécie separada – pois sua reserva de horrores nunca imaginados jamais poderia ter nascido de cérebros mortais, se fosse liberada sobre o mundo. Se soubéssemos o que somos, faríamos o que fez Sir Arthur Jermyn; e Arthur Jermyn untou-se em óleo uma noite, pondo fogo em sua roupa. Ninguém colocou os fragmentos incinerados numa urna, ou construiu um memorial em sua honra; pois certos documentos, e um certo objeto encaixotado foram encontrados, que fizeram os homens desejar o esquecimento. Alguns que o conheciam sequer admitem que ele tenha existido.


Arthur Jermyn saiu pela charneca e incendiou-se após ter visto o objeto encaixotado que veio da África. Foi este objeto, e não sua aparência pessoal peculiar, que o fez encerrar sua vida. Muitos teriam não gostado da vida, se possuíssem as feições peculiares de Arthur Jermyn, mas ele havia sido um poeta e erudito, e não se importava com isso. O aprendizado estava em seu sangue, pois seu bisavô, o baronete Sir Robert Jermyn, fora um antropólogo de renome, enquanto seu tetravô, Sir Wade Jermyn, foi um dos primeiros exploradores da região do Congo, escrevendo eruditamente sobre suas tribos, animais, e supostas antiguidades. De fato, o velho Sir Wade possuía um zelo intelectual que quase chegava ao grau de mania; suas conjecturas bizarras sobre uma civilização branca pré-histórica no Congo o trouxeram muito ridículo, quanto seu livro, Observações sobre Várias Partes da África, foi publicado. Em 1765, este explorador indômito foi colocado numa casa de loucos, em Huntingdon.


A loucura estava em todos os Jermyns, e as pessoas ficavam gratas com o fato de não haverem muitos deles. A linhagem não se ramificou, e Arthur era o último dela. Se ele não fosse o último, ninguém poderia dizer o que ele teria feito, quando o objeto apareceu. Os Jermyns nunca pareceram muito certos – algo estava faltando, embora Arthur fosse o pior deles, e os velhos retratos da família mostrassem rostos decentes, de antes da época de Sir Wade. Certamente, a loucura começou com Sir Wade, cujas histórias selvagens da África foram de um só golpe o deleite e o terror de seus poucos amigos. Ela se exibia em sua coleção de troféus e espécimes, que não eram do tipo que um homem normal acumularia e preservaria, e pareciam ainda mais chocantes diante da seclusão oriental em que mantinha sua esposa. Esta última, dizia ele, era filha de um comerciante português que ele havia conhecido na África; e ela não gostava dos costumes ingleses. Ela, com um filho nascido na África, o havia acompanhado de volta de sua segunda e mais longa viagem, e havia voltado com ele na terceira e última, jamais retornando à Inglaterra. Ninguém a havia visto de perto, nem mesmo os criados; pois a disposição dela era violenta e singular. Durante sua breve estadia na Casa Jermyn, ela ocupava uma ala remota, e era esperada apenas por seu marido. De fato, Sir Wade era bastante excêntrico em sua solicitude para com sua família; pois quando ela retornou à África, ele não permitiu que ninguém tomasse conta de seu jovem filho, exceto uma repulsiva negra da Guiné. Ao retornar, após a morte de Lady Jermyn, ele assumiu o cuidado completo do garoto.

Porém foi a conversa de Sir Wade, especialmente quando bêbado, que chegou a levar seus amigos a considerá-lo insano. Numa era racional como o século XVIII, era imprudente que um homem erudito falasse de vislumbres selvagens e cenas estranhas sob a lua do Congo; de muralhas gigantescas e pilares de uma cidade esquecida, em ruínas e com as trepadeiras a envolvendo, e de degraus de pedra silenciosos e úmidos, descendo interminavelmente até uma escuridão de criptas de tesouro abissais e catacumbas inconcebíveis. Era especialmente imprudente algaraviar sobre as coisas vivas que poderiam assombrar um tal lugar; sobre criaturas que viviam parte na selva, parte na cidade impiamente envelhecida – criaturas fabulosas, que mesmo um Plínio descreveria com ceticismo; coisas que teriam surgido depois que os grandes macacos tomaram a cidade moribunda, com suas muralhas e pilares, criptas e entalhes bizarros. Ainda assim, depois de ter voltado para casa pela última vez, Sir Wade falaria de tais assuntos com um entusiasmo fantástico de dar calafrios, principalmente depois do terceiro copo na Knight's Head; gabando-se do que havia encontrado na selva, e de como havia habitado as terríveis ruínas, conhecidas somente por ele. E finalmente, ele falava das coisas viventes, de tal maneira que foi levado à casa de loucos. Ele demonstrara pouco remorso quando confinado em seu aposento restrito em Huntingdon, pois sua mente se movia de modo curioso. Muito embora seu filho houvesse começado a deixar a infância, ele gostava cada vez menos de seu lar, até que por fim começasse a abominá-lo. A Knight's Head havia sido seu quartel-general, e quando ele fora confinado, expressou algum tipo vago de gratidão, como se houvesse sido protegido. Três anos mais tarde, estava morto.


O filho de Wade Jermyn, Philip, era pessoa altamente pitoresca. Apesar da forte parecença física com seu pai, sua aparência e conduta eram, em muitos particulares, tão grosseiras, que ele era universalmente evitado. Embora não tenha herdado a loucura que era temida por alguns, era densamente estúpido, e dado a breves períodos de violência incontrolável. Sua estrutura era pequena, mas intensamente poderosa, e de agilidade incrível. Doze anos se passaram, após ele ter recebido seu título, e ele casou com a filha de seu guarda-caça, pessoa dita de extração cigana, mas antes que seu filho nascesse, contratou-se num navio, como marinheiro comum, completando o desgosto geral que seus hábitos e matrimônio mal-falado principiaram. Depois do fim da guerra americana, ouviu-se dele falar, como um marinheiro num navio mercante do comércio africano, tendo uma certa reputação por proezas de força e escalada, mas finalmente desaparecera uma noite, quando seu navio descarregava na costa do Congo.


No filho de Sir Philip Jermyn, a peculiaridade familiar agora aceita assumia uma versão estranha e fatal. Alto e bastante belo, com um tipo de graça oriental exótica, apesar de certas estranhezas em termos de proporção, Robert Jermyn começou a vida como um erudito e investigador. Foi ele que primeiro estudou cientificamente a vasta coleção de relíquias que seu avô insano havia trazido da África, e quem fez com que o nome da família fosse tão celebrado na etnologia como na exploração. Em 1815, Sir Robert casou com uma filha do sétimo Visconde Brightholme, e foi subsequentemente abençoado com três filhos, sendo que o mais velho e o mais jovem jamais foram vistos publicamente, devido a deformidades de mente e corpo. Entristecido por essas infelicidades familiares, o cientista buscou o alívio no trabalho, e fez duas longas expedições ao interior da África. Em 1849 seu filho do meio, Nevil, pessoa singularmente repulsiva, que parecia combinar a antipatia de Philip Jerym com a altivez dos Brightholmes, fugiu com uma dançarina vulgar, mas foi perdoado ao retornar no ano seguinte. Retornou à Casa Jermyn viúvo, com um filho pequeno, Alfred, que um dia seria o pai de Arthur Jermyn.


Os amigos diziam que foi esta série de mágoas que afetaram a mente de Sir Robert Jermyn, mas ainda assim, talvez tenha sido um mero fragmento de folclore africano o que causou o desastre. O erudito, já ancião, estava coletando lendas das tribos Onga, que viviam perto do campo das explorações de seu avô, e das suas próprias, esperando de alguma forma corroborar as histórias selvagens de Sir Wade, que falavam de uma cidade perdida, povoada por estranhas criaturas híbridas. Uma certa consistência nos bizarros documentos de seu ancestral sugeria que a imaginação do louco poderia ter sido estimulada pelos mitos nativos. Em 19 de outubro de 1852, o explorador Samuel Seaton bateu na porta da Casa Jermyn, com um manuscrito de notas coletadas entre os Onga, acreditando que certas lendas de uma cidade cinzenta de macacos brancos, governada por um deus branco, poderia provar-se valiosa ao etnólogo. Em tal conversa, provavelmente Seaton provera muitos detalhes adicionais; cuja natureza jamais saberemos, já que uma série horrenda de tragédias subitamente eclodiu. Quando Sir Robert Jermyn emergiu de sua biblioteca, deixava para trás o cadáver estrangulado do explorador, e antes que pudesse ser detido, pôs fim à vida de todos os seus três filhos; os dois que nunca foram vistos publicamente, e o filho que havia antes fugido. Nevil Jermyn morreu na defesa bem-sucedida de seu filho de dois anos, que aparentemente havia sido incluído nos planos assassinos e insanos do velho. O próprio Sir Robert, após tentativas repetidas de suicídio, e uma recusa teimosa de pronunciar palavras articuladas, morreu de apoplexia, no segundo ano de seu confinamento.


Sir Alfred Jermyn era um baronete antes de seu quarto aniversário, mas seus gostos nunca casaram com seu título. Aos vinte anos, juntara-se a uma banda de músicos de salão, e aos trinta e seis, deixou sua esposa e filho, para viajar com um circo itinerante americano. Seu fim foi revoltante. Entre os animais na exibição em que viajava, havia um enorme gorila, de cor mais clara que o normal; uma fera surpreendentemente afável, de muita popularidade entre os performáticos. Alfred Jermyn era singularmente fascinado por este gorila, e em muitas ocasiões os dois se olhavam por longos períodos, através das barras da jaula. Por fim, Jermyn pediu permissão, e esta foi concedida, de treinar o animal, empolgando audiências e amigos performáticos com seu sucesso. Numa manhã em Chicago, quando o gorila e Alfred Jermyn estavam ensaiando uma luta de boxe excessivamente esperta, o animal pregou-lhe um soco com uma força mais que normal, ferindo tanto o corpo quanto a dignidade do treinador amador. O que aconteceu depois não é algo que os membros do “Maior Espetáculo da Terra” gostam de comentar. Eles não esperavam ouvir Sir Alfred Jermyn emitir um grito estridente e inumano, ou vê-lo agarrar seu desengonçado antagonista com ambas as mãos, derrubá-lo no chão da jaula, e morder ferozmente sua garganta peluda. O gorila foi pego de surpresa, mas não por muito tempo, pois antes que qualquer coisa pudesse ser feita pelo treinador regular, o corpo que um dia pertencera a um baronete foi deixado além de qualquer reconhecimento.






II


Arthur Jermyn era o filho de Sir Alfred Jermyn e de uma cantora de salão de origem desconhecida. Quando o marido e pai abandonara a família, sua mãe levou a criança à Casa Jermyn; onde não havia ninguém lá que objetasse à presença dela. Ela não deixava de ter noções do qual deveria ser a dignidade de um nobre, e providenciou para que seu filho recebesse a melhor educação que o dinheiro limitado poderia prover. Os recursos familiares eram agora tristemente parcos, e a Casa Jermyn havia decaído num desleixo lamentável, mas o jovem Arthur amava o velho edifício e tudo que este continha. Não era como os outros Jermyn que haviam vivido, pois era um poeta e sonhador. Algumas das famílias da vizinhança, que ouviram histórias da esposa portuguesa do velho Sir Wade Jermyn, declararam que o sangue latino desta deveria estar se exibindo; mas a maioria das pessoas apenas desdenhava a sensibilidade de Arthur à beleza, atribuindo-a à sua mãe cantora de salão, que era socialmente ignorada. A delicadeza poética de Arthur Jeremyn foi ainda mais notável, devido a sua aparência pessoal rude. A maioria dos Jermyns havia possuído um semblante sutilmente estranho e repelente, mas o caso de Arthur era muito chamativo. Era difícil dizer com que ele se parecia, mas sua expressão, seu ângulo facial, e o comprimento de seus braços causavam um frêmito de repulsa naqueles que o encontravam pela primeira vez.


Era a mente de Arthur Jermyn o que aliviava seu aspecto. Inteligente e erudito, recebeu as maiores honras em Oxford, e parecia disposto a redimir a fama intelectual de sua família. Embora de temperamento poético, em vez de científico, planejava continuar a obra de seus antepassados, de etnologia e antiguidades africanas, utilizando a verdadeiramente maravilhosa, embora estranha, coleção de Sir Wade. Com sua mente fantasiosa, muitas vezes ele pensava na civilização pré-histórica na qual o explorador louco tão implicitamente cria, e tecia conto após conto sobre a silenciosa cidade na selva, mencionada nas notas e parágrafos mais agitados do falecido Sir Wade. Quanto às declarações nebulosas de uma raça insuspeita e sem nome de híbridos selváticos, ele sentia uma peculiar sensação de terror e atração misturados, especulando sobre a base provável de tal fantasia, e buscando obter uma luz entre os dados mais recentes, coletados por seu tetravô e por Samuel Seaton entre os Ongas.


Em 1911, depois da morte de sua mãe, Sir Arthur Jermyn ficou determinado a seguir suas investigações até as últimas consequências. Vendendo uma porção de sua propriedade para obter o dinheiro necessário, preparou uma expedição e navegou até o Congo. Conseguindo com as autoridades belgas um par de guias, passou um ano no país dos Ongas e Kahn, encontrando dados além de suas maiores expectativas. Entre os Kaliris, havia um chefe envelhecido, chamado Mwanu, que possuía não só uma memória altamente potente, como um grau singular de inteligência e interesse nas antigas lendas. Este ancião confirmou cada conto que Jermyn havia ouvido, adicionando a eles sua própria história da cidade de pedra e dos macacos brancos, que a ele havia sido contada.


De acordo com Mwanu, a grande cidade e as criaturas híbridas não mais existiam, tendo sido aniquilados pelos belicosos N'bangus, muitos anos atrás. Esta tribo, após destruir a maioria dos edifícios e matado os seres vivos, levara consigo a deusa empalhada que fora alvo de sua busca; a deusa-macaco branca, que os estranhos seres adoravam, e que pela tradição do Congo, seria a forma de alguém que reinara como princesa entre tais seres. Exatamente o que teriam sido as brancas criaturas macacoides, Mwanu não tinha ideia, mas pensava que eram os construtores da cidade em ruínas. Jermyn não poderia formar conjectura alguma, mas durante o questionamento prolongado, obtivera uma lenda bastante pitoresca da deusa empalhada.


A princesa-macaco, dizia-se, tornara-se a consorte de um grande deus branco, que vieram do Oeste. Por muito tempo, eles reinaram juntos sobre a cidade, mas quando tiveram um filho, todos os três partiram. Mais tarde, o deus e a princesa retornaram, e com a morte da princesa, seu divino marido mumificara o corpo, e o encerrara numa vasta casa de pedra, onde era adorado. Então partiu sozinho. A lenda aqui parece apresentar três variantes. De acordo com uma história, nada mais acontecera, exceto que a deusa empalhada tornara-se um símbolo de supremacia para qualquer tribo que a possuísse. Por esta razão os N'bangus a haviam tomado. Uma segunda história conta o retorno do deus, e sua morte aos pés de sua esposa tida como relíquia. Uma terceira conta o retorno do filho, já homem – ou macaco, ou deus, a depender do caso – ainda inconsciente de sua identidade. Certamente os imaginativos negros haviam exagerado o máximo, a partir dos eventos que poderiam estar por trás da extravagante lenda.


Da realidade da cidade selvática descrita pelo velho Sir Wade, Arthur Jermyn não podia ter mais dúvidas; e foi com pouca surpresa que, no começo de 1912, encontrou o que dela restava. Seu tamanho deve ter sido exagerado pelos relatos, mas as pedras restantes provavam que não se tratava de uma mera aldeia de negros. Infelizmente, nenhum entalhe pôde ser encontrado, e o pequeno tamanho da expedição impedia operações de limpeza da única passagem que parecia descer até o sistema de criptas mencionado por Sir Wade. O destino dos macacos brancos e da deusa empalhada foi debatido com todos os chefes nativos da região, mas aconteceu que um europeu estava destinado a completar os dados oferecidos por Mwanu. M. Verhaeren, agente belga num posto de comércio do Congo, acreditava que podia não só localizar, como obter a deusa empalhada, da qual havia ouvido falar vagamente; isto porque os antes poderosos N'bangus eram agora os servos submissos do governo do Rei Albert, e com pouca persuasão poderiam ser convencidos a abrir mão da grotesca divindade que haviam carregado. Quando Jermyn navegou de volta à Inglaterra, portanto, foi com a exultante probabilidade de que dentro de poucos meses receberia uma relíquia etnológica sem preço, confirmando as mais selvagens das narrativas de seu tetravô –o que equivalia a dizer, as mais selvagens que já ouvira na vida. Os compatriotas próximo a Casa Jermyn talvez houvessem ouvido histórias ainda mais selvagens, da boca de antepassados que haviam ouvido Sir Wade nas mesas do Knight's Head.


Arthur Jermyn esperou com muita paciência pela caixa a ser enviada por M. Verhaeren, enquanto isso estudando com cada vez mais diligência os manuscritos deixados por seu ancestral insano. Ele começou a sentir-se cada vez mais próximo a Sir Wade, e buscava relíquias da vida pessoal deste último na Inglaterra, bem como de suas explorações africanas. Os registros orais da misteriosa e reclusa esposa eram numerosos, mas não havia relíquia tangível remanescente de sua presença na Casa Jermyn. Arthur Jermyn começou a imaginar que circunstância havia causado ou permitido tal afastamento, e decidiu que a insanidade do marido deveria ser a causa primária. Diziam que sua tetravó, lembrava ele, era a filha de um comerciante português na vivia na África. Sem dúvida, sua herança prática e conhecimento superficial do Continente Negro a fizeram contradizer as histórias do interior contadas por Sir Wade, coisa que tal homem não poderia perdoar. Ela havia morrido na África, talvez arrastada até lá por um marido determinado a provar o que havia contado. Mas conforme Jermyn entrava nessas reflexões, não podia deixar de sorrir da futilidade, um século e meio após a morte de ambos seus progenitores estranhos.


Em junho de 1913, chegou uma carta de M. Verhaeren, contando da descoberta da deusa empalhada. O belga declarou ser um objeto bastante extraordinário; objeto bem além do poder de um leigo de classificar. Se era humano ou símio, apenas um cientista poderia avaliar, e o processo de avaliação seria grandemente obstaculado por sua condição imperfeita. O tempo e o clima do Congo não são gentis com múmias; especialmente quando sua preparação é tão amadora como parecia ter sido o caso. Ao redor do pescoço da criatura, fora encontrado um grande colar dourado, exibindo um medalhão vazio, no qual haviam desenhos heráldicos; sem dúvida, lembrança de algum viajante infeliz, roubada pelos N'bangus, e colocada no pescoço da deusa, como amuleto. Ao comentar sobre os contornos do rosto da múmia, M. Verhaeren sugerira uma comparação divertida; ou na verdade, expressara uma dúvida bem-humorada sobre quem lembraria a múmia, diante de seu correspondente, mas o belga tinha interesses científicos suficientes para não desperdiçar muitas palavras com leviandades. A deusa empalhada, escrevera ele, chegaria devidamente empacotada em cerca de um mês após o recebimento da carta.


O objeto encaixotado foi enviado à Casa Jermyn na tarde de 3 de agosto, 1913, sendo levada de imediato à grande câmara que guardava a coleção de espécimes africanos, como disposta por Sir Robert e Arthur. O que decorreu daí pode ser melhor inferido a partir das histórias dos criados, e das coisas e documentos mais tarde examinados. Das várias histórias, a do envelhecido Soames, mordomo da família, é a mais ampla e coerente. De acordo com este homem confiável, Sir Arthur Jermyn mandou a todos para fora do aposento, antes de abrir a caixa, embora o som instantâneo do martelo e do formão mostrasse que ele não se demorou em começar a operação. Não se ouviu nada por algum tempo; por quanto tempo, Soames não pode estimar com precisão, embora certamente não fosse menos que um quarto de hora mais tarde que um horrível grito, indubitavelmente na voz de Jermyn, fosse ouvido. Logo depois, Jermyn surgia do aposento, correndo freneticamente na direção da frente da casa, como se perseguido por um horrendo inimigo. A expressão de seu rosto, um rosto já desagradável o suficiente quando em repouso, estava além de qualquer descrição. Quando próximo da porta dianteira, ele pareceu pensar em algo, e desistiu de sua fuga, desaparecendo finalmente ao descer a escada até o porão. Os criados ficaram totalmente atônitos, e observavam do começo da escadaria, mas seu mestre não voltava. Um cheiro de óleo foi tudo que subiu das regiões abaixo. Após o pôr-do-sol, ouviu-se um rangido na porta levando do porão para o pátio; e um garoto que cuidava dos cavalos enxergou Arthur Jermyn, brilhante da cabeça aos pés com óleo a lhe escorrer, empestado desse fluido, espreitar furtivamente e sumir na charneca escura que cercava a casa. E então, numa exaltação de supremo horror, todos viram seu final. Uma centelha fulgiu na charneca, ergueu-se a chama, e um pilar de fogo humano alcançou os céus. A casa Jermyn não mais existia.


A razão pela qual os fragmentos queimados de Arthur Jermyn não foram coletados e enterrados está no que foi descoberto depois, principalmente a coisa na caixa. A deusa empalhada compunha uma visagem nauseabunda, encarquilhada e corroída, mas era claramente um macaco branco mumificado, de alguma espécie desconhecida, menos peluda que qualquer variedade registrada, e também infinitamente mais próxima da humanidade – próxima de modo a chocar qualquer um. A descrição detalhada seria bastante desagradável, mas dois detalhes salientes devem ser contados, pois se adequam revoltosamente a certas notas das expedições africanas de Sir Wade Jermyn, e às lendas congolesas do deus branco e da princesa-macaco. Os dois detalhes em questão são os seguintes: o brasão no medalhão dourado, em volta do pescoço da criatura, era o brasão dos Jermyn, e a sugestão jocosa de M. Verhaeren sobre uma certa parecença com o rosto murcho se aplicava, com vívido, repulsivo, e antinatural horror, com ninguém outro senão o sensível Arthur Jermyn, tetraneto de Sir Wade Jermyn e de uma esposa desconhecida. Os membros do Real Instituto Antropológico queimaram a coisa, e jogaram o medalhão num poço, e alguns deles sequer chegam a admitir que Arthur Jermyn tenha jamais existido.