sábado, 15 de outubro de 2011

O DESAFIO DO ALÉM - Partes I e II


História Colaborativa escrita por C. L. MooreA. MerrittH. P. LovecraftRobert E. Howard e Frank Belknap Long
Traduzida por Arthur Ferreira Jr.'.




Primeira e Segunda Partes


[C.L. Moore]


George Campbell abriu seus olhos turvos de sono à escuridão, e achou-se fitando para além da abertura da barraca, contemplando a pálida noite de agosto por alguns minutos, antes de acordar o suficiente para chegar a imaginar o que o havia despertado. Havia algo no ar claro e penetrante daquelas florestas canadenses que era tão potente como soporífero, como qualquer droga do gênero. Campbell ficou quieto por um momento, afundando lentamente de volta às deliciosas fronteiras do sono, consciente de uma exaustão exótica, uma incomum sensação de músculos esgotados, e agora relaxados ao ponto da mais perfeita imobilidade. Afinal de contas, aqueles eram os momentos mais prazerosos das férias – após o trabalho, descansar na clara e doce noite da floresta.


  Luxuriosamente, conforme sua mente afundava de volta ao esquecimento, ele assegurou-se mais uma vez que três longos meses de liberdade estavam à frente – liberdade de cidades e monotonia, liberdade da pedagogia e da Universidade e de estudantes sem qualquer rudimento de interesse na geologia com a qual ele ganhava seu pão diário, onde dava lições que caíam em ouvidos surdos. Liberdade de – 
 
     A sonolência deliciosa desfez-se num colapso abrupto, sobre ele. Em algum lugar lá fora, o som de latas arranhando latas rasgou sua paz. George Campbell sentou-se, tremendo, e procurou a lanterna. Então riu e deixou a lanterna de lado, forçando seus olhos pela escuridão da meia-noite lá fora, onde entre as latas que desabavam de sua pilha de suprimentos, um pequeno, anônimo e escuro animal noturno rondava. Ele esticou um braço e catou entre as pedras perto da abertura da barraca, alguma coisa que jogar no bicho. Seus dedos se fecharam sobre uma grande pedra, e ele puxou sua mão para a atirar.


  Mas nunca chegou a atirar. Era uma coisa tão estranha que ele havia achado no escuro.  Quadrada, de cristal polido, obviamente artificial, de cantos rombudos. A estranheza da superfície rochosa parecia tão notável a seus dedos, que ele buscou mais uma vez a lanterna, e focalizou o facho sobre a coisa que empunhava.

  Toda e qualquer sonolência o abandonou quando ele viu o que havia pego ao tatear despreocupado. Era tão claro como pedra de cristal, aquele cubo tão liso e estranho. Sem dúvida, era quartzo, mas não em sua forma cristalizada hexagonal padrão. De alguma forma – ele não conseguia imaginar através de que método – o quartzo havia sido moldado no formato de um cubo perfeito, cerca de dez centímetros de largura em cada face gasta. Pois a coisa era incrivelmente gasta. O cristal duríssimo havia sido manuseado de tal modo que suas arestas quase haviam sumido, e a coisa começava a assumir os contornos de uma esfera. Eras e eras de desgaste, anos além de qualquer contagem, deveriam ter passado por aquela coisa estranha e límpida.

 
     Porém, o mais curioso de tudo era que aquele formato que ele mal podia vislumbrar, no âmago do cristal. Pois incrustado em seu centro, jazia um pequeno disco de uma substância pálida e inominada, mostrando caracteres gravados bem fundo em sua superfície protegida pelo quartzo. Caracteres em formato de calçadeira, vagamente reminiscentes da escrita cuneiforme.


George Campbell franziu a testa e debruçou-se mais de perto sobre este pequeno enigma em suas mãos, refletindo em vão sobre ele. Como uma coisa como essa poderia estar incrustada num cristal de rocha pura? Uma memória remota flutuou por sua mente, de lendas antigas que chamavam os cristais de quartzo de gelo congelado tão duramente que seria impossível derretê-lo de volta. Gelo – e caracteres cuneiformes – sim, esse tipo de escrita não se originara entre os sumérios, que desceram do norte, nos mais remotos inícios da história, para estabelecer-se no primitivo Vale Mesopotâmico? Então o bom senso retomou o controle sobre Campbell, fazendo-o rir. O quartzo, obviamente, fora formado nos primeiros períodos geológicos da Terra, quando não h avia nada senão calor e pedra em ebulição. O gelo não viria por dezenas de milhões de anos, depois desta coisa poder ter se formado.


E ainda assim – aquela escrita. Feita pelo homem, certamente, embora seus caracteres fossem desconhecidos, exceto por sua vaga ligação com formatos cuneiformes. Ou num mundo paleozoico, poderiam ter existido coisas com uma linguagem escrita, que poderiam ter gravado essas cunhas enigmáticas sobre o disco envolvido pelo quartzo, que ele agora tinha nas mãos? Ou – poderia uma coisa como essa ter caído como meteoro, vinda do espaço, sobre a rocha em formação de um mundo ainda derretido? Poderia – 


Conteve-se com firmeza, podia sentir suas orelhas pegando fogo com a luridez de sua própria imaginação. O silêncio e a solidão e a coisa esquisita em suas mãos estavam conspirando para brincar com seu senso comum. Ele deu de ombros e pôs o cristal na borda de seu colchão de palha, desligando a luz. Talvez a manhã e uma cabeça descansada trariam a ele a resposta às perguntas que agora pareciam insolúveis.


Mas, o sono não veio com tanta facilidade. No mínimo, porque lhe parecera que, assim que ele desligara a luz, o pequeno cubo reluzira por um momento, como se emitisse luz própria sobre a escuridão que o cercava. Ou talvez ele houvesse se enganado quanto a isto. Talvez fossem apenas seus olhos ofuscados, que pareciam ter enxergado luz abandonar com relutância o cristal, brilhando nas profundezas enigmáticas daquela coisa, com uma persistência anômala.


Ele ficou ali, inquieto, por um bom tempo, repassando as perguntas sem resposta, uma a uma, em sua mente. Havia algo naquele cubo de cristal, vindo de um passado imensurável, talvez vindo da aurora da história, que constituía um desafio que não o deixaria dormir.






[A. Merritt]


Ficou ali, pareceu-lhe, por horas a fio. Fora a luz remanescente, a luminescência que parecia tão relutante em apagar, que manteve sua mente desperta. Era como se algo no coração do cubo houvesse acordado, espreguiçado e ficado subitamente alerta… e ciente da presença dele.


  Era pura fantasia, aquilo. Esticou-se impaciente e direcionou um facho de luz sobre o relógio. Perto da uma da madrugada; mais três horas, e viria o nascer do sol. O facho se deslocou e focalizou-se no cubo de cristal, quente. Ele o manteve ali por minutos, desviava o olhar, e então continuava a contemplá-lo.


Não havia mais dúvidas. Conforme seus olhos acostumavam-se à escuridão, ele percebia que o estranho cristal estava brilhando, com minúsculas e fugitivas luzes, lá no fundo dele mesmo, como fios relampejantes de cor de safira. Ficavam lá no centro, e pareciam provir do disco pálido, com suas marcas perturbadoras. E o próprio disco começava a crescer… as marcas, começavam a mudar de forma… o cubo crescia… seria uma ilusão tecida pelos minúsculos relâmpagos…


Ouviu um ruído. Era quase um fantasma de ruído, como espectros das cordas de uma harpa, dedilhados por mãos fantasmagóricas. Debruçou-se para mais perto. O ruído vinha do cubo…

De repente, guinchos no matagal, um borrão de corpos e um berro agonizante, como uma criança moribunda, rapidamente silenciada. Alguma pequena tragédia da natureza, de predadores e presas. Ele apareceu do lado de fora, para ver o que havia provocado aquilo, mas não conseguia enxergar nada. Mais uma vez desligou a lanterna, e olhou na direção da tenda. No chão, um pálido brilho azul. Era o cubo. Ele abaixou-se para pegá-lo; e então, obedecendo a algum aviso obscuro, retirou a mão.


Então mais uma vez, viu o brilho moribundo. Os minúsculos relâmpagos safira, precisos e reluzentes, voltando ao disco de onde se originavam. Nenhum som saía do cubo.


Sentou-se, observando a luminescência crescer e desaparecer, crescer e desaparecer, mas a cada ciclo, ficando mais tênue. Ocorreu-lhe que dois elementos eram necessários para produzir o fenômeno. O raio elétrico em si, e sua própria atenção fixa. Sua mente deveria viajar junto com o raio, fixar-se sobre o coração do cubo, fazer o pulsar desse coração acelerar, até que… até que, o quê?


Sentiu um calafrio no espírito, como se estivesse em contato com alguma coisa alienígena. Era alienígena, tinha certeza; não era desta Terra. Não da vida da Terra. Recuperou a compostura, pegou o cubo e levou-o para dentro da barraca. Não era nem quente, nem frio; exceto pelo peso, não dava sequer para sentir que o segurava. Colocou-o sobre a mesa, mantendo a tocha longe do cubo; então virou-se para a porta da barraca e a fechou.



Voltou à mesa, puxou a cadeira de acampamento, e focou o facho direto no cubo, focando-o o máximo que conseguia, sobre o coração do objeto. Enviou toda a sua vontade, toda a sua concentração, junto com o facho; focando vontade e visão sobre o disco, enviados junto com a luz.


Como se comandados, os relâmpagos safira entraram em ação. Espalhavam-se do disco para o corpo do cubo de cristal, e então retrocediam, banhando o disco e as marcas. Mais uma vez estas começavam a mudar, contorcendo-se, movimentando-se, avançando e retraindo naquele brilho azul. Não eram mais cuneiformes. Eram coisas… objetos.


Ouviu a música murmurante, as cordas da harpa dedilhada. Mais alto, mais alto ficou o som, e agora todo o corpo do cubo vibrava naquele ritmo. A superfície do cristal derretia, tornando-se nebulosa, como se formada por bruma de diamante. E o disco em si, estava crescendo… as formas contorcendo-se, dividindo e multiplicando, como se alguma porta houvesse se aberto, e por ela, pelotões de fantasmas invadissem. E quanto mais brilhantes as formas, mais brilhante ainda ficava a luz pulsante.


Ele sentiu um pânico repentino, tentou retomar o olhar e a vontade, derrubou a lanterna. O cubo já não tinha necessidade do raio de luz… e ele não conseguia virar-se… não conseguia virar-se? Mais que isso, sentia-se sugado para o disco, que agora tornava-se um globo, dentro do qual formas inomináveis dançavam ao ritmo de uma música que banhava o globo numa radiância sólida.


Não havia mais barraca alguma. Havia só uma vasta cortina de bruma cintilante, e atrás dela, brilhando, o globo… Sentiu-se puxado através da bruma, sugado por ela como se por um poderoso túnel de vento, direto para o globo.


Um comentário:

  1. CONTINUA...

    Publicado originalmente em
    http://insanemission.blogspot.com/2011/02/o-desafio-do-alem.html

    IMAGENS E ILUSTRAÇÕES, FONTES E AUTORES

    1
    Cubo de gelo, no Google Imagens.

    2
    Fotografia de Thomas Shahan, aranha
    http://artsyspot.com/look-deeply-into-my-eyes/

    3
    Guardião do Limiar, pintura de Daniel Ketelhut
    http://www.danielketelhut.com/

    4
    Fotografia do Dr. Duane Harland, pulga
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/pequenos_mundos_grandes_imagens/


    Este link em inglês sobre a escritora (quem lê a história sem checar o link, e não já a conhece, provavelmente não vai imaginar que é uma mulher, considerando época e tema) C. S. Moore é melhor que o da wiki em português:
    http://en.wikipedia.org/wiki/C._L._Moore

    ResponderExcluir